Resumo do mês

Março

Matheus Massias
31 min readApr 1, 2014

Março foi marcado pela minha mudança de Belém para Florianópolis, com uma quebra de ritmo em assistir filmes, por causa das aulas da pós-graduação e de todos os trâmites da mudança e de dividir o lugar onde se mora. Na primeira semana em que cheguei fiz questão de ir ao shopping mais próximo, o Iguatemi, do bairro da Trindade, acho que foi uma quinta-feira bem produtiva. Vi três filmes. Isso foi um tanto desconfortável por causa das salas de cinema do CineSystem, que nem se comparam com as poltronas do Cinépolis de Belém. Isso, porque se tem algo de positivo nos cinemas de shopping, é o conforto que eles podem proporcionar, por nos fazer esperar e assistir comerciais e trailers infindáveis antes do filme começar, e uma outra porção de coisas chatas. Assisti menos filmes esse mês, mas pude completar uma lista de filmes que tinha feito em outubro do ano passado, uma lista de filmes inteiramente brasileiros, da qual eu escolheria cinco para passar e apresentar na III SAEL (Semana Acadêmica dos Estudantes de Letras) da UEPA; acabei escolhendo meio que arbitrariamente O Céu Sobre os Ombros (2011), um documentário super bem recomendado por um amigo meu, À Meia-Noite Levarei Tua Alma (1964), O Bandido da Luz Vermelha (1968), O Homem Que Virou Suco (1981) e O Que é Isso, Companheiro (1997) e Durval Discos (2002); não pudi exibir todos, infelizmente. Os filmes da lista não cobrem cem porcento a história do cinema brasileiro, mas tentei fazer um apanhado mais ou menos significativo do que já foi produzido em nosso país. Os filmes em negrito foram os que foram vistos no cinema comercial, no cinema do shopping Iguatemi, mais especificamente. No mais, tive a oportunidade de ir ao Cinema do CIC, onde vi dois grandes filmes, Fruitvale Station e Instinto Materno; além de poder concluir a Trilogia da Depressão, com o segundo volume de Ninfomaníaca.

101. A Música Segundo Tom Jobim (2012, Brasil, Dora Jobim/Nelson Pereira dos Santos) — ***

102. Baixio das Bestas (2006, Brasil, Cláudio Assis) — ****

103. Buufo & Spallanzani (2001, Brasil, Flávio R. Tambellini) — **

104. Cazuza: O Tempo Não Pára (2004, Brasil, Walter Carvalho/Sandra Werneck) — ***

105. Cidade Baixa (2005, Brasil, Sérgio Machado) — ***

106. Sem Escalas (Non-Stop, 2014, EUA/França, Jaume Collet-Serra) — ***

107. Doze Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013, EUA/Reino Unido, Steve McQueen) — *****

108. Philomena (Philomena, 2013, Reino Unido/EUA/França, Steven Frears) — ****

109. Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976, Brasil, Bruno Barreto) — ****

110. Eles Não Usam Black-Tie (1981, Brasil, Leon Hirszman) — *****

111. Garapa (2009, Brasil, José Padilha) — ***

112. Loki — Arnaldo Baptista (2008, Brasil, Paulo Henrique Fontenelle) — ****

113. Lúcia McCartney, Uma Garota de Programa (1971, Brasil, David Neves) — *

114. Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977, Brasil, Hector Babenco) — ***

115. Matou a Família e Foi ao Cinema (1969, Brasil, Júlio Bressane) — **

116. O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006, Brasil, Cao Hamburger) — ****

117. O Cheiro do Ralo (2006, Brasil, Heitor Dhalia) — ****

118. O Outro Lado da Rua (2004, Brasil/França, Marcos Berstein) — **

119. Ó Paí, Ó! (2007, Brasil, Monique Gardenberg) — ****

120. O Xangô de Baker Street (2001, Brasil/Portugal, Miguel Faria Jr.) — ***

121. Olga (2004, Brasil, Jayme Monjardim) — **

122. Os Desafinados (2008, Brasil, Walter Lima Jr.) — **

123. Tieta do Agreste (1996, Brasil/Reino Unido/França, Carlos Diegues) — ****

124. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, Brasil, Karim Ainouz/Marcelo Gomes) — ***

125. O Grande Herói (Lone Survivor, 2013, EUA, Peter Berg) — ****

126. Alemão (2014, Brasil, José Eduardo Belmonte) — ****

127. Fruitvale Station: A Última Parada (Fruitvale Station, 2013, EUA, Ryan Coogler) — ****

128. Instinto Materno (Pozitia Copilului, 2013, Romênia, Calin Peter Netzer) — ***

129. Fome (Hunger, 2008, Reino Unido/Irlanda, Steve McQueen) — ****

130. Ninfomaníaca: Volume 2 (Nymphomaniac: Vol. II, 2013, Dinamarca/Bélgica/França/Alemanha/Reino Unido, Lars von Trier) — ****

A Música Segundo Tom Jobim (2012) é um documentário que compila muito bem, de uma forma visual e musical, a carreira de um dos maiores nomes da música brasileira. Como o título indica, o documentário é dedicado a interpretações de músicas de Tom Jobim, por diversos artistas, do Brasil e de outros países, com as músicas cantadas em francês, inglês, italiano, alemão, é uma das coisas incríveis, que mostram o poder da bossa nova brasileira e da figura de Antonio Carlos Jobim. O maestro também aparece, desde novo, em fotos, até tocando violão, e detalhe: acho o jovem Tom Jobim muito mais bonito que o Frank Sinatra, que também aparece interpretando Corcovado e Garota de Ipanema. Ademais, aparecem Ella Fitzgerald, Dizzy Gillespie, o mestre de Tom (Vinicius de Moraes), grandes nomes da música brasileira, e muitos outros. O filme peca um pouquinho pelo fato de não trazer o expectador aquele caráter informativo e com background da vida do músico, mas isso com certeza não eram um dos objetivos dele, então não é um critério que o desmereça.

