Demonstrações Financeiras na Prática: Demonstrativo do Fluxo de Caixa

Gutenberg Neto
8 min readJul 18, 2019

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Este é o terceiro de uma série de artigos abordando os diversos demonstrativos financeiros obrigatoriamente divulgados pelas empresas listadas em bolsa de valores, sob o ponto de vista do investidor fundamentalista. Para ler o primeiro artigo da série, sobre o Balanço Patrimonial, clique aqui, e para ler o segundo, sobre a Demonstração do Resultado do Exercício, clique aqui.

Dos demonstrativos tratados nesta série, o Demonstrativo do Fluxo de Caixa (DFC) é, de longe, o menos conhecido e compreendido. É fácil achar que, apenas analisando o Balanço Patrimonial e a Demonstração do Resultado do Exercício, já é possível obter um entendimento completo sobre a situação financeira de uma empresa e, de fato, é assim que muitos investidores agem. Apesar disso, o DFC é um documento importante que pode fornecer indicadores fundamentais na análise de uma empresa, que não estão disponíveis em outros demonstrativos.

Como o próprio nome indica, o DFC oferece uma visão geral sobre os fluxos de caixa de uma empresa. Ou seja, as movimentações (entradas e saídas) de dinheiro em um determinado período. Muitas empresas passam por sérias dificuldades, ou até mesmo vão à falência, por serem incapazes de gerar fluxo de caixa positivo e, por consequência, não conseguirem cumprir suas obrigações financeiras.

O DFC é dividido em 3 seções principais:

Atividades Operacionais

Dentro desta seção, são incluídos os fluxos de caixa referentes às atividades principais da empresa. Exemplos: pagamentos de funcionários, contas a receber, pagamentos de fornecedores e impostos.

A elaboração do fluxo de caixa para as atividades operacionais pode ser realizada de duas maneiras:

  • Método Direto

No método direto, os fluxos de caixa são apurados diretamente a partir da classificação dos recursos recebidos e pagos no dia a dia da empresa. É o método mais confiável, por envolver a análise das movimentações que de fato ocorreram no período.

  • Método Indireto

No método indireto, os fluxos de caixa são deduzidos a partir do lucro líquido da empresa, com ajustes diversos feitos a partir do Balanço Patrimonial, de forma a utilizar as variações do balanço para compreender a variação de caixa.

Atividades de Investimento

Aqui, é possível identificar o uso de caixa para atividades que visam tanto a manutenção do negócio da empresa, quanto a geração de novos negócios no futuro. Mais especificamente, entram nas atividades de investimento as aquisições de ativos não circulantes (como imóveis), de outros negócios, de aplicações financeiras, entre outras.

Atividades de Financiamento

Nesta seção, entram os fluxos de caixa relacionados ao financiamento da empresa, como empréstimos, pagamento de proventos, emissão de ações, entre outros.

Exemplo Prático — Valid

Para nossa demonstração prática, analisaremos os resultados da Valid (VLID3). A Valid é uma empresa com atuação global, presente em 17 países, que oferece soluções de segurança, relacionadas a sistemas de identificação, meios de pagamento e telecomunicação, certificação digital, entre outros. Abaixo, segue o DFC consolidado mais recente, referente ao 1º trimestre de 2019 (1T2019)[1], elaborada pelo método indireto (os valores mostrados são em R$ milhões):

DFC da Valid— 1T2019

No topo do demonstrativo, temos os fluxos de caixa das atividades operacionais. Partindo do lucro líquido no período, são somados (ou subtraídos) os componentes que não representaram de fato uma entrada ou saída de caixa no período. Exemplo: a depreciação é um custo que representa a perda de valor dos bens da empresa ao longo do tempo, seja por desgaste ou por obsolescência. Apesar desse custo ser subtraído do lucro da empresa, ele não representa uma saída direta de caixa (por mais que, em algum momento, a empresa possa ser obrigada a efetuar investimentos para compensar a depreciação), então ele é somado no DFC ao lucro registrado no período. A amortização funciona de maneira similar à depreciação, mas é relacionada a bens intangíveis, representando a perda de valor dos mesmos (como patentes, por exemplo) ao longo do tempo.

