“Deixe minha zona de conforto em paz!”

Frederico Mattos
8 min readSep 16, 2015

Pela defesa de quem não quer fazer grandes mudanças na vida

Por Frederico Mattos, psicólogo clínico

Há uma tendência mundial instalada no Brasil, de que a única vida legítima e admirável seria aquela cheia de vigor, empreendedorismo, pontos de virada e com acontecimentos extraordinários. Superficialmente tudo parece adorável, afinal, buscar melhorias é um ingrediente excelente para a felicidade, o sucesso e o crescimento pessoal e coletivo.

Mas o desconhecimento profundo da personalidade humana pode criar um efeito colateral em muitas pessoas que buscam o autoconhecimento: o de desenvolver uma insatisfação crônica e uma necessidade sufocante por auto-reconhecimento, baseado na idealização sobre melhoras pessoais.

Sou psicólogo clínico, já atendi pessoas por mais de 11 mil horas e apesar de incentivar a transformação humana também cheguei numa conclusão libertadora ainda que óbvia: ninguém é obrigado a ser incrível, ter uma vida invejável ou estar motivado para fazer grandes revoluções pessoais. Está tudo bem se uma pessoa não tem grandes aspirações pessoais se ela banca o resultado disso.

Quem ganhou má fama nessa febre por mudança psicológica é a "zona de conforto" transformada na pior praga a ser combatida na atualidade. Se ela é confundida com a sensação de conforto emocional o problema é ainda maior.

O desenvolvimento da segurança psicológica humana

Você não precisa se sentir culpado por que não trabalha com uma vista deslumbrante no mar do Caribe

Parece óbvio, mas é bom reforçar que fomos gerados num lugar muito privilegiado e seguro, o útero materno, que funciona praticamente como um open bar. Havia comida, oxigênio e conforto disponível vinte e quatro horas por dia e nada relevante nos interrompia ou tirava o sono.

Segundo John Bowlby (1907–1990) — psicanalista britânico que desenvolveu a “Teoria do apego”e estudou a relação íntima entre mãe e bebê — a criança lida com o amadurecimento e afastamento da mãe (ou figura cuidadora) em três fases de progressivo desapego.

  • Protesto: fase de choro, gritos, pequenos pontapés e socos da criança carregados de sofrimento e raiva, em que nenhuma pessoas parece conseguir substituir a mãe na sua ausência. Costuma durar de algumas horas à algumas semanas.
  • Desespero: fase de luto em que ocorre uma desistência em relação ao retorno da mãe, é a fase em que ela se vê forçada a interagir à contragosto com outros estímulos, parece até que ela está apática.
  • Desapego: nessa fase o bebê permite interação com outros adultos, lugares e situações sem demonstrar grande desconforto.

A segurança humana se desenvolve em ciclos de apegos e desapegos sem jamais ultrapassar um nível razoável de conforto.

Pois é, precisamos de conforto…

O conforto psicológico é uma condição mínima e básica para que a mente se desenvolva de forma saudável, sem grandes sequelas ou efeitos colaterais irreversíveis.

Boas condições de saúde, sociabilização e carinho reforçam essa sensação, portanto, oferecer as melhores condições para que uma pessoa se desenvolva em qualquer fase da vida é fundamental para que desperte nela o senso de curiosidade e crescimento.

Uma pessoa com um senso de estabilidade interna consegue lidar com todas as demandas da vida cotidiana, aquelas pequenas operações práticas que permitam sua sobrevivência, a boa capacidade de resolução de problemas, envolvimento emocional e o sucesso necessário para ser um adulto produtivo e capaz de se relacionar com segurança com outras pessoas. É nessa esfera de segurança que o risco pode acontecer, pois existe uma base bem sólida para o desassossego.

Quando essa película de proteção psíquica é quebrada de forma brusca ou insuportável ocorre um processo de rompimento da conexão entre a pessoa e a realidade: o surto psicótico.

A idealizada antítese da “zona de conforto” seria um estado que misturaria delírios e alucinações graves em que os conteúdos internos perturbadores vem à tona em forma de paranóia e destrutividade, pois o cérebro e a mente operam em termos de ordem, padrões e… conforto.

Mas, por que umas pessoas parecem mais capazes de grandes mudanças que outras?

Acreditar que existam pessoas que mudam radicalmente e não se apegam a nada é uma ilusão de ótica psicológica própria de nossa idealização sobre grandes viradas. Duas são as possibilidades.

A primeira, muito rara, é de que essa pessoa faz movimentos consistentes e sutis para gerenciar o sofrimento próprio de uma transição grandiosa. Ela navegou entre uma zona de maior desconforto e outro, mas sempre dentro da zona de conforto. Olhando de fora foi algo radical, mas não foi.

A segunda, muito comum entre os aventureiros pós-modernos, é um desapego defensivo, em que a pessoa bloqueia (inconscientemente) seus sentimentos e pensamentos de desespero acreditando piamente que está na sua zona de DESCONFORTO. Ela só consegue criar essa ilusão rebaixando o seu senso de percepção interna correndo o risco muito comum de não reaver mais sua capacidade de sentir efetivo contentamento pessoal.

