Ponta de Areia, 2

2. Muitos Dias de Viagem Desde Ontem

Felipe Areas
5 min readOct 19, 2022

Ponta de Areia, 1 (capítulo anterior) // Ponta de Areia, 3 (próximo capítulo)

2. Muitos Dias de Viagem Desde Ontem

Embora eu viajasse sem data de volta, Carol tinha sido chamada pra um trabalho importante em duas semanas, impondo uma data de volta. Isso gerava aquela comichão de querer estar em todas as praias da Bahia ao mesmo tempo, sem deixar perder nada. Santo André amanhecia linda, mas, segundo nosso roteiro temporalmente opressor, ainda tínhamos muitos lugares pra dar conta. Escolhemos sair cedo rumo a Trancoso pra poder parar com calma onde desse vontade.

A triste diferença de qualidade entre as fotos da Carol (direita) e as minhas (esquerda).

Pegamos a mesma estrada do dia anterior até pegar a balsa de Porto Seguro para Arraial d’Ajuda. A partir desse ponto do caminho, não conseguíamos mais ver o mar, então, numa certa altura, insisti pra pegarmos uma servidão fora da rota “só pra ver a cara” da praia. Entramos no final da Praia dos Pescadores, ao que fomos seduzidos por um cheiro maravilhoso. Estávamos em frente à “Barraca do Nel” e ainda não tínhamos almoçado, então olhamos despretensiosamente pro menu, que se mostrou caro demais pro nosso orçamento.

Ali, um desconhecido nos aborda com a mesma pergunta que ouvimos em todos os lugares: “De onde vocês são? De onde vocês tão vindo? Por que não viajam de carro?”. Depois de respondermos com a boa vontade de quem ainda está no segundo dia de viagem, ele se apresentou e disse: “Eu sou o dono aqui. Que máximo isso que vocês tão fazendo, poxa legal mesmo!” Então, num tom mais baixo, para que os demais clientes não ouvissem: “Olha, eu vou dar uma força pra viagem de vocês porque eu sei como é viajar de bicicleta, podem pedir o que vocês quiserem aqui do menu que é por minha conta”. Aquilo pegou a nós dois de surpresa e fizemos uma certa cerimônia até que ele insistiu e aceitamos.

O Nel veio conversar com a gente; contou um pouco da época que ele estava começando seu restaurante; quando ele mesmo ia comprar peixe de bicicleta. Importante lembrar: o ano é 2014 e ainda sou um recém-adulto com paladar infantil, mas Carol não sabe disso. Decidi performar como se não o fosse, de modo que me jurei dizer sim pras coisas novas e não proferir a frase: “poxa, isso eu não como”. Assim, deixo minha amiga escolher o prato e então descubro que terei de comer polvo pela primeira vez na vida. O gosto nunca é melhor do que a boca de quem come, de forma que apenas hoje, digo que aquele arroz de polvo foi o melhor que já comi. Na hora, não foi não. Ficava mastigando bastante, tentando entender sabores e texturas inéditos, era tudo estranho pro paladar de criança mimada que eu lograva superar. Quando acabamos, o Nel já tinha ido embora, mas garantimos uma foto com seu filho e agradecemos mil vezes.

Logo saindo da Barraca do Nel, encaramos a ladeira onde ele contou pra gente que caiu uma vez com a bicicleta carregada de peixe e gelo no isopor -era realmente íngreme, deve ter sido um baita perrengue. Entardecia quando chegamos ao centro de Arraial D’Ajuda e isso significava que não ia dar tempo de conhecer nada ali.

Mas até que deu pra fazer um pout-pourri turistão classico em quinze minutos pelo centrinho de Arraial; (fotos Carol Pedigão)

Sigo frustrado pela pressa durante dez minutos, até que chegamos num ponto de paralelepípedo irregular, estreito e lotado de carros. Lembramos que nas pesquisas pré-viagem, onde aprendemos que haveria vários trechos onde seria possível pedalar pela areia na beira d’água. Na ausência de mapas ou de anotações que confirmassem onde poderíamos fazer isso, tomamos a decisão intuitiva de cair pra beira do mar.

É a primeira vez que pedalo na areia e percebo que isso é algo mágico. O céu está colorido com as luzes do poente e podemos ver pessoas brincando, jogando frescobol e até voando de parapente, mas me sinto distante desse lazer despretensioso: temos a missão de chegar até Trancoso e não entendemos nada do mar nem das marés.

Apresentam-se as primeiras falésias e precisamos de adentrar o mar até o joelho, com as bicicletas totalmente carregadas pra contornar e voltar à areia pedalável. Avançamos e já está escuro quando percebemos um córrego à frente. Não é possível atravessar empurrado as bicicletas. Desmontar os bagageiros parece muito trabalho pra um obstáculo tão pequeno, então tento levantar a bicicleta no ombro. À beira de lesão, optamos pela opção mais lenta.

Pego pela maré enquanto tentava contornar uma falésia.
Tentativa frustrada de atravessar o rio sem desmontar tudo. // Primeiras impressões de Trancoso. (fotos: Carol Perdigão)

Do outro lado do córrego, já é noite, mas a lua está cheia e ilumina tudo. A areia está tão firme que faz esquecer que ali é praia. Pedalo sem as mãos e canto em voz alta numa catarse. Imagino que Carol está tendo também a catarse dela, mas de um jeito mais contido -fico constrangido por estar sendo tão expansivo e penso em segurar a onda.

Chegamos no centro de Trancoso e lá encontramos um amigo que vai hospedar a gente. Ouvimos que Elba Ramalho e outros famosos estão fazendo um show-luau por ali, mas estamos exaustos, cheios de sal no corpo e com duas bicicletas carregadas de tralha para estacionar. Nosso anfitrião se sensibiliza e nos leva para casa, desviando apenas para um breve açaí com cupuaçu, que cai bem demais.

Ponta de Areia, 3 (próximo capítulo)

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