Baixio das Bestas (2006) é um filme que opera a partir de planos muito bem executados. Câmeras ora paradas, ora em movimento. Uma das cenas iniciais, Cláudio Assis, o diretor pernambucano por trás do filme, joga uma câmera se distanciando de Auxiliadora, menina que é aliciada por um senhor, que mais tarde descobrimos ser o seu pai, fixada num plano em conjunto, onde está ela e o senhor, com ele despindo-a, a câmera se distancia e vemos, num plano mais aberto, outras pessoas, que estão ali para a “exibição”. Cláudio Assis dá preferência, na maior parte, em utilizar a câmera imóvel, onde se estabelece um plano, e ele funcionalmente muda de acordo com a movimentação das personagens. É também curioso e bonito como o diretor usa o plongée absoluto, principalmente nas cenas onde estão Cícero (Caio Blat) e Everardo (Matheus Nachtergaele), no cinema onde passam a maior parte do tempo, bebendo e fumando, ou simplesmente matando o tempo, a câmera pega as personagens de cima, dando outra perspectiva ao expectador. É notável também a cena da cachoeira, que tem uma espécie de escada, as personagens de Blat e Nachtergaele estão nuas, e a câmera de novo é posicionada acima delas, mostrando-as de cima para baixo. Em contrapartida, Cláudio Assis movimenta a câmera em poucos momentos do filme, quando Cícero e Everardo e mais uns amigos estão reunidos com prostitutas e Everardo grita que é para todo mundo tirar a roupa, que a orgia vai começar, e de fato, algo acontece ali, o pedido da manteiga pode ser visto como uma referência direta a Último Tango em Paris (1972) e o desfecho da cena mostra e nos apresenta a índole da personagem de Nachtergaele. O filme, cujo roteiro é de Hilton Lacerda (que também escreveu A Febre do Rato, além de ter escrito e dirigido o atual Tatuagem), se desenvolve ao redor da personagem de Auxiliadora e a exploração dela pelo seu pai, que é um senhor, uma figura paternalista e bem reacionária da região do Nordeste, sempre munido com um cajado, o senhor fala de costumes e respeito, enquanto comete uma grande atrocidade que reflete a prostituição na zona de cana de açúcar. O elenco são figuras carimbadas da Globo, mas cujo trabalho é respeitável, além de Caio Blat e do incrível Matheus Nachtergaele, o filme conta com a paraense Dira Paes (a cena de seu estupro visto a partir da combinação de luz e sombra é incrível) e o grande ator pernambucano Irandhir Santos.

Bufo & Spallanzani (2001) tem uma daquelas tramas de mistério policial, mas que peca por diálogos forçados com um português formal demais que sabemos que não é falado na vida real, nem entre amantes, nem entre policiais. Isso complica bastante o filme. Rubem Fonseca foi um dos roteiristas, sendo que a história original é sua, que mescla flashbacks da personagem de Mayer com o momento presente, em que ele é escritor e entra para ajudar no desvendar da morte da personagem de Maitê Proença, que faz uma participação especial. O elenco, além dos já citados, é feito por Tony Ramos, Zezé Polessa (a menos forçada), Gracindo Júnior, Matheus Nachtergaele, Juca de Oliveira, Milton Gonçalves, e Isabel Guerón, que contribui com um nu gratuito um tanto desnecessário, mas vai ver que foi isso que me marcou na infância quando vi o filme para eu querer revê-lo.

Cazuza: O Tempo Não Pára (2004) traz a vida de Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido como Cazuza. Vivido pelo ator Daniel de Oliveira, que tem uma fisionomia que lembra a de Cazuza, cheio de vigor e sorrisos, entre mesas de bar e o palco com o Barão Vermelho. O filme é mediano, juro que quando fui ver esperava bem mais, esperava uma excitação maior nos ensaios e shows da banda, a relação dele com os integrantes, sua amizade com Frejat; não que o filme não mostre isso, mas senti que algo faltou. É claro, a maioria das pessoas que gostam do filme acham ele sensacional, por um modo acrítico de ver o filme como um filme e por causa da figura icônica representada de Cazuza nas telas. Marieta Severo como Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, dá um show a parte, tanto como mãe incondicional e fã passional, ao contrário do pai (Reginaldo Faria), que só acredita no filho depois que Caetano Veloso toca ao vivo a música Down em Mim, composição de seu filho. Faria, como João Araújo, além de pai, é um dos que impulsionam a carreira do filho, uma vez que é dono de um estúdio renomado e gravar a banda do filho não seria problema algum. Como todos devem saber, Cazuza contraiu o vírus HIV, e a partir de então sua vida virou de cabeça para baixo, o prazer vira risco de vida, o tom dramático que o filme assume não é tão profundo, apesar da perda de peso aparente de Daniel de Oliveira.

Alice Braga, Wagner Moura e Lázaro Ramos num filme: Cidade Baixa. História entre dois grandes amigos que se apaixonam por uma prostituta. O filme vai bem além do triângulo amoroso, uma vez que a amizade de Deco (Ramos) e Naldinho (Moura) é sempre mostrada sem nenhuma sombra de dúvida, mas que vai se desgastando no decorrer do filme, perceptível nos momentos em que os três estão cada vez menos juntos, e Karinna (Braga) ora está com um, ora está com outro, e nesse entretempo vemos a solidão de cada um. O pedido de uma carona a Salvador dá o pontapé inicial ao grande conflito do filme, e dois momentos são paralelos e de grande destaque: a luta de galos, um branco e um preto, que mais tarde se refletiria na briga entre Deco e Naldinho, que não era nenhuma aposta, mas tinha um grande troféu. A nudez e as cenas de sexo mostram a necessidade de contar a história, além das dificuldades que cada um tem para sobreviver, e como e o quê eles fazem para tal. A questão da prostituição é outro elemento, talvez o que mude a figura geométrica do triângulo para um quadrado, pois Karinna não é qualquer mulher, mas uma mulher que ganha a vida vendendo o corpo. Loira, Alice Braga, não está menos linda, mas diferente, dançando, fazendo amor, fazendo sexo por dinheiro, se dividindo entre dois homens, dois grandes amigos.

