Ponta de Areia, 5

5. Solo

Felipe Areas
6 min readOct 18, 2023

Ponta de Areia, 4 (capítulo anterior) // Ponta de Areia, 6 (próximo capítulo)

5. Solo

É o dia da partida e acordo com um único pensamento na cabeça: vou viajar sozinho de bicicleta pela primeira vez na vida. Agilizo pra partir cedo, mas descubro que a melhor maré seria apenas às três da tarde. Fico detido em mil despedidas -me sinto quase um vereador local- e acabo saindo já no laço pra pegar a baixa-mar. Mesmo com toda a enrolação, não consegui falar com Cizinho, que se tornara um amigo querido meu e de Carol, e que sempre me encorajava a seguir quando ela partisse.

Sigo apreensivo por estar finalmente sozinho -e, me detestando pela enrolação da saída- mas, quando chego na areia da praia com a bicicleta, recupero a moral. Em meia hora de jornada, passo por um quiosque chic, que é o mais afastado da praia e, ao longe, avisto Cizinho, cuidando do bar pra pagar os últimos dias de viagem. A areia está muito fofa e o sol, a pino; estou fora de forma e a bicicleta está muito dura de empurrar nessas condições, então, apenas, aceno pra ele. Meu amigo de fala mansa grita com um vozeirão que quase não reconheço: “Coragem Richard Parker!!!”

Pouco tempo depois, me vejo sozinho num trecho deserto da praia, com o céu já arroxeado e sinto uma grande alegria de estar ali. Meu breve otimismo é ceifado por uma areia grossa que surge dali pra frente, deixando tudo mais duro e pesado. Pra piorar, o relevo da praia vai se transformando numa areia ondulada interminável que me deixa exausto de empurrar a bicicleta. A sensação de gastar muita energia pra andar mais devagar do que um idoso caminhando preocupa. Enquanto isso, meu tênis, que já vinha anunciando falência, abre uma boca de jacaré.

Tchau, civilização // Encalhado na areia
Caraíva ficando pra trás // Ponta do Corumbau, pra frente

Já quase escurecendo, chego ao Rio Corumbau e sou extorquido para pagar uma travessia que não esperava. Sigo frustrado pela minha aparência -já mulambenta- não ter me rendido um desconto, mas feliz, por ter conseguido atravessar. Na outra margem, o jogo vira: encontro uma areia boa de pedalar, junto com um poente roxo e onírico que me leva a uma mini-epifania. Há ruínas de construções na beira do mar que compõem um cenário cinematográfico-apocalíptico. Mas lembro que não posso dar mole: um ferro, anzol ou qualquer resto podem furar o pneu da bicicleta e, já já estará noite.

(Quem me atravessou, foi um adulto. As crianças apenas posaram pra foto e voltaram a brincar depois)

Essa transição entre estar num lugar deserto e fotogênico, ruínas e, logo em seguida, num cartão postal cheio de turistas me bate feito o jetlag de voar até o Japão (nunca fui -mas anseio- e imagino ser um massacre). Estou na Ponta do Corumbau, vindo de alguns perrengues e augruras; cheguei ali na luz mais bonita do dia por pura sorte; enquanto os turistas ali, devem ter se programado pra acordar depois da sesta pra mirar esse por-do-sol. Lembro da saída atrapalhada de Caraíva e sou tomado por um afago de que tudo vai dar certo.

Comentarista de por-do-sol + Tênis em ótimo estado

A onda zen rapidamente se esvai quando lembro que ainda preciso arrumar lugar pra dormir e que meu tênis está em a prestes de acabar (o que é uma grande preocupação neste momento de vida no qual ainda não fui exposto à ala do cicloturismo que viaja de papete e chinelos).

No centrinho de Corumbau, todos os campings são quintais de casa e estão completamente vazios; nenhuma barraca montada; um clima peculiar, um astral gélido, com vento frio de final de tarde. Alguém sugere dormir na praça onde “umas pessoas acampavam”. A idéia soa ótima; “qualquer coisa que tenha gente vai ser mais legal do que aqueles campings-quintais que vi” -penso. Quando chego ao local, me deparo com dois sujeitos transtornados, acampados com barracas quebradas e abertas, que pareciam estar ali desde o começo dos tempos -emanam a energia de alguém que está preso indefinidamente numa viagem de ácido. Lembro então, que sempre fiz um manejo comedido de psicodélicos e isso me alenta perante a melancolia que aquela situação me provoca.

“”

Sigo e, entre pousadas que não cabem no orçamento, campings assombrados e a praça dos doidões, nenhuma opção me convence. Minha cabeça dispara, dando lugar a uma profunda indecisão que me toma por completo. É um sintoma comum, mas ainda estou no começo da vida adulta e tenho poucos recursos pra lidar. No meio desse sentimento de urgência de ter que achar um lugar pra passar a noite, me vejo acometido pela incapacidade de decidir o que fazer. Na espiral do caos, começo a pensar em questões filosófico-sociológicas: “Seria assim todos os dias para quem não tem onde morar?”; “Estou fazendo cosplay de indigente pra enganar a quem?”; “Talvez todos devessem passar por algo como o que estou vivendo agora para entender um pouco melhor o mundo?”; “Será que os filósofos Gregos experimentavam esse tipo de situação?”. Dentre reflexões válidas e inúteis, aquilo ia distraindo minha atenção do que realmente precisava decidir.

Lembro então da Branca de Neve, que, perdida naquele breu, dormiu e acordou num lugar bucólico: “caramba, tudo sempre esteve certo; o terror era a projeção do desamparo dela recaindo sobre seu entorno; a floresta sempre foi tranquila, tanto que ela dorme na clareira, nada lhe acontece, e, ainda por cima, acorda rodeada de bichos fofos.” lembro das aulas de literatura no colégio sobre a diferenciação entre Locus Amoenus e Locus Horrendus e a dimensão psicológica do lugar.

O mesmo lugar.

Das reflexões mais pretensamente eruditas à memória dos desenhos da infância, a lembrança da jornada da personagem da Disney me ajuda a atinar para a belíssima noite que faz. Olho pro céu e me detenho ali: a paz das abundantes estrelas cadentes me aquieta e decido que tenho pensamentos demais pra tomar qualquer decisão no momento. Estou em frente a uma pousada chic, com espreguiçadeiras na areia -todas vazias. Deito por um tempo e penso que poderia dormir ali. Seria algo que nunca fiz, mas me soa bem plausível. Poderia cair entre duas espreguiçadeiras, na areia -o que seria bem mais anatômico e discreto, além de evitar qualquer problema com a pousada. Parece bom; nada de barraca.

Uma família aparece e se assusta com a minha presença no breu, mas me identifico e eles logo abrem conversa. Percebem que estou inseguro de dormir ali, mas apoiam a idéia me deixam o número do quarto deles para qualquer incidente. Aquilo era a ponta de confiança que me faltava. Eles regressam e eu fico; estendo a canga, abro o saco de dormir. Fico olhando pro céu um pouco mais; vejo uma estrela muito brilhante se mexer e me assusto; meu corpo se sente no mar. Vou pegando no sono muito lentamente naquelas situações em que a vigília vai ficando gradativamente maluca e, sem notar, está-se a sonhar.

Ponta de Areia, 6 (próximo capítulo)

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