Ponta de Areia, 7

7. Maré Morta

Felipe Areas
7 min readOct 27, 2023

Ponta de Areia, 6 (capítulo anterior) // Ponta de Areia, 8 (próximo capítulo)

7. Maré Morta

Acordo com uma leve ressaca e lembro que ontem, depois de toda a saga pela praia e pelas marés, fomos a um forró após o jantar; “como tive energias?”, me pergunto. Passo uns dois dias sem fazer nada de especial; vivemos uma rotina de dar um pulo na praia, preparar almoço e dar um pulo no centro à noite pra ver gente. Lembro que uma amiga do Rio tinha sido muito enfática em dizer “você precisa conhecer Cumuruxatiba; Aproveita por que o turismo de massa vai chegar” e posso constatar que ainda nem há vestígios disso; apenas locais e hippies, daqueles que nômades -que, normalmente, têm um faro sobrenatural pra achar bons lugares para passar uma temporada.

Desde Caraíva, os dias estavam sendo muito intensos, tanto pela quantidade de horas desperto, como pela hiperatividade com que passávamos os dias fazendo mil coisas sem parar. Sucedendo isso, esses dois dias sobre a bicicleta, na praia, com sol, travessia de rio, areia fofa e alimentação ruim me deixam com um cansaço acumulado que só agora começa a bater. A atmosfera caseira com Piu e o Sérgio contrasta muito com os dias em camping ou ao relento dos dias anteriores e isso abre a janela pra eu dormir bastante e me haver um pouco com as emoções vividas.

Tenho 23 anos e, um das minhas maiores questões é querer -e não poder- sair da casa dos meus pais. Conforme vou passando o tempo na casa com Piu e Sérgio (seu irmão), realizo um pouco do desejo de cozinhar e ajudar a cuidar de um espaço -duas coisas que são inviáveis na dinâmica control freak estabelecida na vivência de casa no Rio.

Há um pendrive com umas cinquenta músicas que tocam todo dia a mesma seqüência, numa toada que vai de rap a Belchior e “Hora do Almoço” sempre acaba tocando na hora em que a comida fica pronta, o que é literal demais até para meu senso estético ainda em desenvolvimento.

Tiramos um dia para conhecer a Ponta do Moreira, a pé, num caminho que só os nativos conhecem. Como a maré está morta, mesmo na hora mais baixa do dia, temos que margear a falésia com água nas canelas até chegar ao ponto de poder subir por ela.

Margeando a Falésia // A vista de cima dela
A trilha // Passando por uma mini-praia

Já ia me achando atleta por estar viajando de bicicleta, mas Piu caminha a passos largos e acelerados, de modo que chego exausto à Praia do Moreira. Meu anfitrião explica na baixamar, várias rochas ficam emersas na praia, mas que não vamos ver isso por causa da maré estar na fase “morta”.

Sinto a fome começar a bater, não trouxemos nenhuma comida, então, lembro que será uma longa caminhada de volta até em casa, onde ainda teremos de cozinhar um almoço. Me sinto fraco de espírito por estar deixando o prenúncio da fome estragar meu desfrute da praia; penso que quero ser mais resiliente -essa palavra ainda não se tornara “moda”-, mas aceito também que não dá para brigar com a lombra quando ela se alia à vontade de comer.

Já fazem uns cinco dias que estou em Cumuruxatiba e já até me acostumei ao Piu dizer que eu “preciso” fazer um passeio de caiaque pelos corais da praia. Não me mobilizo pra isso, mas acaba que ele consegue uma manhã livre e o dono da pousada nos empresta um barco de duas pessoas. Meu camarada é ágil com o remo -eu, não-, vamos avançando e logo estamos longe da costa, mas os corais parecem pairar a apenas um palmo abaixo do espelho d'água.

O tempo fecha e uma leve chuva começa a cair. Estou feliz; já tirei várias fotos com a câmera que nem iria levar, mas que, pela insistência de Piu, acabei trazendo numa sacola plástica amarrada no pescoço. Chega a chover, mas logo pára. Sou um leigo do mar; temo que possa nos acontecer algo, mas vejo um barqueiro e penso que não estamos fazendo nada especialmente perigoso.

Depois de vários dias calçando apenas meus chinelos, lembro que estou sem tênis para seguir viagem. Piu é o rei do bambu: constrói desde grandes estruturas, até pequenos itens delicados de casa com sua matéria prima. Quando explico que preciso de um tênis novo, ele bota pilha pra que eu conserte o meu, o que, a primeira vista, me soa absurdo -o tênis parece muito detonado. Não há lojas de tênis nem sapateiros na cidade e me vejo sem opções. Depois de algum desespero, lembro que é muita sorte minha estar hospedado numa casa que tem todo tipo de ferramentas que se possa imaginar. Lixamos a sola no esmeril e, incrivelmente, a cola de sapateiro funciona. “A fé move montanhas”, que Piu tem tatuada na barriga, nunca foi tão verdadeira.

Além do ciclo diário, as marés seguem um ciclo lunar, que dita se a variação diária vai ser pequena ou grande. Chamam de maré morta os dias desse ciclo em que a maré não sobe nem desce muito; uma coisa mais parada. Toda hora, Piu me falava que a maré estava “morta”, sem que eu conseguisse entender do que ele estava falando; sentia apenas, uma grande mansidão na cidade e nas águas também. Descobriria alguns anos depois que a maré é uma coisa peculiar de Cumuruxatiba; como a areia fica plana perto do mar, cada centímetro que as águas subam representa uma variação imensa na extensão da faixa de areia da praia.

A maré recomeçando (na maré cheia, a água recua bem mais longe, alcançando até esses barcos mais distantes, como eu veria anos depois)

Já tinha perdido a noção dos dias quando me dei conta que já havia descansado o bastante, consertado o tênis e ainda, conhecido Cumuruxatiba suficientemente bem. Era muito confortável “ir ficando” naquela casa aconchegante com Piu e Sérgio, mas percebia que ia se criando uma dificuldade de partir que lembrava o que se tinha passado em Caraíva.

Comprei comidas pra levar e cozinhei um macarrão que embalei pra viagem, pensando em comer no dia seguinte. Essa preparação acaba me ajudando incorporar a idéia de que amanhã vou realmente seguir a diante, ainda que sem saber exatamente que rota pegar nem onde parar para dormir. A próxima cidade é Prado, a última da Rota do Descobrimento; imagino que terei menos praias paradisíacas para visitar. Pelas minhas pesquisas -bem superficiais- sobre o caminho, o próximo lugar do qual já ouvi falar é Itaúnas, que fica a umas centenas de quilômetros de onde estou.

Vou começar a passar por uma miríade de cidades que nunca ouvi falar e isso me assusta um pouco. Quero andar o máximo de quilômetros por dia e me testar fisicamente, mas não tenho a menor idéia de como isso vai ser. Sei que minha bicicleta é bem simples e carrega algumas ferrugens do tempo -que se agravaram com as águas salgadas que passei.

A foto da despedida. Piu fez questão de catar uma tora de bambu pra representá-lo na foto; disse que a bicicleta era um signo meu e ele também precisava de um elemento dele (não com essas palavras, mas num tom bem mais cômico que não vou saber reproduzir).

Ponta de Areia, 8 (próximo capítulo)

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