Ponta de Areia, 4

4. Um ano em Caraíva e o Fim da Viagem a Dois

Felipe Areas
7 min readSep 6, 2023

Ponta de Areia, 3 (capítulo anterior) // Ponta de Areia, 5 (próximo capítulo)

4. Um ano em Caraíva e o Fim da Viagem a Dois

Ficamos num camping à beira do Rio Caraíva, bem grande, mas com estrutura boa e relativamente confortável pro tanto de gente hospedada lá. Nesses encontros espontâneos de camping, conhecemos pessoas que logo viraram queridas e logo viramos um grupão inseparável. Foram trocas muito formadoras: ficar em Caraíva aquele tempo, me ajudou a entender muitas questões que trazia de antes, desde minha pesquisa musical, a crise com as minhas duas trajetórias acadêmicas e até o flerte nunca assumido com o universo hippie.

Os dias eram muito longos ali: o sol fazia da barraca o lugar mais quente do mundo já pelas nove ou dez da manhã, e, à noite, sempre acontecia alguma coisa pra fazer na cidade, então, a gente sempre acordava cedo e dormia tarde naturalmente. Pelo que conversei com pessoas ao longo do tempo que se seguiu, aquela foi uma das melhores épocas de Caraíva mesmo. Vamos ficando e acabamos por decidir gastar todos os últimos dias de Carol ali, até acabar nossa viagem em dupla.

Dias muito gostosos de férias comuns. As bicicletas ficaram trancadas num bambu na recepção do camping, despertando perguntas de curiosos. Ouvíamos o dono do camping responder que tinha “um casal” viajando nelas, mas nem parecia que falavam da gente.

Vivemos mil loucuras gastronômicas -sem perder a linha no orçamento, que já se esgotava-; conhecemos pessoas diversas; hippies, nativos, turistas de vários lugares e backgrounds. Eu não sabia o que iria fazer depois da partida de Carol; podia voltar junto com ela ou depois, ou então, seguir parcial ou totalmente até o Rio de bike mesmo; muitas dúvidas.

Momentos de luxo
E pura curtição

Então, veio a parte mais estranha da viagem; preciso de um flashback pra contextualizar como chegamos aqui: Estamos em 2014 e ainda sou o “maluco da bicicleta” de todos meus círculos sociais; pros outros, sou um excêntrico; meus parentes acham que é só uma fase, que quando “crescer”, vou desistir da bicicleta e comprar um carro; meus amigos também acham que vai passar já já; meus colegas da faculdade de direito acham que curso geografia. Já uso a bicicleta todos os dias pra me locomover e não consigo imaginar minha vida de outro jeito. Na cidade, prefiro o risco de atropelamento do que a lentidão do transporte público.

É um momento de crise interna: acabo de trancar a faculdade sem ter nenhum horizonte de o que quero fazer da vida. Já trabalhei em uma ONG, num estúdio de gravação e num escritório de advocacia. O estúdio não pagava, a ONG pagava -embora, pouco- e não dava nenhuma perspectiva de carreira; o escritório, por sua vez, era o ambiente com mais canalhas por metro quadrado que já habitei -anos depois, eu descobriria que aquele escritório especificamente era um ponto fora da curva, mas o trauma ia permanecer por um bom tempo. Sonhava pedalar a volta ao mundo, mas, inconscientemente, sabia que não tinha recursos emocionais nem físicos ou financeiros pra isso.

A essa altura, Carol já é minha amiga há muito tempo e acaba de voltar de uma mini-viagem de bicicleta pela Europa; pouca distância, ciclofaixas à vontade; uma coisa bem primeiro mundo. Foi uma aventura simples, mas que deixa nela uma instiga por mais. Então, num evento de algum amigo em comum, encontramos e ficamos a noite inteira a falar de cicloviagem; conversamos sobre as rotas que pedalamos recentemente e do desejo de fazer mais -a despeito de não saber muito por onde ir, nem de ter grandes orçamentos pra isso.