Sem Escalas (2014), novo filme com Liam Neeson, é um dos maiores clichês de filmes de ação que se passam em avião, mas o filme funciona bem. Uma mistura de ação e suspense, Liam Neeson consegue ter o filme sob controle, apesar da situação no avião, que o diretor dá destaque para o suspense a partir de closes nos rostos dos suspeitos, cada uma com uma característica, profissão, etnia, fisionomia diferente. Bill Marks (Neeson) é um agente que trabalha especificamente para a segurança de voos, mas apesar disso detesta voar, ao contrário de Jen (Julianne Moore), com quem Marks divide a maior parte da ação, e que fica a dúvida se ela está ou não com ele. Nancy (a linda Michelle Dockery), uma das aeromoças, também tem um papel importante, ajudando Marks ao lado de Jen. O filme é dirigido por Jaume Collet-Serra, que eu não lembrava pelo nome, mas já havia visto dele A Casa de Cera, o remake de 2005.

12 Anos de Escravidão foi um dos filmes que não consegui ver antes do Oscar, e vendo agora pude ter meu parecer sobre ele. Dirigido por Steve McQueen, que previamente fez Shame (2011), filme que me surpreendeu bastante e que me fez crer na habilidade do diretor, 12 Anos de Escravidão é uma adaptação de uma obra literária homônima, escrita e vivida por Solomon Northup, um negro norte-americano, renomado violinista, e livre há vários anos. Através de uma emboscada, Solomon é capturado, perde tudo, desde o nome à família, sua vida é transformada num inferno, a realidade assume uma nova face, uma face geralmente ensanguentada. Solomon, que vira Platt, passa por vários amos, vira propriedade, coisa, um animal; é vendido por ser um escravo diferenciado, sabe tocar violino; seu primeiro amo é Ford (Benedict Cumberbatch), um homem bondoso e terno, que trata Platt muito bem, ao contrário de Tibeats, um dos homens que trabalham para Ford, interpretado pelo brilhante Paul Dano, que com o pouco que faz, já é demais para o filme. Lá, Platt mostra ser um escravo bem engenhoso, chegando a construir uma jangada, e ganhando a confiança e o respeito de Ford. Mesmo sob os cuidados de Ford, Platt corre bastante risco por causa de Tibeats e outros que não gostam dele por causa de seu destaque, então ele passa para os cuidados de Edwin Epps, interpretado por ninguém menos que Michael Fassbender, que trabalhou em todos os features de McQueen até agora. Epps, um alcoólatra, que além de abusar de uma das escravas (Lupita Nyong’o, cuja performance é indiscutivelmente incrível), é bastante severo com os demais, inclusive com Platt; a maior parte do filme se passa em sua propriedade, uma plantação de algodão. A atuação é Chiwetel Ejiofor como Platt, ou melhor, Solomon Northup, é boa, sua personagem luta pela vida, querendo viver, e não sobreviver; sua luta interior é tão forte que seu consolo para a mulher que perdera o filho na venda é que ela pare de chorar e resista, Solomon é um homem forte, mas está destruído por dentro, e mais tarde por fora, como quando McQueen faz questão de mostrar aos expectadores a crueldade do chicote. 12 Anos de Escravidão é um exercício de reflexão, não só do passado, mas para os dias de hoje, em que ainda temos que enfrentar preconceitos e injustiças, sob diversas óticas, construindo vários discursos para poder lutar. A trilha sonora do filme é esplêndida também, dando valor aos momentos diegéticos, onde os negros entoam vários versos de luta e perseverança, um retrato digno do que mais tarde se transformaria em blues e gospel.

Philomena (2013), outro indicado a melhor filme no Oscar, é um filme bem tocante, com uma história pra lá de comovente, e que não apela demais no drama, muito pelo contrário, chega a dosar a narrativa com várias passagens descontraídas, ora guiadas por Judi Dench, ora por Steve Coogan, que dividem a maior parte do filme. Coogan, que faz a personagem de Martin Sixsmith, um ex-jornalista da BBC que pensa em escrever um livro sobre história russa, é uma pessoa bem realista e que não gosta de assuntos humanos, muito dramáticos ou românticos, mas sim de fatos, sejam da política ou da sociedade como um todo. Descrente desse mundo, Martin é pego de surpresa por Mary (Mare Winningham), filha de Philomena, que acabara de descobrir uma história surpreendente da mãe. Philomena, vivida por Judi Dench (não tem como não se lembrar de 007), é uma senhora que vive assombrada pelo passado e o que fizera na juventude; Philomena, na sua adolescência, tivera um filho, e assinando um termo, seu filho foi vendido e ela nunca mais pôde vê-lo. O filme se desenvolve na busca de Philomena e Martin, que vai escrever essa história de perda e arrependimento, por Anthony, seu filho. O filme, mesmo com o conteúdo dramático, tem várias passagens cômicas, como eu já havia comentado, e tem uma fotografia muito bonita, mas que chega a ser triste em certos momentos, em um tom que varia entre o verde e o azul, refletindo o clima lá fora, sempre frio, e o sentimento das personagens, ora de esperança, ora de melancolia.

