Para aqueles que estão fugindo #14: Beber a vida
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Uma refrescante brisa matinal invade a janela do ônibus circular, que vai do aeroporto de Atenas ao porto de Piraeus, enquanto cortamos uma paisagem rural, colinas douradas e pedregosas salpicadas de pinheiros verde-escuro aqui e ali. Profusões de flores selvagens, vermelhas, amarelas, alaranjadas, violetas, brotam de terrenos baldios e canteiros abandonados. Todas essas tonalidades, mais o azul do céu, brilham com uma intensidade incomum, delineando contrastes belíssimos. A sublime luminosidade solar parece fazer o mundo reverberar em radiância — como se a natureza da Grécia, através dos tempos, nunca tivesse perdido sua aura de terra sagrada pagã.
Ao lado de um semáforo rapazes de algum país do sudeste asiático — lembram o cara do Sri Lanka com quem morei em Londres — limpam vidros de carros em troca de moedas. O ônibus adentra numa enorme área portuária e eu desço na parte de onde saem os navios para Creta. Outros imigrantes asiáticos e africanos vendem bugigangas. Um tiozão grego, num café, segura com a mão uma espécie de terço e, vagarosamente, vai passando pecinha por pecinha pelo cordão, com a ponta dos dedos. Exatamente como sempre vi o meu avô grego fazer.
O navio que vai a Creta tem proporções gigantescas, parece um shopping center, nunca vi algo assim. Creta, Creta… A decisão de ir a Creta foi simples. É o cenário de Zorba, o grego, a obra de monumental reverência à vida escrita pelo cretense Nikos Kazantzakis. Terence Mckenna, no excêntrico livro Alimento dos deuses, afirma que também foi onde floresceu uma das mais belas e avançadas civilizações que a Terra já pariu, milênios antes da Atenas clássica, com um refinado culto à deusa e aos cogumelos mágicos. Creta, além disso, é a maior ilha da Grécia — talvez as chances de conseguir emprego lá sejam maiores.
O barco só parte à noite e aproveito para explorar as redondezas, com a pesada mochila nas costas. É fascinante estar numa cidade escrita em outro alfabeto. E não parece a Europa, a região do porto lembra mais o Paraguai, com as suas ruas empoeiradas e bugigangas à venda.
As inúmeras lojinhas com artigos de caça, pesca e camping são inesperadas e intrigantes — um cheiro de aventura paira no ar. Sento numa mesa de bar com vista para o navio, acomodo a mochila no chão e caminho até o balcão. Uma grega sorridente, de cabelos vermelhos, longos cílios e olhos esverdeados me serve uma cerveja. Volto à mesa e saúdo amigos invisíveis, antes do primeiro gole.
À noite descubro o que a palavra “deck” na minha passagem de trinta euros, a mais barata, significa. Há duas opções para dormir: em poltronas numa grande sala fechada, com luz acesa e televisão com volume alto, ou em bancos duros na parte aberta do barco, também com luz acesa. Como ainda é cedo para dormir, sento num banco ao ar livre — bate uma brisa fria. Enquanto o navio se afasta do continente e as luzinhas de Atenas são finalmente engolidas pela escuridão da noite, tiro da mochila o calhamaço Shantaram e começo a ler.
A Marilyn me emprestou o livro com a condição de que eu o devolvesse por correio, para ela, por sua vez, o devolver ao seu amigo, um indiano radicado em Dubai. O livro foi escrito por um australiano que fugiu de uma prisão de segurança máxima nos anos oitenta e passou anos fantásticos numa favela de Mumbai — o amigo indiano atestou que a cidade descrita pelo autor era a mesma da sua infância.
Intercalo a leitura com olhadelas ao redor: famílias de aparência camponesa jantando churrasquinho, homens de camisa aberta ao peito bebendo cerveja, viúvas enrugadas cobertas de preto, música tradicional grega ao fundo. Ao longe, um barco do tamanho do nosso se afasta lentamente no mar. Um monstro enorme, com milhares de toneladas de metal, plástico, borracha, combustível fóssil, flutua com uma beleza graciosa, fantasmagórica, no Mediterrâneo — luzes cintilantes levitando na total escuridão, como no filme A viagem de Chihiro.