Como o DFC foi elaborado pelo método indireto, são contabilizadas as variações nos ativos e passivos da empresa no período a partir de seu Balanço Patrimonial (BP) para completar o fluxo de caixa operacional. Neste caso, variações positivas no BP serão subtraídas no DFC. Da mesma forma, variações negativas no BP serão somadas no DFC. Por exemplo, podemos ver que no 1T2019 houve uma redução de caixa referente aos estoques. Isso significa que houve um aumento de estoques no BP da empresa. Nesse caso, o caixa é reduzido pois houve um pagamento para a aquisição desse estoque. No futuro, quando houver redução de estoque em algum período, o fluxo de caixa será positivo para representar a entrada de recursos proveniente da venda dos produtos. No fim das atividades operacionais, vemos que a empresa gerou R$43.4 mi de caixa a partir de suas atividades operacionais no 1T2019, abaixo do resultado do 1T2018, que havia sido de R$47 mi.

Após as atividades operacionais, temos o fluxo de caixa de atividades de investimento. Aqui, percebemos que a empresa gastou R$19,3 mi de caixa em atividades de investimento no período, entre aquisição de bens imóveis, intangíveis (como patentes ou licenças de software, por exemplo) e uma pequena parte em títulos e valores mobiliários. Normalmente, essa seção é negativa, pois as empresas costumam investir na aquisição de bens para manter ou expandir seus negócios. Uma exceção notável ocorre nos casos de empresas que estejam precisando se desfazer de ativos, seja para obter caixa para pagamento de dívidas, ou para realizar um desinvestimento de forma a buscar um aumento de eficiência.

Em seguida, podemos observar o fluxo de caixa de atividades de financiamento. É nesta seção que são contabilizados os pagamentos de proventos a acionistas ou empréstimos, por exemplo. No caso da Valid, houve pagamento de juros sobre capital próprio (JCP) no valor de R$37,4 mi no 1T2019, algo que não havia ocorrido no 1T2018. Além disso, a empresa pagou um valor maior em empréstimos (saída de caixa), além de ter contraído novos empréstimos no valor de R$17,1 mi (entrada de caixa). O saldo final do fluxo de caixa de financiamento foi negativo em R$46,6 mi, uma perda consideravelmente maior do que no 1T2018 (R$15,4 mi).

No fim, o DFC indica a variação de caixa do período. Neste caso, é possível constatar algo interessante: apesar de ter tido lucro no período, a Valid teve uma variação negativa em seu fluxo de caixa (-R$22,5 mi), proveniente principalmente do pagamento de empréstimos e de JCP. Ou seja, terminou o período com saldo menor de caixa apesar do lucro obtido. Em alguns casos, uma empresa pode ser uma ótima geradora de caixa operacional e mesmo assim passar por dificuldades caso seja obrigada a realizar investimentos muito altos ou pagar juros de empréstimos elevados.

Indicadores

Com a análise do Demonstrativo de Fluxo de Caixa, uma nova gama de indicadores fundamentalistas se abre para ajudar a complementar nossa visão sobre uma companhia. A seguir, explico alguns desses indicadores. Em certos casos, farei referências a indicadores que podem ser encontrados a partir do Balanço Patrimonial ou da Demonstração do Resultado do Exercício. Se tiver alguma dúvida, sinta-se à vontade para revisar os artigos anteriores da série antes de prosseguir.