Dona Flor e Seus Dois Maridos, filme de 1976, de Bruno Barreto, é adaptado do romance do grande escritor brasileiro Jorge Amado, é um dos grandes sucessos nacionais. Estrelado por Sonia Braga, José Wilker, e Mauro Mendonça, a história é no mínimo cômica, mas com detalhes sociais e de gêneros indiscutíveis: Dona Flor (Braga) é dona de casa, além de trabalhar ensinando como fazer quitutes, enquanto o marido, Vadinho (Wilker) é um gigolô, apostador, e mulherengo, todo dia tem um compromisso sério. O começo do filme mostra um bloco de rua, e inesperadamente um homem morre, esse homem? Vadinho. Em flashbacks e elucubrações, Florípedes se lembra de Vadinho, e após um tempo casa de novo, dessa vez com Teodoro, um farmacêutico, que é justamente o oposto de Vadinho, é um homem de caráter, sério, sem vícios, e respeita Flor. Comicamente o espírito de Vadinho volta, e começa a perseguir Flor, de uma forma bem sacana, como ele era enquanto vivo; assim o título do filme se autoexplica. Uma das coisas que chamam atenção no filme é o bom trabalho de câmera, além das atuações, ora sérias, ora com as personagens nuas; os diálogos são bem formais, não sei se foi algo tido como critério dos roteiristas, ou se se falava assim na época, o que acho difícil. Bruno Barreto, o diretor, tem outro filme que gosto bastante, O Que é Isso, Companheiro? (1997), e outro que não vi estrearem nos cinemas de Belém, mas que gostaria muito de ver: Flores Raras (2013); no entanto, o tão mal falado Crô: O Filme (2013) passou aos montes…

Eles Não Usam Black-Tie (1981) é um filme forte. Forte e intenso em atuações, que são brilhantes, com um elenco que comporta (dos que eu já conhecia) Fernanda Montenegro, Bete Mendes, Milton Gonçalves, Francisco Milani; além de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Alberto Riccelli (os que eu desconhecia), entre outros. O filme começa abordando dois assuntos sérios: noivado e greve, sendo que o segundo é o tema principal do filme, e a história se desenvolve a partir dele. Tem um ritmo lento, mas jamais é chato; sua trama se desenrola de maneira natural assim que as coisas vão acontecendo, e tudo ao redor vai desmoronando — Maria (Mendes) conta a Tião (Riccelli) que está grávida, então ele decide que devem se casar, ou melhor, noivar, primeiro; Tião e seu pai, Otávio, (Guarnieri, cujo roteiro é uma peça sua) trabalham numa fábrica, e as ameaças de greve são patentes, Otávio é um dos mais ativos no movimento, junto com seu braço direito, Bráulio (Gonçalves), e um dos mais radicais, o operário italiano, Santini, vivido por Milani, numa atuação explosiva. Além das questões supracitadas, como gravidez, casamento, e greve, o filme adiciona outros, como o livre arbítrio sobre entrar ou furar a greve, e suas consequências, questões de honra, mazelas sociais, o aparelho policial e como e para quem ele funciona, o ambiente familiar, a relação de pai e filho, entre outros implícitos nesses todos. Leon Hirszman conduz o filme de forma muito equilibrada, num primeiro momento, as personagens estão em harmonia, tudo está bem, a gravidez não é uma ameaça, uma vez que Tião recebeu a notícia de forma positiva; mas em um segundo momento, quando a greve está mais eminente, as coisas explodem, as personagens e suas atitudes fervem, as atuações ficam mais intensas e vemos a grandeza de atores brasileiros.

José Padilha é um dos diretores brasileiros que mais explora questões sociais em seus filmes; em Tropa de Elite (2007), por exemplo, ele trata de tráfico de drogas e violência, e agora em Garapa (2009), a fome. O filme é um retrato seco de três famílias que vivem no Ceará, duas no interior, e uma na periferia de Fortaleza; as famílias são mostradas de forma bem sincera, com nada mascarado, tudo à vista, desde as crianças nuas andando ou largadas pelo chão desde os ambientes familiares, precários e humildes. Em preto e branco, e sem nenhuma música, Padilha nos mostra o dia-a-dia dessas famílias, a questão da desnutrição, formas políticas de combatê-la, como o programa Fome Zero, que não consegue contornar a situação; além de desemprego, o cuidado com o sexo, etc. Em certos momentos perguntas são feitas aos moradores da casa, que respondem da forma mais franca possível, algo que não dá para esconder, nem esperar, as famílias sobrevivem de suprimentos básicos, como arroz e feijão, e a maioria das crianças é bem pequena ainda.

Arnaldo Baptista é um dos grandes nomes da música brasileira, tão importante quanto Caetano Veloso ou Gilberto Gil, embora menos conhecido, infelizmente. Os Mutantes é uma das bandas nacionais das quais mais admiro e gosto, e ver um documentário que parte de seu conteúdo e é dedicado a ela é no mínimo suspeito. Loki — Arnaldo Baptista (2008) traça a carreira do Mutante desde o início de suas ambições artísticas até o ano de 2008 mais ou menos quando foi lançado, passando pela fase da Tropicália junto aos Mutantes, a fase do Lóki? (1974) que é quando lança seu primeiro trabalho solo, a fase da Patrulha do Espaço, a fase crítica, a loucura, a tentativa de suicídio, o coma, o destaque internacional, a volta aos palcos, etc. O documentário é uma síntese da vida e da obra de um gênio, sua relação com o mundo e com as pessoas ao seu redor, ou até mesmo a falta delas, das pessoas e das relações; o trabalho tem um grande acervo visual, tanto imagético, quanto de vídeo (vários shows ao vivo), com fotografias de quando jovem, com seu irmão Sérgio Dias, os primeiros dias com Rita Lee, a fase inicial com Os Mutantes, depois a fase progressiva, os trabalhos solos, e assim por diante; há também relatos de músicos, tanto nacionais como internacionais, como Gilberto Gil, Tom Zé, Zélia Duncan (que mais tarde entrou na banda assumindo a voz feminina), os (ex-) integrantes (Sérgio Dias, Liminha, Dinho Leme), Sean Lennon, Devendra Banhart, Kurt Cobain, entre outros. O documentário peca um pouco na questão de mixagem, com a transição de entrevistas, mas nada que comprometa tanto; além de ficar um vazio documental da personalidade de Rita Lee, que não aparece dando nenhuma entrevista atual, assim como fica suspensa no ar a dúvida de sua saída da banda.

