O vírus que somos III: Estranhamento

Marcos Beccari
6 min readApr 12, 2020

Este texto é a parte III da série O vírus que somos, composta de 5 partes.

Outras partes: I. Perdido en el siglo | II. Enquadramento | IV. Confinamento | V. Desaparecendo | Poslúdio I

III. Estranhamento

A imunidade de uns pela vulnerabilidade dos outros

Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. […] O homem é estrangeiro no mundo — Vilém Flusser [1].

E m Bios: biopolítica e filosofia, O filósofo italiano Roberto Esposito mostra-nos como o paradigma da imunização envolve o horizonte semântico do vocábulo latim munus: “o significado mais incisivo de inmunitas se inscreve no reverso lógico de communitas — imune é o ‘não ser’ ou o ‘não ter’ nada em comum” [2]. No direito romano, munus indicava tanto a função a ser exercida quanto o imposto a ser pago por todos que pertencem a uma comunidade; inmunitas, por sua vez, designava o privilégio que exonera alguém desses deveres comuns.

Esposito argumenta, a partir disso, que toda communitas deriva da razão imunológica que consiste em estabelecer uma hierarquia entre os indivíduos, desde aqueles que são isentos de encargos e impostos (os inmuni) até aqueles que devem ser excluídos (os demuni) por serem potencialmente perigosos à comunidade.

Deste modo, Esposito incrementa a noção foucaultiana de biopolítica com o seguinte paradoxo: a normatização da vida comunitária implica não só uma distinção valorativa entre os indivíduos, como também a autoridade de sacrificar algumas vidas em prol da proteção de todos. É somente a partir de 1772, com a invenção da vacina contra a varíola, que a noção de imunidade migraria da esfera legal para adquirir um significado médico.

Acrescente-se o fato de que, até por volta de 1880, a observação microscópica ainda era considerada uma visão anedótica, isto é, sem qualquer função além de revelar detalhes inúteis [3]. Para que pudesse existir, então, algo como a epidemiologia moderna, não bastava um aparelho que tornasse visível o invisível; foi preciso toda uma rede discursiva para tornar material o imaterial. Analogamente, e não por acaso, a fotografia emerge no século XIX não tanto como um “avanço” técnico (na esteira da câmera escura e demais aparatos de projeção), mas antes de modo a materializar uma emergente regularidade visual: para documentar patologias, registrar evidências criminais, distinguir anatomias normais e anormais, revelar o exotismo dos povos “nativos” etc. A fotografia só se tornou possível na medida em que ela própria tornava possível uma ampla gama de práticas de vigilância e categorização.

Esse conjunto de elementos parece-me útil para compreendermos o que Foucault chamava de “biopolítica”, que não se resume a um tipo de governo “preocupado” com a vida da população. Entre 1975 e 1976 — respectivamente em Vigiar e punir e no primeiro volume da História da Sexualidade — Foucault passou a se debruçar sobre todo um arranjo de técnicas disciplinares que vigoraram do século XVIII ao XIX e que ultrapassavam a esfera legal ou punitiva em direção a um nível “somatopolítico”: o adestramento dos corpos, a divisão temporal trabalho-descanso-lazer, a distribuição do espaço conforme funções produtivas, a normatização de uma individualidade disciplinada. Assim, como sintetiza Paul B. Preciado, a biopolítica se incumbe de “fabricar um corpo, pô-lo a funcionar, definir os seus modos de reprodução, prefigurar os modos de discurso através dos quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer ‘eu’” [4].

