Ponta de Areia, 6

6. Vivendo a Maré

Felipe Areas
8 min readOct 25, 2023

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6. Vivendo a Maré

Acordo com o sol raiando e custo a entender o que está acontecendo. Pensando quem fui e quem tenho sido, essa viagem toda já é bastante improvável, sobretudo as últimas 24hs. Vejo meu saco de dormir sobre uma canga na areia da praia de Corumbau com o sol nascente e nem eu acredito.

Hoje, tenho 21km de areia pra pedalar e ainda terei de atravessar alguns rios em áreas remotas, sem poder contar com ajuda de barqueiro. Não tenho a menor idéia de como vou fazê-lo, mas me disseram que, indo na maré certa, é possível.

Meu tênis descolou ontem. Pedalando de chinelos, eu iria escorregar com os pés molhados; descalço, pior ainda, doía demais os pés; fora que eu já estava com as bagagens bem cheias e não teria onde colocar o tênis -que pretendo consertar. Depois de algum tempo mirabolando gambiarras, lembrei que as travinhas da sola poderiam ajudar a fita hellerman a segurar todo mundo junto. Com a ajuda de um alicate que tinha no meu estojo de apetrechos e improvisos, consigo dar aperto na fita e o reparo impróvavel parece funcionar.

De onde vim (Ponta do Corumbau) // Vou ter de pedalar essa costa toda?

Quero pedalar pela praia, mas preciso encontrar algum nativo que me conte dos horários da maré do dia, então, volto à estradinha de chão batido. Aproveito pra achar uma vendinha e lá, pedir dois pães na chapa -só aí dei conta do tamanho da minha fome (eu ainda não sabia jejuar).

Descubro que a maré está vazia e já começando a encher, então, preciso me agilizar. Entro por uma viela estreita contra o sol nascente, numa imagem poética que ainda não tenho sensibilidade o bastante pra fotografar -além de estar com pressa para não perder a maré baixa; conheço pouco do mar e temo a possibilidade de estarem equivocadas as pessoas que me disseram ser possível esse caminho.

Logo, me vejo de volta à costa e, ao contrario daquele horror de ontem, a areia está plana e firme, perfeita pra pedalar -inclusive, melhor do que a estrada em que estava há pouco. Mal comecei a jornada e vejo uma falésia ficando cada vez maior à minha frente. Aproximo e constato: a água já inundou meu caminho. Custo a crer; faço cálculos; tento ligar pontos das informações que troquei sobre a rota. A conta não fecha, disseram que o perrengue do dia seria o Rio Cahy, na metade do caminho; ainda estou muito longe disso.

Concluo que os nativos podem ter me dado uma hora meio aproximada para a maré e eu já estava um tempo atrasado para a baixamar da manhã por conta do reparo do tênis e dos pães na chapa. Precisaria de esperar as águas irem até o ponto mais alto pra depois descer de novo até onde eu possa atravessar a beira da falésia gigante. Fico um tempo agoniado pensando em tudo o que pode dar errado, mas logo aceito que não há o que fazer; ao que me percebo mais flexível do que me julgaria capaz; “talvez esteja aprendendo algo”, penso.

Encosto a bicicleta e vou dar um mergulho. O tempo nubla e o mar fica com um tom de verde que nunca vi. Encontro um cantinho num leito de córrego com algumas árvores que poderiam me proteger do sol e escuto música; pego no sono. Acordo com a sensação de terem se passado horas, ao som da gritaria de crianças brincando e um jovem de moto; dou conta que ali deve ser afastado até para os moradores da região. Confirmo que na maré baixa vai dar para passar da falésia e que o caminho é por ali mesmo. Ainda são umas dez da manhã e a baixamar deve ser daqui a quatro horas então, vou me entretendo como posso.

"É sério que vou ter que passar aí?" // Meu hotel

Acompanho calmamente a subida da maré até percebê-la esvaziar. Percebo que vou à praia a minha vida inteira, mas nunca olhei assim para o mar; como quem depende de sua boa vontade para seguir viagem.

Chega minha hora: finalmente dá pra ver terra abaixo da falésia. Quase tropeço muitas vezes nas pedras e depois derrapo no solo argiloso e isso confirma que seria inimaginável passar ali com o mar mais alto. A gambiarra do tênis começa a soltar, mas vou recolocando e pisando com mais cuidado e a coisa vai funcionando assim,

A parte pedregosa da Falésia // A parte argilosa da Falésia (as palmeiras são o lugar onde passara as últimas horas).
A criançada continuou lá (o meu cantinho era à esquerda da imagem, onde está o moço de camisa vermelha).