Depois de um tempo, Carol apareceu com a idéia da “Rota do Descobrimento”, ao que logo, evoluímos para a compra das passagens de ida. Eu tive uma resistência inicial a pedalar poucos quilômetros por dia, mas fui convencido de que as paisagens compensariam. Tentava introduzir sorrateiramente a idéia de seguirmos do fim da Rota, em Prado, para o Rio, pelo litoral. O plano quase se concretizava quando ela recebe o convite pra um trabalho bem importante, que coincidia perfeitamente com as datas que havíamos pensado para a viagem. Eu teria de seguir sozinho quando ela fosse embora ou já partir com a volta comprada.

Dentro de uma trama psíquica cheia de auto-sabotagem e outros mecanismos infelizes, me via num impasse: era capaz de reconhecer que não teria coragem de pedalar da Bahia até o Rio de Janeiro sozinho, mas sentia que não devia comprar passagem de volta. “Deixar rolar” é o desafio-mor de qualquer control freak, mas eu não conhecia esse anglicismo e, muito menos, o quanto ele me descrevia.

Só começaria a fazer análise alguns anos depois, mas, tive uma sacada muito boa pra contornar meus medos: planejando a viagem no caderno, eu sabia que não dava conta de pegar a estrada sozinho, porém, uma vez na estrada, talvez conseguisse a coragem de seguir depois da partida de Carol. Decido, então, ir sem passagem de retorno, pra dar uma chance a essa hipótese da minha cabeça.

As despedidas de viagem são sempre estranhas; quem me dera entender o que se passa. Carol parte na madrugada e eu, pessoa mais apegada do que gostaria de ser, acordo levemente melancólico. As recém-amizades-de-longa-data que permaneciam comigo em Caraíva levantam num clima parecido também; acho que, de certa forma, esse evento representava o fim de uma etapa na viagem de cada um ali naquele lugar. Foi um dia mais quieto e introspectivo pra todo mundo; não pensei em nada sobre o que faria; seguir viagem parecia algo muito distante. Se somava a tudo isso o cansaço acumulado de várias noites esticadas até tarde, sempre seguidas de um despertar cedo com o calor do sol na barraca e o ataque das muriçocas onipresentes, que impediam o sono fora dos cinquenta graus da estufa-barraca. Tirar o dia pra não fazer nada era um desejo coletivo e inconsciente que se satisfez ao longo de muito papinho revezado com sonecas que restauraram os ânimos.

Ao pôr do sol, vivemos uma catarse coletiva descendo o rio boiando num colchão inflável, ao que sou batizado de Richard Parker, em homenagem ao tigre de “As Aventuras de Pi” -que cai ao mar e é resgatado. Num clima lúdico e juvenil -lembremo-nos que o narrador de agora tem nove anos a mais do que o aventureiro que é narrado-, ficamos a comparar os perrengues do mar com o nosso rio de águas rasas e calmas; crises de riso atravessam nosso passeio.

No dia seguinte, volto a pensar na idéia de seguir viagem sozinho, com a pressão de ter o dinheiro acabando e não poder ficar mais em Caraíva. Penso que minha amiga voltou porque tem um longa-metragem pra filmar: e eu? Dentre vários pensamentos obsessores e fracassos pessoais, sublinhados pelo sucesso de Carol, percebo que nada disso me produz coisa positiva. Um dia inteiro se passa, tiro várias sonecas e sonho bastante. Acordo calmo; penso que seguir viagem é assustador, mas pode ser lindo; que essa é a coisa mais rica que tenho pra viver naquele momento. Pela noite, curto alguma farra e acabo indo dormir tarde.

Caraíva 24hs

Acordo de ressaca e percebo que, se ficar nesse pique, nunca vou conseguir sair de Caraíva; o dinheiro em espécie está acabando e quase nada aceita cartão. Converso com mais nativos sobre o trajeto até Corumbau e decido que tenho que partir no dia seguinte, sem falta; minha turma já nem acredita. Pela noite, começo a realizar que finalmente vou viajar de bicicleta sozinho a partir de amanhã.

Sair da chave: “como chegar no Rio (de Janeiro) de bicicleta?” e, ao invés, pensar: “amanhã vou de bike até a próxima cidade e de lá, eu vejo” é um milagre. Quase não acredito que estou começando a sair do meu próprio labirinto e, quieto, celebro. A guinada foi tão forte que acho que meu semblante muda -o que seria a única explicação para minha rede pessoas em Caraíva passar a acreditar que eu realmente partiria.

Ponta de Areia, 5 (próximo capítulo)

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