Equivoca-se, portanto, a leitura que contrapõe biopolítica à necropolítica — mesmo Mbembe, que cunhou o último conceito, não o define desse modo [5]. O biopoder é aquele que se exerce tanto sobre a vida quanto sobre a morte das populações. Se em Vigiar e punir Foucault parecia restringir as práticas disciplinares ao domínio corporal, é porque os corpos eram os primeiros “dados” levados em conta na lógica utilitária oitocentista, em seus cálculos para intensificar a produtividade e minimizar os gastos da produção. Já no curso Em defesa da sociedade, Foucault discorre sobre como o racismo funciona como uma “condição de aceitabilidade de tirar a vida”, uma vez que “assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população” [6]. Daniele Lorenzini abrevia apuradamente a questão em texto recente:

Em suma, a biopolítica é sempre uma política de vulnerabilidade desigual. Longe de ser uma política que apaga as desigualdades sociais e raciais ao nos lembrar de nosso pertencimento comum a uma mesma espécie biológica, é uma política que depende estruturalmente do estabelecimento de hierarquias no valor da vida, produzindo e multiplicando a vulnerabilidade como meio de governar pessoas. […] O vírus não nos coloca em uma base de igualdade. Pelo contrário, revela descaradamente que nossa sociedade depende estruturalmente da produção incessante da vulnerabilidade desigual e de desigualdades sociais. Daniele Lorenzini

Noutros termos, o que o Covid-19 põe a funcionar é uma regulação mais acirrada dos modos de vida, sobretudo em termos de responsabilização individual, hierarquização dos corpos (o chamado “isolamento vertical”) e distribuição das mortes iminentes. Porque quando o discurso estatal toma a “prevenção” como objeto de urgência, trata-se menos de saúde pública do que de uma guerra pela inmunitas. Considerando que a política é a continuação da guerra por outros meios [7], o trabalho de prevenção sempre começa pela contenção do pânico e da desordem, e isso por meio de cálculos estatísticos que permitem o diagnóstico dinâmico da situação e a manutenção dos riscos em níveis “aceitáveis”, ou seja, mediante as mortes já registradas. Mas todo esse aparato técnico só existe para dar conta de uma população desde sempre já sujeita ao descontrole, seja a partir de uma epidemia, seja por uma crise de abastecimento, ou mesmo na esteira de uma revolta popular. A guerra, portanto, embora nunca declarada, não é de hoje e tem como alvo a violência iminente da população, de modo que “a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra” [8].

Os mecanismos de segurança, ademais, são diariamente aperfeiçoados à guisa dos chamados aparelhos smart, que tornam a vigilância e o rastreamento da população uma realidade sem precedentes na história. Em vez de causar o mínimo de constrangimento, essa vigilância é amplamente assimilada como “qualidade de vida”, de tal forma que nos apavoramos quando nos encontramos off-line ou quando não conseguimos recuperar uma senha. Logo, antes de nos isolarmos em quarentena face à pandemia, já estávamos voluntariamente confinados à (in)segurança de uma comunidade global cada vez mais autoimune. Isso porque não é a eliminação do inimigo o que garante a inmunitas, mas a própria permanência da guerra em nome da proteção/prevenção/regulação.

A questão que sempre esteve em jogo, portanto, se enuncia hoje com clareza: às custas de quais vidas a serem sacrificadas continuamos dispostos a nos proteger?

Leia as outras partes de O vírus que somos:

I. Perdido en el siglo: A ameaça do que não conseguimos deixar de ser.

II. Enquadramento: A sombra do sol e a normalidade da anomalia.

IV. Confinamento: Quando a prevenção se confunde com prostituição.

V. Desaparecendo: Uma eugenia à nossa imagem e semelhança.

Poslúdio I: Um golpe brando e a ficha que não cai.

Notas

[1] Flusser, Vilém. Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume, 2011, p. 52.

[2] Esposito, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa: Ed. 70, 2010, p. 81.

[3] Ver, a este respeito: Foucault, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 191.

[4] Este e os demais trechos em língua estrangeira foram aqui traduzidos livremente por mim.

[5] Ver, a este respeito: Mbembe, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1, 2018, p. 16–24.

[6] Foucault, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975–1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 306, p. 308.

[7] Ibidem, p. 22.

[8] Ibidem, p. 59.

--

--