São muitos quilômetros de praias absurdamente lindas; penso não as conheceria de outra forma e isso me alegra de ter escolhido viajar de bicicleta. O dia de ontem foi uma grande missão, sem muito tempo pra aproveitar o caminho e com um sentimento marejado pela despedida do lugar e das pessoas. Já hoje, choro de alegria, falo sozinho e trago o riso frouxo; me sinto como se num sonho muito gostoso, daqueles em que se acorda querendo voltar pra ele.

Nesse clima bobolegre, chego a quase esquecer que me colocaram o terror de atravessar o Rio Cahy: precisa ir com cuidado e, na maré mais baixa do dia. A tarde avança e temo chegar depois dela (a maré), como acontecera com a falésia pela manhã.

Chego.

Antes de atravessar // Depois de Atravessar *Esse lugar viria a se tornar bem movimentado, com quiosques e bastante turismo no verão, mas, estamos no fim de Janeiro de 2014 e não havia nada disso ainda; apenas umas casas de colono (como se pode ver na foto da direita).

Não observo nenhum sinal de gente e, mas me vejo tomado por algo muito forte. Penso na beleza cênica do lugar e comemoro não terem construído ainda um resort; penso nos portugueses atracando ali, 514 anos antes, e se passa um filme em minha cabeça, lembrando das aulas de história do colégio; penso também, que estou exausto, que acordei na praia, que acabo de me questionar se estava num sonho e que não entendo nada sobre rios nem como atravessá-los. Reparo que todos esses pensamentos, são reflexões importantes, mas que, porém, o último, fala de uma demanda imediata: preciso atravessar toda essa água com um monte de bagagem.

Deixo a bicicleta encostada e margeio o rio na expectativa de um lugar propício, mas nada. Quanto mais ao continente, mais rápido e fundas são as águas; chegam até o pescoço. Por outro lado, o delta é muito largo e tem as ondas do mar batendo de encontro. Tento pela parte funda, mas quase escorrego no fundo lodoso; então, tento pelo delta e consigo ir achando um caminho com água até a cintura -“será que eu consigo repetir esse caminho com a bicicleta?”, penso. Não sei o quão rápido a maré enche e temo ficar preso ali então, vendo que não conseguiria levar tudo junto, desempacoto as bagagens e atravesso em três viagens para levar meus volumes: a bicicleta, os alforges e o plástico em que trazia a barraca e o saco de dormir.

À outra margem, sou só alegria. No auge dos meus 23 anos, carrego um monte de inseguranças diversas, mas, o sucesso dessa travessia me deixa com uma coisa de “as coisas vão dar certo” no coração. Retomo o clima de catarses, aliviado de ter passado o desafio maior, mas, já lembrando que ainda preciso chegar à civilização e está ficando tarde. Tenho o contato de uma pessoa que disse que me hospedaria, mas não sei o endereço, apenas que fica na rua do cemitério -e não me anima a idéia de zanzar à procura de alguém nessa rua à noite.

Conforme vou andando, começo a avistar umas poucas pessoas e então chego a uma casa toda feita de conchas e pedras, bem na beira do mar. Conforme vou observando, lembro que já conversei com uns amigos nesse lugar; à época, ouvi com inveja sobre uma travessia entre praias que fizeram e as fotos dessa casa ficaram na minha memória. Acho engraçado realizar acidentalmente o desejo de fazer a mesma travessia que eles e sigo pra ver o interior da casa, já que não tenho muito tempo.

A vista

Começo a pensar na chegada em Cumuruxatiba. Penso em coisas objetivas: procurar um plano B se não conseguir a hospedagem com o Piu (que conheci em Caraíva e que tinha falado pra eu aparecer na casa dele),arrumar uma refeição de verdade e consertar o tenis. A faixa de areia molhada vai aumentando e chego a pedalar nela por um trecho, já com a luz mais vespertina -acho que nunca passei tantas horas na praia.

Chego a um pequeno rio onde posso ver uma família com cadeiras, cooler e uma criança brincando. Perguntam de onde venho, se estou cansado etc. e me presenteiam com um toddinho. Constato que ali mesmo é o caminho para a estrada que chega a Cumuruxatiba e que, pela praia, nem que eu quisesse seria possível de seguir (haver apenas um caminho me poupa de ter que gastar energia tomando decisões, coisa que pode me ser muito custosa, vide os dias anteriores).

A estrada vai ficando cada vez movimentada até que chego num centrinho. Parece bem mais povoado do que eu imaginava, mas a referência da “rua do cemitério” funciona e já é quase noite quando chego à casa de Piu. Ligo para os meus pais depois de quase duas semanas me comunicando com eles por email no computador da sala educativa de informática (para crianças) de Caraíva. Saio do telefone com Piu me chamando para comer, que a janta acabava de ficar pronta -me sinto sortudo e um pouco folgado.

Ponta de Areia, 7 (próximo capítulo)

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