Não meu caro American Sniper, você não ficou blindado do medo, apenas se tornou incapaz de sentir qualquer coisa real

Com o tempo ela passa a reforçar para si mesma a tese de que é adepta da aventura, da mudança e do risco quando na verdade desenvolveu um mecanismo contra-fóbico que a faz cair de cabeça em coisas amedrontadoras simplesmente porque desenvolveu um tipo “hanseníase emocional”. Essa pessoa passa a ser incapaz de experimentar emoções mais profundas, realmente significativas e duradouras com pessoas íntimas e aquilo que parecia inicialmente ser uma fonte de prazer, vira um vício. Quanto mais anestesiada ela fica, maior é a necessidade de estímulos intensos para sentir uma leve faísca emocional.

Os ícones da revolução pessoal

Qualquer mudança consistente, assim como aprender a tocar piano ou uma nova língua precisa de etapas, sempre garantindo um mínimo de conforto para que sejam duradouras. Pregar mudanças de vida quase radicais em 3 meses é uma ilusão oferecida por gurus de renovação. A intenção é boa, afinal cria uma necessidade de mudança em muito pouco tempo, mas o efeito no imaginário coletivo é danoso, pois as pessoas que não fazem ou querem essa travessia radical podem se achar fracassadas.

No momento que descrevemos uma vida que merece ser vivida em contraposição à outra, criamos um elitismo existencial nocivo em especial para muitas pessoas que não tem condições ou vontades de mudar.

Quem acha que está supostamente progredindo e saindo da zona de conforto também está fixado numa identidade confortável de ser um “rebelde que não se acomoda na zona de conforto”. Ali ela se sente blindada de qualquer crítica pelo fato de remar contra uma suposta maré de sedentarismo existencial.

Jen Selter com mais de 1,5 milhão de seguidores famosas pelos belfies (butt selfies) Fonte: https://instagram.com/p/mmLv6amkR0/

Nesse território surgem aqueles "iluminados" e auto-motivados crônicos que oferecem uma promessa revolucionária e sutil: "vou ajudar você a transformar a sua vida (medíocre, gorda, falida e ignorante) em pouco tempo se imitar meu estilo de vida e usar meu método".

A verdade que ninguém conta é que os ícones do "saiam da zona de conforto" fazem um upgrade da sua própria zona de conforto com mais fama, dinheiro, status e amor subindo nos ombros dos "preguiçosos". Nem todos tem essa motivação consciente, mas a mensagem que transmitem é de um tipo de assimetria insuperável para seus seguidores que acabam se sentindo "insuficientes crônicos".

Mesmo esse iluminado ao supostamente ter feito essa mudança caminhou numa zona de conforto, pois readequou minuto a minuto os seus parâmetros para se sentir financeira, emocional, intelectual e existencialmente ajustado na “nova” identidade de metamorfose ambulante.

Então buscar a mudança é uma ilusão?

Não, ilusão é imaginar que exista algum lugar psicológico saudável na fase de mudança que não seja também uma nova zona de conforto. O processo de metamorfose interno ocorre na zona de conforto.

O incentivo coletivo para que as pessoas malhem, enriqueçam, tenham vidas incríveis em lugares paradisíacos nivela a vida em picos tão altos que todas as pessoas em alguma medida sentem que estão perdendo tempo mesmo ao fazer coisas que as agradem, como ver TV ou andar no parque.

É verdade que existem casos bem crônicos e problemáticos de pessoas que estão sentadas numa bomba relógio prestes a explodir. O problema é quando todas as pessoas indiscriminadamente são taxadas de preguiçosas, infelizes e acomodadas por viverem vidas supostamente menos desafiadoras ou sem um grande e triunfante estouro pessoal ou profissional.

Expor uma pessoa constantemente ao medo desconfortável, sem nenhuma referência palpável do próximo passo é uma ilusão daqueles que tentam estimular mudanças intensas de carreira, relacionamento amoroso ou condição de vida.

Assim como uma dieta muito restritiva feita por muito tempo, expor alguém a um alto nível de estresse se tornaria insuportável e improdutivo, causaria um efeito rebote forçando o indivíduo a retornar para a condição anterior.

Mesmo na mudança estamos numa zona de conforto

Mas se eu me entregar para a zona de conforto o que acontece?

Nada demais e tudo bem, afinal o mito de que a verdadeira transformação só acontece nas mudanças radicais é superficialmente verdadeira quando olhada retrospectivamente. Ninguém fala sobre os seus projetos antes que tenham um sucesso mínimo e confessável.

Desculpa contrariar essa imagem clássica, mas muitas coisas mágicas acontecem na zona de conforto também

Se entregar ao cotidiano merece um lugar na vida, ou seja, respeitar os ciclos de movimentação mais intensa com as fases de calmaria.

O ponto-cego das abordagens que pregam o abandono da "zona de conforto" é que só uma pessoa com uma base sólida de personalidade pode suportar a sensação aparente de ausência de conforto. Para os 95% restantes o caminho das pedras, garantindo conforto após conforto, ainda é o meio mais efetivo de ajudar alguém à mudar.

Desse modo em alguns momentos é possível acelerar e também parar em outros para colher os frutos de esforços passados e não correr o risco de alimentar uma insatisfatoriedade infinita.

Mudar é diferente de amadurecer, sucesso é diferente de crescimento e conforto certamente é bem diferente de fracasso. Então respeite sua zona de conforto, ela também é sua aliada no bem-estar emocional.

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Frederico Mattos

Sonhador nato, psicólogo acolhedor, autor do livro "Maturidade Emocional". Ama ouvir histórias e descomplicar a vida. Escreve no Instagram @fredmattos