Ponta de Areia, 3

3. A Jornada até Caraíva

Felipe Areas
6 min readAug 27, 2023

Ponta de Areia, 2 (capítulo anterior) // Ponta de Areia, 4 (próximo capítulo)

3. A Jornada até Caraíva

Ainda não completamos 48hs de viagem e já estamos em Trancoso; cansaço é visível em nossos semblantes. De mim, posso dizer que já embarquei exausto pra Porto Seguro; vindo de uma semana que foi um misto de ansiedade e sono ruim, somados ao desgaste físico de ficar dias resolvendo milhares de micro-pepinos.

Depois desse batidão todo, vivemos dias calmos em Trancoso. Não interessava muito a nenhum de nós dois aquele clima turistão e isso era uma deixa perfeita pra não fazer nada e desacelerar um pouco. Outros fatores contribuíram: os preços caríssimos e a praia deprê-show, infestada de “lounges” com som alto, estilo eletrônico genérico-wannabe-Ibiza, por toda parte; cada área com um line up diferente, todos deploráveis.

Me inquietava muito imaginar o processo de urbanização e gentrificação dali; pensava por horas sobre a agressividade com que o turismo de massa chega e transforma as dinâmicas de convívio; a interação do visitante com o nativo vira uma coisa estritamente comercial e rasa. O turismo tóxico de Trancoso me fazia filosofar sobre o sentido de viajar e me trazia um panorama de que tipo de viajante eu não queria ser. Lembro dos meus pais e seus círculos de amizades e penso que gostariam dali -mas não sei se acho isso bom ou ruim… O tédio sempre mobiliza grandes reflexões. Passam-se três dias.

Trancoso; fotos por Carol Perdigão

Ainda é cedo e já estamos na estrada. Somos dois cariocas assustados -especialmente eu-, e, assim, os rumores de criminalidade nas periferias de Trancoso produzem uma grande ansiedade na nossa jornada. Conseguimos sair do perímetro urbano e começamos a sentir alívio por isso. Eis então que vozes, gritando, vêm se aproximando. Percebemos um carro chegando perto e sinto o pavor de que algo terrível vai acontecer; estamos numa estrada deserta. Nada acontece: são apenas nossos amigos do Rio, que encontramos em Trancoso; estão seguindo viagem na mesma direção que a gente.

Nossos planos estão em aberto para essa etapa: queremos conhecer bem a Praia do Espelho, mas não sabemos se vamos achar hospedagem; muita gente disse que “só tem coisa de rico lá”, de forma que, a despeito do desejo, pensamos que um camping lá seria improvável. O pessoal do carro está indo pra lá, num esquema chic-família que não pode nos hospedar.

Está um sol brutal e a estrada segue num grande pasto cheio de búfalos; que é uma paisagem engraçada de se ver, meu imaginário sempre associou esses bichos a terras estrangeiras.

foto por algum motorista que passou -e que não sabia fazer o foco da câmera.

Depois de umas três ou quatro horas por uma estrada esburacada e cheia de sobe e desce, chegamos em uma ladeira que mira o mar. Já na areia, concordamos que aquilo não encaixa com a imagem que construíramos da Praia do Espelho. O tempo fecha -periga chover- mas vamos zanzando por ali pra entender melhor o que há pra ser conhecido.

O sol volta, desviamos do propósito de procurar saber de hospedagem e aproveitamos a praia. Vamos ficando, pegamos uma cerveja e paramos para comer num restaurante japonês — luxo que advém da ilusão do dinheiro no bolso em começo de viagem (lembremo-nos que quando se tem 500 reais para dez dias, o inconsciente marca muito mais a quantia do que o tempo que pra ela é designado; e que essa viagem foi em 2014 e fazia sentido andar com dinheiro em espécie).

Já está escurecendo e não tomamos providência de nada então, optamos por seguir em direção a Caraíva e ver se aparece algo no caminho. Pedalamos pela areia firme até um ponto em que a praia parece acabar, dando lugar a uma falésia grandona. Há marcas de trilha subindo -o caminho parece ser por ali- mas já é quase noite e não parece uma boa idéia desbravar matos e barrancos no escuro. Do cansaço somado com o iminente perrengue, vem uma idéia que soa heterodoxa demais pra ser boa: por que não acampar ali mesmo, na reentrância da falésia? Examinando, percebemos que há uma parte mais alta e entocada, e especulamos que a maré alta não alcançaria. Analisamos o terreno e decidimos pernoitar ali mesmo.

É a primeira vez que acampo “selvagem” (clandestino/sem ser em camping). Temo mais um possível assaltante e Carol, teme mais que a maré nos alcance. A lua está cheia e faz um clarão, então, consigo ler um pouco antes de ir dormir. Não consigo pregar o sono ainda; estou muito agitado com a viagem e a barriga de horas dormidas em Trancoso vem me cobrar. Boto uma música nos fones e caminho pela areia, numa catarse. Choro um bocado e sinto uma imensa alegria de estar ali. Na barraca, Carol está completamente apagada; invejo pessoas que dormem fácil; quero aprender a ser uma pessoa que dorme fácil também. Começo a pensar nessas coisas e, sem perceber, já estou dormindo.

Amanhece um horizonte laranja e vou correndo pro mar que nem uma tartaruga saindo do ovo. Carol não entende nada -ainda na leseira do sono- mas adere. São sete da manhã e estamos papeando no mar morninho, vendo nuvens lá no horizonte; parece chover em alto mar. Digo que pegar dez minutos de chuva seria a perfeição; tirar o sal do corpo antes de seguir viagem. “Cuidado com o que você deseja” -retruca Carol. As nuvens vêm chegando na nossa direção e parece que vai chover por bem mais que meus dez minutos. Desmontamos a barraca correndo, eu pedindo desculpas por ter ansiado chuva. Já com tudo arrumado, cai um toró por cinco minutos.

Acampamos bem onde a seta aponta.

Depois dessa providência divina, partimos subindo uma trilha mais ou menos demarcada pela falésia acima de onde acampamos e vamos achando o caminho no olho. Adentramos uma mata e perdemos o mar de vista. De repente, estamos em um platô com duas casinhas e gramados, com o mar visível no lado oposto. A jornada nesse ambiente ermo e onírico é uma delícia, mas não temos mapas nem referências, então sempre paira ao fundo uma tensão de errar o caminho. Chegamos a um mirante de onde se vê uma nova praia bem abaixo e seguimos o caminho com a vertigem de quem fica numa varanda alta.

Há um imenso barranco na descida à frente e seria preciso desmontar as bagagens pra passar, mas, teimoso, proponho da gente se ajudar e levar as bicicletas de dois em dois. Demora, mas dá certo e, logo em seguida, chegamos à beira do mar. Estou tão eufórico que pulo no mar sem tirar o tênis nem nada. Minha cabeça boia, e, então, percebo que nem o capacete eu tirei. Pedalamos ainda um trecho de praia com areia preta e rios desaguando em pequenos lagos; eu, muito impressionado com a exuberância de tudo.

Chegamos no Rio Caraíva, travessamos com um barqueiro e chegamos ao destino do dia. Em menos de cinco minutos, trombamos com gente que conhecemos do Rio (de Janeiro) -um choque intenso de realidades- e já pegamos indicação de camping.

Ponta de Areia, 4 (próximo capítulo)

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