Confesso que baixei Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971) por causa do título, pois até então nunca tinha ouvido falar do filme. Mais um roteiro adaptado por Rubem Fonseca, de uma obra do próprio, e pode até parecer perseguição, mas não julgando as obras literárias, e sim os filmes em si, Lúcia McCartney é um filme bem fraco. Dirigido por David Neves, a história, como o título sugere, é sobre Lúcia, que adota McCartney por gostar dos Beatles, e nos primeiros momentos do filme, várias músicas da banda em que Paul canta são tocadas. A questão da prostituição no filme não é elevada a nenhum fator social ou crítico, deixando a história bem rasa, com um apelo maior ao amor que Lúcia sente por um de seus clientes, e vice-versa; Lúcia foge e a personagem de Paulo Villaça (O Bandido da Luz Vermelha) é contratada para achá-la; a personagem de Villaça também curte sair com prostitutas, tanto que no final até acaba ficando com Lúcia. O que é interessante no filme é o paralelo metafórico que o diretor, ou até mesmo Rubem Fonseca, insere entre cinema e prostituição, embora não tão explorado; o filme começa com avisos como “…as necessidades que o cinema e a prostituição satisfazem são as mesmas…” e “dizer que os expectadores entram no cinema como vão, ou iriam, ao bordel, não deixa de ser chocante, mesmo atenuando-se bastante a idéia com o acréscimo de que isso sucede sob um ângulo bem particular do exame…”. Ao invés de explorar esse binômio cinema-bordel, o filme se perde em diálogos um tanto forçados, perdendo um pouco dessa força quando a personagem de Villaça entra, mas não salvando o filme, além de uma edição feita em tropeços.

Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977) explora com precisão a moeda da corrupção, em que de um lado temos os bandidos, e do outro temos os policiais, assunto ainda recorrente nos dias de hoje. Baseado em fatos reais, o filme em nenhum momento chega a ser maniqueísta, até porque desdobra e mostra o lado podre dos policiais cariocas que agem junto com ladrões de banco, em que Lúcio Flávio é o líder, em troca de dinheiro, para dar proteção, dentro e fora dos presídios. Protagonizado por um jovem Reginaldo Faria, que interpreta o bandido Lúcio Flávio, cheio de vitalidade e coragem, temos uma boa atuação, ao lado de outros grandes atores, como Milton Gonçalves, além de uma participação de Grande Otelo.

Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), filme do diretor carioca Júlio Bressane, que parece ter nome francês, traz de cara um título curioso. O filme opera com duas ou três histórias, não fica muito claro, uma delas é a do rapaz que, realmente, mata a família e vai ao cinema, a outra mais recorrente é de duas moças (uma delas é uma jovem Renata Sorrah), amigas, que matam o tempo fazendo escárnio ou conversando. Uma cena que chama atenção é o uso da trilha sonora para composição de uma cena entre as duas amigas, pois elas não fazem nada senão dançar ao som da música que é tocada; no mais, uma delas cantarola When I’m Sixty-Four dos Beatles também. A música é algo curioso no filme, após as mortes que o filme nos mostra, uma canção alegre, em ritmo de samba até, é executada, concluindo a cena de modo estranho. O filme peca por falta de uma história concreta, como desenvolvimento do assassinato da família e da ida ao cinema, e não compensa de forma cinematográfica.

O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) pode ser lido aqui.

O cheiro do ralo é uma metáfora usada de uma forma bem inteligente e um tanto obscura, no sentido de que não é tão óbvio a sua conotação. Lourenço, a personagem Selton Mello, tem um emprego bem curioso e incomum, ele compra objetos usados de pessoas que, em troca, precisam do dinheiro, umas mais, outras menos; a relação de Lourenço com as pessoas não é bem profissional, chegando a negar uma compra dizendo na cara das pessoas o porquê de ele não comprar o objeto. O filme começa com um close bem interessante, que acompanha na rua uma bunda, e essa bunda, mais tarde na história, vai desempenhar um significante papel, diretamente ligado com o conflito cósmico entre a personagem de Selton e o ralo, juntamente com seu cheiro. Uma parte de O Cheiro do Ralo (2006) transita entre o escritório de Lourenço e seu emprego e a abordagem que ele tenta fazer na personagem de Paula Braun, a dona da bunda; Lourenço interage com o mundo de forma bem indiferente, usando do seu poder de julgamento e compra dos objetos como uma forma de lidar com o mundo de uma forma geral, e superior. O humor negro do filme e a atuação de Mello conduzem o filme de forma bem interessante, assim como o roteiro, que explora a relação dele com os compradores e as peculiaridades dos objetos através de suas histórias; é de destaque também a forma repetida como o diretor (Heitor Dhalia) usa o plano geral para mostrar a personagem de Selton Mello andando e mostrando a transição de paredes para dar a ideia de avanço na caminhada.

O Outro Lado da Rua (2004) começa anunciando que seu roteiro foi premiado pelo PROCINE (Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro), e é algo que me fez discordar assim que acabei de vê-lo. A trama basicamente imita Janela Indiscreta do Hitchcock, só que com bem menos suspense, e sem aqueles diálogos com witty; Fernanda Montenegro conduz a história, fazendo uma senhora que trabalha para a polícia como uma espécie de espiã, através de denúncias anônimas, seu codinome é Branca de Neve. Numa noite de insônia, da janela de seu apartamento, ela vê algo suspeito através de seus binóculos, e a sua relação com o culpado vai ficando cada vez mais estreita, a ponto de o filme explorar a questão da velhice e do romance. Engraçado como o filme faz referência a outros dois: Fernanda Montenegro, em O Que É Isso, Companheiro? (1997), faz uma senhora que vê e suspeita de algo pela janela, avisando a polícia, que releva a informação, e dando entender que ela não passa de uma velha desocupada, mais tarde a suspeita se materializa num sequestro, que é o início do clímax no filme; em O Outro Lado da Rua, a sua personagem, Regina, beija o espelho, algo já feito pela atriz em Central do Brasil (1998), filme em que o roteiro também contou com a participação de Marcos Bernstein, que dirigiu e escreveu O Outro Lado da Rua.

