Ponta de Areia, 8
8. Rally de emoções e momento manutenção
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8. Rally de emoções e momento manutenção
O plano era sair cedo da casa do Piu, mas já são dez da manhã e ainda não montei na bicicleta; cogito adiar. Está sol e ameaça chover pelos próximos dias e me disseram que a estrada para Prado fica horrível com chuva, então, num misto de impulso e teimosia, parto.
Demoro para sair do perímetro urbano de Cumuruxatiba e descubro que não conhecera metade da cidade. Pego uma curva em cotovelo com uma represa onde os locais se banham, mas antes, paro diante de uma falésia infinita, margeada por uma longa areia molhada. Lembro que a maré está ficando mais intensa a cada dia e sinto que criei alguma intimidade com o subir e descer das águas do mar. Penso que, a partir de hoje, os dias de viagem vão ter mais altos e baixos, e sinto que talvez tenha me apegado a uma analogia cafona que acabava de se tornar inevitável.
Assim que acaba a pavimentação, me vejo numa subida longa por estrada de chão, onde logo penso que o caminho do dia vai ser penoso. O terreno está ruim, cheio de costelas de vaca e buracos, o que mobiliza a bicicleta a apresentar novos barulhos mecânicos. Percebo que o bagageiro (a estrutura de ferro que prende as bolsas) rachou em um dos dois pontos de fixação. Trago itens de gambiarra e decido colocar uma corda pra garantir que as bolsas não caiam pra trás caso a outra ponta quebre. Em pouco tempo percebo um balançar estranho na traseira e paro para constatar que, de fato, a outra parte também rachou; me orgulho da gambiarra me ter evitado um problema maior.
Tenho poucas informações sobre o caminho; apenas que é bem intuitivo e que há um atalho opcional logo à esquerda numa palmeira (esqueceram de falar que elas são o que mais tem no caminho). Minha água está acabando quando vejo uma entrada na direção do mar e decido testar.
Conforme me aproximo, vou vendo a água com cores que nunca vi -um verde reluzente- e, pela décima vez na viagem, decido questionar minha própria sanidade. “Melhor não perder tempo avaliando isso agora, mas vou tirar umas fotos, vai que é real…”, penso. Desço por um barranco e logo vejo uma casa muito próxima do mar.
Contam que gostam dessa casa na praia deserta, mas que não são dali e me oferecem água. Não sabem me dizer nada sobre o atalho que eu procurava, mas contam de um caminho por dentro da propriedade que leva de volta à estrada em que eu estava, então, sigo por ele.
Começa a chover com muita força e a estrada fica rapidamente enlamaçada. São muitas subidas e descidas curtas, mas bastante inclinadas; como se a estrada fosse no alto da falésia, mas passasse ao nível do mar volta e meia. Com a lama, o manejo da bicicleta, com pneus semi-lisos, vai ficando especialmente difícil.
Descendo uma dessas, minha roda da frente chega a travar, derrapando junto com a traseira; passo muito perto de cair. Paro um pouco para me recuperar do susto e tentar entender o que houve. Tenho pouca experiência com bicicleta cheia de bagagem, mas começo a refletir e penso que o peso está todo na traseira e isso deve mudar bastante o comportamento dos freios. Percebo que o câmbio dianteiro também parou de funcionar e, sem hesitar, começo a mover a corrente com as mãos para operar a troca de marchas.
Começo a cantar e a falar comigo mesmo em voz alta no meio da estrada deserta e isso vai me ajudando a me equilibrar nas descidas barrentas. Mesmo indo com muito cuidado, chego a dar algumas derrapadas, então decido que vai ser mais prudente descer empurrando a bicicleta. Errado. Mesmo meu recém-consertado tênis tendo cravos, o manejo a pé se prova ainda mais difícil e quase caio mais uma vez.
Paro mais uma vez para avaliar a situação e percebo que não tenho muitas opções. Lembro que meus primos me zoavam quando eu era pequeno por que meu pai era muito ruim no futebol e que então, provavelmente, eu também me tornaria. Era triste reconhecer que estavam certos, mas, por esse mesmo raciocínio, eu deveria possuir um grande talento para dirigir máquinas -já que meu pai maneja motos e carros com a perícia de um dublê de filme de ação. Penso que vai ser melhor confiar na minha habilidade do que ficar refém do sol ou de uma improvável carona na chuva.
É um caminho que demanda toda a minha concentração; cada pequena descida ou curva vem com uma derrapada que convida a um tombo. A cada recusa, me sinto confiante e sereno. Não chego a passar perto da morte nem nada assim; tudo acontece em baixa velocidade, com riscos mitigados. -mas, todavia, uma experiência inesperada e intensa. -Levaria pra vida inúmeras metáforas sobre controle a partir do que vivi nesse dia.
Depois de toda a dureza da marcha e bagageiro quebrados, quase-tombos incessantes e ainda com frio pela chuva, chego a Prado com o sol da tarde queimando. Como é a última cidade da Rota do Descobrimento, trago a expectativa de encontrar alguma surpresa histórica, arquitetural ou, apenas uma praia linda. Não encontro nada disso e, tampouco, peças de reparo para minha bicicleta.
Rumo logo para Alcobaça na tranquilidade de um caminho asfaltado e plano de menos de 20km de distância. Sentir os pneus firmes na pista e o vento na cara me dá um grande alívio depois daquele barro todo. Chego em menos de uma hora -deslocamento intermunicipal mais rápido da viagem até agora.
