Para aqueles que estão fugindo #19: O convite
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
De manhã, no camping, avisto uma figura branquela e comprida, os longos cachos loiros emaranhados, dormindo em algo que parece uma mistura de barraca com saco de dormir. Mais tarde puxo conversa e descubro que ele é dos Estados Unidos, tem dezenove anos, trabalhava lavando louça num hotel de luxo e um belo dia, enquanto enxaguava a louça, decidiu realizar um sonho de infância e viajar o mundo — no mesmo dia pediu demissão ao chefe e na semana seguinte estava num avião para Atenas.
Até então nunca tinha saído do estado de Montana e sua mãe achou a ideia completamente absurda. Pretendia rodar a Europa por dez meses, mas está aqui há dois meses e o dinheiro praticamente já acabou, então deve voltar aos EUA em breve para juntar mais dinheiro e partir de novo.
É engraçado demais com seu jeito espontâneo e desengonçado, e me lembra dois amigos do Brasil misturados — tenho desenvolvido esse hábito estranho de ver uma pessoa que acabo de conhecer como uma mistura de outras que já conheço. Conta que um dos seus planos é, quando voltar aos Estados Unidos, usar seus tiques — está sempre dando umas “fisgadas” com o rosto — para conseguir uma receita de maconha medicinal. Tenho uma última perna de grilo e o convido para fumarmos na praia.
Graças à areia dourada, algumas palmeiras e o calor, que finalmente veio para ficar, sinto pela primeira vez em Creta um clima de veraneio, porém a paisagem é bem diferente do cenário tropical que a minha memória relaciona a praias. É o mar Mediterrâneo, se esparramando em paragens assim por todo o sul da Europa, norte da África e Oriente Médio: cabras, vasos de cerâmica, poeira, pedras, oliveiras, arbustos espinhosos, águas calmas e cristalinas.
Estamos deitados na areia, os raios de sol chegando quentes na pele, um estupor gostoso. Ele então bota Sublime para tocar nos seus pequenos alto-falantes, depois Bob Marley. As músicas são como um encantador de serpentes, fazem levantar um êxtase levezinho, que sobe dançando do abdômen.
À noite vamos juntos ao centrinho da vila e conhecemos um jovem ucraniano. Fazia parte de um esquema de venda de maconha na Ucrânia com quatro amigos, um deles foi preso e entregou todo mundo. No dia seguinte a polícia invadiu sua casa, mas ele não estava. Por isso veio à Grécia, onde trabalha de garçom e mora com o pai. Pretende passar mais quatro anos por aqui, num total de cinco, até o seu nome ficar limpo na Ucrânia.
Os dois são joviais, comicamente caricatos, e uma amizade nasce instantaneamente, regada a raki, que bebemos no gargalo de uma garrafa plástica. Quando ela esvazia, o ucraniano vai a sua casa e volta com uns destilados estranhos do seu pai.
Acordo com a cabeça estalando, jurando jamais beber de novo. As memórias da noite vêm em flashes esparsos. A praia de pedra, uma ligação emocionada aos amigos no Brasil, quando torrei todos os meus créditos — uso um chip de celular para me comunicar com possíveis empregadores. Vômito — acho que vomitei. A primeira vez em anos. Uma mensagem apaixonada para a Laura — merda! Outro flash: a gente pulando, com dificuldade, a cerca de uma fazenda de azeitonas.
Volto a Hania e sou hospedado pelo Manolis por uns dias. Ainda faltam duas semanas para o trabalho em Sougia começar e planejo passar esse tempo acampando em Preveli, uma praia no sul da província de Retimno, vizinha de Hania — dica do Thanassis, de Gavdos.
No ônibus para a capital da província sinto o corpo todo pesado de cansaço, depois de semanas sem teto, nômade, dependendo de favores. A saúde decaiu com a bebedeira em Paleohora e continua capenga, parece que vou adoecer. Estou magro, ansioso, angustiado, carente — pela primeira vez em mais de um ano na Europa sinto uma forte saudade do Brasil.
Retimno é menor e mais compacta que Hania, o Centro Velho belíssimo. Caminho bastante tempo perdido nele, com a pesada mochila nas costas, atrás do hostel — estou ensopado de suor e exausto quando finalmente o encontro.