Um pensamento então brota das profundezas da mente, com uma inusitada euforia: de alguma forma o que estou vivendo agora, essas pessoas, esse barco, esse mar, se confundem com a experiência do australiano do livro. Provavelmente nunca me envolverei com gangsters ou escaparei de prisões de segurança máxima. No entanto, assim como ele, olho ao redor e me encanto com o milagre do mundo. Talvez um dia eu também terei algo para contar.
A lua crescente aparece entre finas nuvens e me lembra da Laura, despertando uma saudade aguda — foi numa noite de lua assim que nos conhecemos na beira do mar. Caminho até um cantinho afastado e escuro na ponta do navio, encosto o peito na barra de ferro de proteção e respiro fundo a brisa marítima, observando os infinitos raios de luar refletidos nas águas escurecidas do Mediterrâneo.
Sou então inundado por um mar de emoções. De repente não quero mais entender a vida ou o universo, essas ânsias que me atormentam tanto. Não é mais necessário entender, quero apenas sentir e sentir, beber da vida a grandes goles, e nesta noite estou completamente embriagado dela.
Descubro uma escada que leva a uma espécie de teto do navio, sem iluminação nem ninguém por perto, de onde é possível observar deitado, numa deliciosa solidão, a lua e as estrelas. Mas faz muito frio, por isso pouco depois vou à grande sala fechada em busca de um lugar para dormir. O espaço já está ocupado por dezenas de pessoas de todas as idades, famílias inteiras acomodadas em poltronas e no chão, e decido dormir ao ar livre mesmo, mais perto da noite e do mar.
Na área externa, deito num banco ao lado de um grupo de jovens de visual circense, com violões, e acordo na madrugada tremendo de frio. Caminho novamente até a área fechada e me acomodo no chão, ainda com frio, por causa do ar-condicionado. Desperto no meio da noite, assustado: onde estou, quem são essas pessoas?! Durmo novamente e acordo com a movimentação do barco — ainda está escuro enquanto o navio atraca em Creta.
No porto, entro num ônibus e mostro ao motorista um papel com “delegacia de polícia” escrito em grego. É onde devo esperar pelo Dimitris, do Couchsurfing. Conforme o combinado, envio uma mensagem no seu celular, sento na sarjeta em frente à delegacia e espero. Passa mais de uma hora sem sinal de vida dele — o sol desponta ao fundo de uma ruela, entre os galhos de uma árvore desfolhada.
A cidade amanhece lentamente e os cretenses ocupam a rua e a calçada rumo ao trabalho, semblantes sonolentos e fechados. Subitamente, uma sensação aguda espeta o estômago, beirando o pânico: me dou conta que estou completamente sozinho, tenho que me virar num mundo onde sou um total alienígena.
Existe uma grande diferença entre viajar de férias e viajar trabalhando, sem rumo certo ou data de retorno. Se eu tivesse chegado em Creta com passagem de ida e volta, com férias marcadas, não teria muitos motivos para ficar ansioso. Mas agora imagino o que eu terei que enfrentar para arrumar trabalho e, pior… se não encontrar?
Essas preocupações fazem brotar na mente a lembrança dos imigrantes do sudeste asiático limpando vidros de carro no semáforo em Atenas, refugiados econômicos e políticos vivendo no desespero e desamparo totais. Meus problemas comparados aos deles são fúteis, ridículos. Tenho uma família que não hesitaria em me ajudar numa emergência, e posso voltar ao meu país a qualquer momento e procurar emprego com o meu diploma universitário.
Essa constatação só aumenta a angústia e vem acompanhada de um forte sentimento de culpa — de repente a jornada pelo mundo parece algo totalmente frívolo. Toda uma lógica de vida que eu supostamente rejeitei, uma civilização da faculdade-escritório-aposentadoria-morte, parece apontar seus milhões de dedos para mim agora, nessa sarjeta, e sinto uma culpa terrível, mas não consigo distinguir exatamente de quê.
A ansiedade chega perto do pânico e certamente é facilitada pelas muitas horas sem comer e de pouco sono. Tento manter a compostura observando os primeiros detalhes de Creta iluminada pelo sol: as casas são simples, arejadas, floridas. De uma delas saltam galhos com maravilhosos limões sicilianos, de um amarelo lustroso. Uma velhinha atravessa a rua com trajes de viúva, coberta de preto da cabeça aos pés — essa imagem, que só tinha visto em cartões postais e fotos da família, subitamente me acorda para o fato de que estou na Grécia.
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