Consigo uma mangueira num posto de gasolina e tiro a lama da bicicleta e, em seguida, consigo um câmbio dianteiro novo num cicle ao lado. Estou pronto para seguir e o sol já vai deitando, mas parece ainda dar tempo pra ir até a próxima cidade. Pedalo por uma estrada plana, vazia e em boas condições; o sol já vai se deitando e o calor, diminuindo.
Há uma música que eu escutei em quase todos os dias da viagem: Ponta de Areia, na versão do Wayne Shorter com Milton Nascimento, do disco Native Dancer, 1975. Toda vez que ouvia, passava um filme da viagem e eu imergia em sentimentos diversos; desde minha jornada pelo interior de Minas Gerais no ano passado, até coisas da infância. Eu nunca tinha pensado onde ficaria Ponta de Areia; podia nem ser um lugar real, inclusive por que a letra da música fala de Minas e de mar ao mesmo tempo, elementos que não se articulavam na minha cabeça.
Estou em frente a uma placa que aponta meu destino, Caravelas, à direita e “Ponta de Areia”, à esquerda. Estou exausto e já aconteceu tanta coisa hoje que custo a acreditar que acordei -tarde- em Cumuruxatiba. Não tenho um smartphone para me informar e fico pensando que essa placa foi obra de alguma entidade afeita ao despiste; preciso encontrar algum lugar para dormir e quase não tenho dinheiro em espécie. Contenho a placa em algum lugar do inconsciente e finjo que não ter nenhuma relação com a música.
Logo na entrada de Caravelas, vou perguntando aos passantes sobre a existência de campings na cidade. Encontro uma pousada e paro para saber preços, mas a porta está aberta e a recepção, vazia. Insisto em perguntar por alguém, quando, do nada, uma matilha vem para cima de mim. São uns cinco bichos de porte médio ou pequeno, com um latido bem agressivo. A dona aparece sem entender o que se passa e me diz que não estão abertos para hóspedes. Não consigo sair por que estou usando a bicicleta como barreira para os cães enquanto a mulher, apática, não faz nada.
Consigo voltar à rua e pedalar com os bichos no meu encalço; um, mais agressivo, tentando me morder. Fico tomado de indignação pela falta de noção e pelo risco desnecessário de ser mordido, precisar de anti-rábica etc., mas retorno à prioridade de arrumar lugar pra dormir. Minha faceta ressentida que remói as coisas ruins está aprendendo na marra a deixar as coisas de lado e focar no que mais importa.
Encontro mais uma pousada -dessa vez, aberta- e decido procurar um pouco mais em busca de um preço melhor. Tinha a expectativa de arrumar algo a vinte reais, conforme algumas que havia visto na beira da estrada, mas ainda não descobri que Caravelas tem turismo, então, fico com a pousada de 35R$, que é a mais barata.
Lembro que trouxe uma comida que preparei ontem na casa do Piu e percebo que meu pote chegou bem, a despeito de toda aquela lama. Preferiria uma refeição e há um restaurante aberto ao lado da pousada, mas não posso jogar meu macarrão frio no lixo. Acaba caindo super bem e logo vou dormir.
Depois de uma longa luta com os mosquitos, acabo perdendo a hora de acordar. O café da manhã da pousada é simples, mas genial; queijo da roça, pão fresquinho, geléia, suco e tudo mais que se poderia esperar de uma pousada cinco vezes mais cara.
Descubro que terei um longo trecho sem cidades, de modo que parece prudente tentar resolver o bagageiro quebrado antes de seguir. Acabo encontrando um que serve, mas descubro que meu eixo é mais largo que o padrão, demandando uma adaptação.
Já estamos na tarde quando acabo de resolver a bicicleta e, no processo, me informei que há um longo caminho até a próxima cidade, pois o caminho pra Mucuri envolve contornar um grande delta de rio, adentrando o continente. Tenho cinquenta reais em espécie e, ficar na pousada mais um dia envolveria ficar quase sem nada na carteira. O dono da pousada, que a essa altura, já sabia de toda minha saga, me oferece uma carona para Teixeira de Freitas, onde poderia sacar dinheiro. Posso resolver mais esse problema e aí acordar bem cedo amanhã, penso.
Entro num carro com quatro desconhecidos que parecem ser uma família e logo entendo que o propósito da viagem é de levar a criança numa clínica, já que Caravelas não possui uma. Conforme pegamos a estrada, descubro que homem que dirige não tem vínculo com ninguém aqui e trabalha para a câmara de vereadores local. “Ah mas que legal que a câmara oferece essa ajuda, pois seria melhor do que o prefeito fazer isso pra ficar com uma boa imagem, né?”, digo. Da resposta ao comentário otimista, descubro que era um vereador específico que estava oferecendo o motorista e que, portanto, cada político oferece “ajuda” em seu nome próprio, (embora, às custas do contribuinte). Questiono se eles votaram naquele mesmo vereador e a resposta positiva dá ares de inconveniência à pergunta. Está muito desconfortável -o banco de trás parece ser uma tábua dura com um pano fingindo ser estofamento-, mas acabo de perceber que o Brasil é muito mais complexo do que todas as conversas sobre política que já tive.
O motorista corre bastante, me fazendo pensar que pedalar é mais seguro do que viajar com desconhecidos; “não posso falar nada, estou de favor aqui”, penso. Regresso à pousada já à noite e com o sentimento de ter podido entender um pouco mais sobre a política nacional misturado à frustração de não ter avançado nenhum quilômetro na direção de casa.
Ponta de Areia, 9 (próximo capítulo)