Ó Paí, Ó! (2007) é um filme que opera tanto visualmente como musicalmente, aliás, a música é um fator fundamental no filme, explorando a capacidade de interpretação dos atores no gogó (mesmo que seja um playback) e nos quadris. A cena inicial mostra Roque (Lázaro Ramos) trabalhando em sua oficina, mas nunca deixando o rebolado de lado, até o momento em que chega Rosa (Emanuelle Araújo) e a partir de então o expectador é apresentado a mais um fator forte no filme, a sensualidade — que é mostrada tanto no lado masculino quanto no feminino; Lázaro Ramos é o fio condutor da sensualidade masculina, a sensualidade negra, baiana, artística, que contribui tanto com o corpo como pelo gingado; Emanuelle Araújo, já citada, corresponde ao lado sensual feminino, é dançarina e tem uma beleza jovem, mas é Dira Paes quem rouba a volúpia para si, com seu corpo bem mais talhado, além do fator velado da sua ida e volta da Europa, que provoca curiosidade no expectador. Seguindo esses dois grandes pilares, música e sensualidade, o filme se constrói também pelo fator religião versus profanação, uma vez que é contextualizado no último dia de Carnaval na Bahia. A adição dessa dicotomia nos apresenta o lado cômico do filme, que é bem executado, tanto na parceria entre Lázaro Ramos e Wagner Moura (esse é o oitavo filme em que trabalham juntos) como entre as demais personagens, que se desenvolvem de forma natural e espontânea, graças a um roteiro criativo e bem trabalhado, o que por momentos me fez comparar o filme com Faça a Coisa Certa (1989), do diretor afro-americano Spike Lee, que aborda questões raciais e a comédia. A personagem de Dona Joana (Luciana Souza), dona de um cortiço em que os moradores são fundamentais para a narrativa, é essencial ao filme, uma vez que ela é o lado religioso dele, com suas crenças evangélicas que atacam quaisquer manifestações de cunho profano; seus filhos, Cosme e Damião, dão o ar infantil e travesso ao filme, totalmente contrários ao que sua mãe prega. Roteiro voltado para as personagens, que são representadas por bons atores, além de abordar temas pertinentes da cultura brasileira, o filme nos surpreende tanto por isso tudo, como pelo seu desfecho até certa hora inesperado.

O humor e a inteligência de Jô Soares nunca devem ter sido novidade para alguém, e em O Xangô de Baker Street (2001), a habilidade do (entre outras coisas) escritor é ratificada. Jô Soares mistura a personalidade ímpar do detetive inglês Sherlock Holmes com as mais diversas peculiaridades brasileiras numa história típica de mistério e busca de solução, em que Holmes sempre se encontra. Jô une grandes personalidades brasileiras consagradas pela história, como o imperador Dom Pedro II, Chiquinha Gonzaga, Olavo Bilac, entre outros (em que o filme faz questão de apresentar bem no seu começo), além de estereótipos, cultura afro, cultura brasileira em geral, desde a maconha (?!) a caipirinha, sempre com uma dose de humor muito bem aplicada, soma-se a isso suspense e o mistério das histórias de detetive. Tudo bem, até aí a glória vem da literatura de Jô Soares, mas o filme me parece bem adaptado, com um roteiro linear e explicativo, deixando o mistério suspenso, fazendo o expectador acompanhar tudo o que Sherlock e o Doutor Watson estão atrás, junto com o Delegado Mello Pimenta (Marco Nanini).

Olga (2004) era um dos filmes nacionais que eu mais tinha curiosidade de ver, e por um acaso da vida eu nunca consegui assisti-lo na televisão. Seu enredo é puramente histórico, contando o relacionamento de Olga Benário e Luís Carlos Prestes e seus respectivos futuros. O filme aborda as mais conhecidas questões ao redor do casal, Segunda Guerra Mundial, comunismo, nazi-fascismo, antissemitismo, revoluções, o governo Vargas, etc., mas foca, num primeiro instante, na relação de Olga e Prestes de uma forma apelativamente piegas, tanto nos shot-reverse-shot íntimos, como na nudez erótica de novela, claro: Jayme Monjardim, mesmo se arriscando no cinema, executa seu métier nas novelas da Globo. O segundo instante, em que o casal é separado, foca no drama da personagem judia, que além de grávida, será deportada para seu país de origem, a Alemanha nazista de Hitler. A história entre Olga e Prestes, e toda conjuntura em que eles se encontravam é ótima para um filme, mas a direção de Monjardim dificulta uma boa investida; no entanto, o filme é conduzido pela ótima atuação de Camila Morgado, que talvez peque apenas quando está no campo de concentração, onde a atriz poderia ter explorado mais seu corpo no quesito perda de peso, uma das coisas que me deixou um tanto curioso ao assistir o filme, uma vez que as prisioneiras femininas pareciam ser bem tratadas até, anulando a demanda de perda de peso. Enfim, algo puramente histórico. Ademais, a trilha sonora, orquestrada, rege o filme de modo bem pertinente.

Os Desafinados (2008) mostra um lado bem interessante da cultura, ou mais especificamente, da música brasileira: a bossa nova. Gênero consagrado dentro e fora do país, com uma miríade de artistas talentosos, tanto como compositores, como intérpretes. Apoiado inteiramente na história, o filme, além do quesito musical, se ancora nos contextos da ditadura e da biografia (o grupo Desafinados, na verdade, é o grupo Rio Bossa Cinco), mas mesmo assim ainda falta algo para ele despontar em suas duas horas e pouco de duração. Com atores provavelmente conhecidos da maioria (Rodrigo Santoro, Cláudia Abreu, Selton Mello, Ângelo Paes Leme, Jair Rodrigues, Alessandra Negrini), sempre bem entrosados, até porque o papel pede, eles arriscam no inglês e até cantando, mesmo que seja em playback. Ou será que não são eles? Em alguns poucos momentos essa dúvida não persiste, como quando a personagem de Santoro e Abreu cantam juntos Carinhoso. Os Desafinados soa como um grande sonho, da aspiração musical no primeiro momento, depois de liberdade com a instauração do governo militar. Ah, o filme também aborda o lado cinema, da personagem de Selton Mello, que tem várias ideias para filmes, até mesmo junto com o grupo de amigos musicistas; a personagem dele faz algumas alusões ao cinema, como o passar de dedo nos lábios, da personagem de Jean-Paul Belmondo em Acossado, e o Central Park o faz lembrar de um filme do Antonioni, provavelmente Blow-up. Mesmo com tudo isso, e mais o paralelo nostálgico das personagens quando velhas e sua (re)aproximação para documentar a história, ainda falta algo no filme, provavelmente uma direção mais perspicaz.