  • EBITDA (ou LAJIDA — Lucros Antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização): O EBITDA pode ser calculado ao somarmos a Depreciação e Amortização ao EBIT (Lucro Operacional, encontrado na DRE). Como depreciação e amortização são deduções do lucro que não indicam saída de caixa, o EBITDA busca representar a geração operacional de caixa da empresa. Apesar de ser uma métrica bastante utilizada no mercado, é preciso ter algum cuidado: mesmo que não representem saída de caixa, a depreciação e amortização são custos reais e em algum momento a empresa deverá realizar investimentos para manter o seu negócio, portanto descartar estas despesas não necessariamente dará uma visão correta da situação da companhia.
  • Margem EBITDA: Esse indicador é calculado ao dividirmos o EBITDA pela Receita Líquida (encontrada na DRE) do período, e indica a taxa de conversão de receita em geração de caixa operacional. Assim como outros indicadores de margem, é uma boa medida de comparação para avaliar a eficiência operacional de empresas do mesmo setor.
  • EV/EBITDA: Ao dividirmos o Valor da Firma (EV — Enterprise Value, que é o Valor de Mercado acrescido da Dívida Líquida) pelo EBITDA, chegamos a um indicador similar ao Preço/Lucro (P/L), ou ao EV/EBIT[2]. Através deste indicador, podemos identificar a quantidade de anos que seriam necessários para alcançar o atual valor da empresa (incluindo sua dívida) a partir da geração de caixa operacional corrente. Ao comparar com empresas do mesmo setor, pode ser uma maneira de identificar as que estão sendo negociadas de maneira mais barata (menos otimista) pelo mercado.
  • CAPEX (Capital Expenditure): O CAPEX representa o quanto de caixa a empresa utilizou no período para adquirir bens necessários para a manutenção ou expansão de seu negócio. Alguns setores são fortemente dependentes de capital, e exigem investimentos constantes (ex: maquinário, bens imobiliários), enquanto outros setores são menos dependentes de capital, e têm mais liberdade de usar seu caixa para outros fins (como distribuir para os acionistas). No DFC, o CAPEX pode ser encontrado no fluxo de atividades de financiamento, nas linhas referentes a despesas ou aquisições de bens diversos. No caso da Valid, contabilizamos os custos com “Aquisição de imobilizado” e “Aquisição de intangível” como CAPEX, totalizando R$ 18,8 mi no período.
  • Fluxo de Caixa Livre (FCL): Também conhecido por FCF (do inglês, Free Cash Flow), é calculado ao subtrairmos o CAPEX do Fluxo de Caixa Operacional (FCO). Este indicador representa o quanto de caixa sobrou na empresa após os gastos com imobilizado e intangível no período. A partir do FCL, a empresa pode utilizar a sobra para atividades de financiamento ou para aumentar seu caixa. Uma empresa que seja incapaz de gerar um FCL positivo ao longo do tempo tende a queimar caixa, se endividar e, eventualmente, terá problemas para manter seu negócio. Ao subtrairmos o CAPEX (R$18,8 mi) do FCO (R$43,4 mi) da Valid no período, chegamos a um FCL de R$24,6 mi no 1T2019.

Com a compreensão do Demonstrativo do Fluxo de Caixa, assim como do Balanço Patrimonial e da Demonstração do Resultado do Exercício, o investidor adquire importantes ferramentas a serem utilizadas durante o processo de análise de uma empresa. Ao reservar um certo tempo para olhar as demonstrações financeiras e avaliar os números diretamente, é possível obter um entendimento sobre a situação atual da empresa, a sua evolução ao longo do tempo, assim como elaborar premissas quanto ao futuro da mesma. Este processo de análise é fundamental para o investidor de valor, que busca obter ganhos no mercado ao longo do tempo através do investimento em empresas que ofereçam boas perspectivas, sem se importar com movimentos de preço de curto prazo.

Espero que essa série de artigos tenha sido útil. Se alguma dúvida permaneceu, fique à vontade para perguntar. Um abraço!

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Gutenberg Neto

Mestre em Informática pela Universidade Federal da Paraíba e co-fundador da Fuze.cc. Entusiasta de investimento em ações.