Logo de cara conheço três brasileiros figurões. Bombeiros de Brasília, têm uns trinta e poucos anos, tiraram licença do trabalho e estão viajando há quatro meses. Compraram uma passagem de “volta ao mundo” e já passaram por todos os continentes exceto a África. Não largam seus notebooks, que usam para falar com as famílias e namoradas, e reclamam o tempo todo da saudade do Brasil, do conforto de casa.
Na cozinha comunitária do hostel utilizo um garfo para macetar abacate com açúcar num prato. O ambiente é vivaz, várias conversas rolando, diferentes sotaques, mas tenho o coração apertado e mantenho a cabeça baixa, os olhos fixados no abacate. Ouço então uma voz feminina que parece vir na minha direção. Não chego a levantar os olhos — minha autoestima está baixa demais para acreditar que uma mulher viria falar comigo. Mas a voz insiste e eu olho para ela.
Veste uma blusinha e minissaia pretas, está descalça e tem uma correntinha no tornozelo esquerdo. A pele é de um bronze natural e dourado. Os longos cabelos levemente ondulados, castanho-claro, estão soltos. Os cílios compridos realçam grandes olhos. Transmite uma certa leveza como de quem vive rodeada de natureza, quase uma moça do campo. “Eu te vi andando na rua com a mochila e achei que tava perdido, procurando o hostel. Até pensei em te mostrar o caminho…” — seu sorriso é singelo e, ao mesmo tempo, fatal.
Estupefato, tento continuar a conversa de alguma maneira, mas fui pego de surpresa e me embanano todo — ela acaba desaparecendo tão rápido quanto veio. Algumas belas mulheres circulam pelo hostel, mas agora só ela existe para mim.
O hostel é uma casa de dois andares numa ruela medieval, de paralelepípedo. Do quarto, com uns oito beliches, totalmente zoneado, dá para ouvir o burburinho que vem de fora, um comércio autêntico e cheio de vida: uma padaria rústica, lojas de tecido, de bugigangas, adegas. Uma energia feliz e estradeira irradia da comunhão de viajantes de todos os lugares do mundo no pequeno hostel, todos muito abertos para novas amizades, trocas, aventuras — passam o dia combinando passeios, cozinhando, bebendo cerveja. O ambiente, repleto de calor humano, é revitalizante.
À noite, algumas pessoas estão sentadas no chão da varanda, conversando, quando um cara se levanta e eu aproveito para me sentar ao lado dela. Fico surpreso ao descobrir que é dos Estados Unidos, pois não lembra em nada o jeito ou a cultura americana. Tem apenas vinte e um anos e está viajando o mundo sozinha há dois anos, trabalhando pelos lugares onde passa — seu objetivo é um dia se tornar escritora, mas antes disso precisa conhecer mais sobre o mundo, sobre a vida, sobre si mesma.
Revela que seu trabalho num bar de Retimno deve começar em duas semanas, no começo de junho, assim como o meu em Sougia. Digo que também estou viajando sozinho e que amanhã ou depois vou à praia de Preveli, acampar numa floresta de palmeiras à beira de um rio e, num impulso, a convido a ir comigo. Ela me olha fixamente nos olhos por um instante, como se tentasse desvendar minha alma num único vislumbre — no próximo instante simplesmente diz “vamos”, com um sorriso enigmático.
No dia seguinte continuo chocado, sem acreditar, mesmo depois de fazermos compras juntos para uma semana de acampamento no mato. Ainda bastante mexido com as experiências de Gavdos e dos últimos meses, debilitado fisicamente e emocionalmente, mal consigo conversar enquanto cozinho macarrão para nós dois na cozinha do hostel — tenho a voz faltante e ela certamente percebe minha insegurança.
À noite recebo uma mensagem da Laura no celular, depois de semanas sem notícias dela. Pede desculpas por nunca me responder e diz estar sofrendo o diabo trabalhando num veleiro pelo Mediterrâneo. Tento dormir, mas o sono não vem. O plano é acordar cedo para pegar o primeiro ônibus para Preveli com a Jade.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.