Outra adaptação de Jorge Amado, Tieta do Agreste (1996), filme de Carlos Diegues, é tão bom quanto Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), e praticamente traz os mesmos temas, que parecem ser tão abordados nas obras de Amado. Digo parecem, pois não tive o privilégio, ainda, de poder lê-lo. Além do conflito entre o sagrado e o profano, e das pitadas de sensualidade (o filme traz de novo Sonia Braga), Tieta também aborda a questão do atraso e do progresso, da antítese interior e cidade grande, Santana do Agreste e São Paulo; Tieta, apelido propagado pelos quatros cantos do lugar, fora expulsa de sua cidade por seu pai por causa de seus impulsos sexuais, que são bastante evidenciados ao longo do filme, e partira para São Paulo com a promessa de uma vida e futuro melhores. Sua volta à cidade é motivo de tumulto, ela prosperara na grande cidade, e além de sempre mandar dinheiro para a família (até mesmo para seu pai, interpretado por Chico Anísio, que prefiro poupar comentários sobre seus maneirismos humorísticos), Tieta também esbanja roupas e acessórios um tanto extravagantes para o lugar. O filme traça um perfil de sua família, seja pela sua irmã sovina (Marília Pêra) ou pelo seu sobrinho, que através de uma promessa da mãe, resolveu dedicar-se a batina, entre outras personagens que também ilustram a casa e o lugar. Tieta do Agreste é um daqueles filmes que talvez entrem no panteão do cinema nacional, que exploram as facetas da brasilidade de cada lugar, mas mais devido ao conteúdo literário em que é baseado e pela possível preferência do diretor, é só olhar rapidamente a sua filmografia. Elenco conhecido, talvez, por muitos, e bem atuante, e a música título executada por uma das vozes mais brasileiras, da Bahia, coincidentemente. Se Tieta peca, no sentido mais literal e conotativo da palavra, é pela apresentação de sua protagonista e de seu misterioso mister, algo que pode ser interpretado por maus olhos estrangeiros (e até mesmo nacional). Mas, convenhamos, qualquer estereótipo é burro, e todo amor à puta é normal, de acordo com Freud. Então, vamos amar Tieta.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) transita de forma bem poética entre o terreno da ficção e a esfera do documentário. Aliás, a poeticidade do filme está tanto nas imagens quanto nas falas do protagonista, que é mais narrador do que protagonista, se é que isso faz sentido. Em off, ouvimos a inconfundível voz de Irandhir Santos e suas elucubrações sobre a estrada, o vazio, a solidão, o amor, a separação; ele trabalha como geólogo, e o motivo de sua viagem de caminhão é por causa da profissão, e tal profissão tem um paralelo com a de sua amada: ele, geólogo, ela, bióloga; o contraste dos objetos de estudos, ele verifica o solo, as rochas, que são encontradas na aridez do terreno nordestino, ela verifica a parte mais sensível da natureza, as flores, as plantas, ele conta; é como se fosse também a antítese entre homem e mulher, do ser rústico, pesado e bruto ao ser macio, leve e sensível. Mas as primeiras características dele não anulam as segundas que porventura ele venha ter, como sua voz nos deixa evidente. Gravado de modo subjetivo, ou em POV, como preferir, um universo de estrada é nos mostrado pelos olhos do narrador, tanto nos restaurantes como nos motéis em que ele para, além de outros lugares que complementam sua narrativa, o que leva um filme a um patamar mais elevado do que em um mero road movie. Interessante também como questões existenciais são abordadas com (o já citado) teor poético.

O Grande Herói (2013) pode ser lido aqui.

Alemão (2014), produção brasileira, que explora questões sociais no que tange o Complexo do Alemão, traz questões similares àquelas de O Grande Herói; o bem e o mal, a promessa de um mundo melhor, seja qual for a dimensão desse mundo, o uso da violência como um meio, e também como um fim, etc. Alemão traz para o cinema, além de uma importante questão sociopolítica, uma espécie de mídia didática, não só para quem está estudando, mas para qualquer brasileiro, apesar do aviso que o filme mostra que, mesmo com muitas pesquisas e evidências, ele deve ser considerado uma ficção. Com bons atores (Cauã Reymond, Caio Blat, Gabriel Braga Nunes, Marcello Melo Jr., Milhem Cortaz, Otávio Muller) dividindo maior parte da tensão e da ação, o diretor (José Eduardo Belmonte) monta uma atmosfera pesada, onde policiais estão em linhas inimigas, escondidos, entocados, entrincheirados: é uma guerra. Aliás, um rap sempre nos lembra disso no decorrer do filme.

Se tem um clichê que possa definir Fruitvale Station (2013) é aquele que diz que menos é mais. Narrativa simples, baseada em fatos reais, com apenas duas quebras temporais na história, que são importantes para entendermos seu desfecho, que por sinal, é bem trágico e triste. Paradoxalmente, o filme, estreia do diretor Ryan Coogler, é riquíssimo nos diálogos sociais que aborda, desde o quotidiano de uma comunidade negra norte-americana, além de outras minorias, tão frequentes no estado da Califórnia, até a problemática do aparato policial e a truculência que civis sofrem na pele; de uma forma mais ampla, o filme roga por direitos humanos e justiça, uma sociedade mais pacífica e em que a polícia sirva realmente para proteger e servir. O filme traz boas atuações, sendo postas em evidência no contexto familiar, a relação de pai e filha, marido e mulher (por mais que o casal não seja casado), filho e mãe, entre amigos. Fruitvale Station funciona como um relógio, mostrando Oscar acordando junto com a família, deixando a filha, T, na escola, a mulher no trabalho e levando o resto do dia, até a tão esperada noite de Ano Novo, que também coincide com o aniversário de sua mãe; a câmera acompanha o protagonista sempre de perto, o filme até parece um documentário de um dia, abordando do jeito mais realista possível a vida de Oscar e seu triste desfecho.

Instinto Materno (2013) foi um filme que fui ver sem saber que existia. Filme romeno, com pouquíssima música e atuações muito boas. Gira basicamente em torno de um drama familiar, ou melhor, dramas familiares. A única coisa que me incomodou um pouco no filme foi o uso exclusivo de câmera de mão, com vários ­close-ins deselegantes, guinadas de câmera desmedidas, etc., algo digno de um Lars von Trier ou Thomas Vinterberg, por exemplo (fiquei imaginando que cara o filme teria caso fosse dirigido por um dos dois…). A atriz Luminita Gheorghiu conduz o filme de forma brilhante, bem tocante e acolhedora, ao contrário de seu filho, que se comporta e a trata de maneira nada recíproca. O conflito de Instintos Maternos é apresentado ao expectador praticamente ao iniciar, e o filme se desenrola a partir dele, de como contornar a situação instaurada.

Com Hunger (2008) eu completo a filmografia do diretor Steve McQueen. Sempre trabalhando a partir de temas, McQueen aborda a fome em Hunger, como o título sugere, assim como aborda sexo em Shame e a escravidão em 12 Anos de Escravidão, mas sempre convergindo para um tema em comum, a liberdade. Nos três filmes os maiores conflitos das personagens é pela liberdade, seja lá ela como for. Primeiro filme de McQueen, que também traz Michael Fassbender, que demora aproximadamente uns vinte minutos para entrar no filme, Hunger é um exercício de consternação; baseado em fatos reais, mostrando os prisioneiros políticos da Irlanda do Norte nos tempos de IRA, a narração é conduzida de forma bem calma, sem exageros de câmera, o diretor executa belos plongées, com significativo destaque para aquele em que a personagem de Fassbender está delirando na cama. O filme quase não tem música, o que faz aumentar ainda mais a angústia de quem assiste, como ao ver os prisioneiros sob pele e osso durante greves de fome (a aparência de Fassbender é tão igual àquelas de Bale em O Operário e Matthew McConaughey em Dallas Buyers Club), não só em suas celas, como também quando passam por violência policial na prisão. Hunger é o exemplo de filme que vemos o grande potencial do ator alemão, que apesar da naturalidade germânica, passou sua infância e foi criado na Irlanda, conduzido pela primorosa estreia de McQueen no cinema com um longa. De acordo com o site do IMDb, por exemplo, a cena em que Fassbender e o padre estão conversando foi gravada em apenas um take, depois de quatro tentativas; a cena, em um plano conjunto, dura 17 minutos e 10 segundos, e é incrível. Depois de Shame vem 12 Anos de Escravidão, grandes filmes de um diretor que precisamos ficar de olho.

Com Ninfomaníaca (Volume 2) eu completo a Trilogia da Depressão de Lars von Trier, precedida de Melancolia (2011), primeiro filme do diretor que vi, tendo a oportunidade de acompanha-lo no Cine Estação das Docas, no mesmo ano de seu lançamento, e tempos depois vi Anticristo (2009), o primeiro da série. Lars von Trier fecha um ciclo de forma bem visionária e pessoal, num mundo marcado por seu estilo diferenciado, explorando mais uma vez seu lado misógino, um trabalho de atores ímpar. Nesse segundo volume, o diretor dinamarquês continua a história de vida de Joe (Charlotte Gainsbourg) como uma ninfomaníaca, uma história cheia de sentimentos, ou alcançados ou destruídos, interiormente ou exteriormente; von Trier interpola a narrativa de Ninfomaníaca com narrações, no estilo conversa, entre Joe e Seligman (Stellan Skarsgård), desde o primeiro volume, com uma continuidade que não poderia faltar, uma vez que o filme gira em torno de dois mundos: o presente, entre os dois, e o passado de Joe, com os vários homens (e mulheres) que passaram em sua vida. Ninfomaníaca é cheio de referência, por parte do intelectualismo da personagem de Skarsgård, cuja principal característica de sua personalidade é revelada, o que mostra uma das grandes ironias do filme; digo grandes, pois (não exatamente ironia talvez) o filme, ou o diretor, apela demais para os acasos, como os tantos reencontros de Joe e Jerôme, interpretado por Shia LaBeoulf, uma espécie de fetiche por aquela figura masculina. Ironia ou não são as tentativas de Joe a fim de saciar seus desejos carnais, além de suas lembranças de infância, como a passagem em que ela flutua e tem uma visão, é uma das coisas no filme que mais foge dos princípios do Dogma 95, algo tão propagado pelo diretor anos atrás; outra passagem — a da foto do filme que foi mais comercializada — aquela de Joe com dois rapazes negros é, no mínimo, cômica. A escolha do elenco é e foi primordial, o trabalho característico de von Trier e Gainsbourg é uma das melhores duplas diretor-ator, assim como a de Scorsese e De Niro, além de figuras (quase sempre) presentes, como Willem Dafoe e Udo Kier (sempre presente!); a mão do diretor pode ser percebida na atuação substancial de LaBeoulf, que não lembro de ter visto alguma anteriormente. As referências, literárias em sua maior parte, e factual, operam como metáforas, mas a intertextualidade de Lars von Trier se permite até na imagem, no cinema em si mesmo, como a sua auto referência na cena do bebê em Anticristo, com a mesma música e a mesma tensão através de outra mise-en-scène, é o diretor escrevendo seu Ph.D., se autocitando, afirmando seu status e seu métier, o de diretor. O final do filme, como eu havia previsto através de uma piada induzida, é quase concretizado, se não fosse pela sua carga de inimaginável.

Florianópolis, 31 de março de 2014

M. B. Massias

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