Para aqueles que estão fugindo #23: O andarilho

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
5 min readAug 7, 2020

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As noites de lua cheia são as mais lindas na vida a dois: largados por horas nas pedrinhas da praia sob a luz o luar, nus ou seminus, como duas crianças envoltas por uma sensualidade inocente, além do tempo e do mundo, brincamos esquecidos até mesmo da eternidade.

Nas manhãs somos sempre acordados por dezenas de sininhos tilintando, enchendo o coração de calor e nos lembrando, aos primeiros raios de sol, que estamos em Creta. Abrimos o zíper da barraca e lá estão elas, as cabras, escalando pedras, subindo em árvores, a centímetros de nós. Parecem organicamente ligadas ao ambiente, naturais como o solo poeirento, o capim amarelado, as oliveiras.

Outro elemento sonoro fantástico surge nas redondezas do acampamento, certo dia. Misteriosamente, por horas seguidas, dia após dia, ouvimos o som muito próximo de um instrumento de cordas grego ou oriental, mas não conseguimos descobrir onde está o tocador.

Até que numa manhã, voltando do mercadinho com ingredientes para uma salada, avistamos um rapaz sentado numa pedra, o bouzouki encostado ao lado. Pergunto se é o autor da música que ouvimos todos os dias e, ao ouvir um sim, faço um elogio e o convido para o almoço.

Quando a salada está quase pronta ele aparece com três latas de cerveja gelada. Explica que tem dormido numa caverna no morro, a uns cinquenta metros de nós, e a acústica lá é boa, por isso ouvimos o som tão bem. É de Thessaloniki, tem a minha idade, vinte e três anos, e há anos viaja por toda a Grécia sozinho, meio andarilho.

Lembra um asceta, magro, pele queimada de sol, barba e cabelo negros espetados, os olhos inteligentes um pouco afundados no rosto ossudo. Apesar da aparência séria ri de tudo, às gargalhadas — me identifico com seu senso de humor.

Uma amizade vai surgindo com o decorrer dos dias. Ouço, fascinado, suas histórias sobre as ocupações anarquistas em Atenas e Hania, o tempo que passou entre monges ortodoxos no lendário Monte Atos, sobre quando foi discípulo de um homem santo que vive numas ruínas no alto de uma montanha na ilha de Icaría.

Através dos seus relatos viajo por ilhas fantásticas e pouco conhecidas, descubro as propriedades de ervas das montanhas, aprendo sobre as peculiaridades e delícias de cada vila da Grécia, essa terra acidentada, banhada pelo mar azul, amada pelo sol.

Articula bem as palavras e expressa suas opiniões com desenvoltura, em seu carregado sotaque grego quando fala o inglês. Exibe, com naturalidade, um inteligência acima da média, é bastante observador e capaz de destilar uma fina ironia. E conta que repetiu o primeiro ano do ensino médio três vezes e acabou largando a escola.

Essa revelação me faz pensar nas pessoas mais inteligentes, criativas e autênticas que já conheci: todas detestavam a escola, no seu ensino da repetição, da mediocridade, da submissão, mas poucas tiveram a coragem de realmente sair e encarar as consequências disso.

É um grande defensor da malandragem, da vagabundagem, e chama quem trabalha para os outros de escravo. Chega a cogitar matar uma cabra para comer, mas desiste ao lembrar que as cabras têm dono e que os conflitos em Creta são resolvidos na bala.

Diz sobreviver fazendo bicos como pintor de letreiros, caçando, pescando, coletando plantas e às vezes tocando bouzouki, instrumento que começou a aprender há alguns meses. Através da Jade, que ouve no trabalho as fofocas da vila, fico sabendo que aparentemente também tem praticado pequenos furtos no mercadinho.

Seu amor é pela liberdade, não pelo dinheiro, gosta de dizer. Mas reconhece que sua ausência apresenta algumas dificuldades. A maior delas é conseguir “boas” mulheres. Outra é a falta de respeito.

“Eu vou oferecer meu trabalho de pintor, por que o cara precisa ser grosso? É só dizer não. Quando isso acontece me dá vontade de trabalhar e conseguir muito dinheiro. E não é difícil, qualquer idiota pode se esforçar e ficar rico. Mas pra quê? Às vezes penso em ganhar muito dinheiro e continuar vivendo do jeito que eu vivo agora, na natureza, fazendo as mesmas coisas, só pra dar uma lição nessa gente.”

É um amante do rebetiko e conta que o movimento musical teve o seu auge na malandragem grega no começo do século vinte, especialmente entre imigrantes gregos nos Estados Unidos. Lá eles tinham liberdade para gravar músicas com letras sobre temas do submundo como haxixe, crimes e sexo. A censura não existia simplesmente porque os americanos não entendiam o grego.

As músicas dessa época ainda hoje são tocadas em botecos ou luais, geralmente por uma dupla de cantores com bouzouki — instrumento grego de seis cordas, com origens na Turquia e Oriente Médio — e violão. Lembram um pouco as modas de viola do sertão brasileiro, por serem tocadas em dupla, pelo jeito de cantar e pela poesia das histórias contadas nas letras.

Há um movimento de retomada dessa vertente do rebetiko entre os jovens mais alternativos da Grécia, está um pouco na moda. O Iorgos, no entanto, é sua personificação, uma expressão viva do velho espírito do rebetiko. Veio do norte, de uma cidade que foi otomana por séculos, Thessaloniki. A influência oriental lá é mais forte que no resto da Grécia. Conta que um avô seu era pastor de ovelhas e morreu de tanto beber raki, o outro era pastor de cabras e morreu de tanto fumar haxixe.

Ele mesmo, como os tocadores de antigamente, tem perambulado e conhecido cada rincão do submundo da Grécia, bares sujos, ocupações anarquistas, becos de imigrantes, ilhas selvagens. É um cara simples, tranquilo, espontâneo, e suas opiniões originais revelam um dos seres mais livres de moralismos que já conheci.

As pessoas temem transcender as barreiras da moralidade porque sem ela teriam que se tornar mais vivas, atentas, conscientes. Como sobreviver com respostas fixas e preconcebidas — mortas — num mundo selvagem, fluido, imprevisível? No entanto, é o que tentamos fazer. Nos escondemos atrás de opiniões formadas, de um suposto caráter, fingindo acreditar que somos pessoas de bem.

Já os seres selvagens que assumem a grandeza da vida, muito mais vasta do que qualquer moralidade humana poderia conceber, são para mim como forças da natureza: podem até nos machucar, se não soubermos lidar com elas, mas são verdadeiras e belas. Ao invés de moralismo, quase sempre esbanjam uma espontaneidade generosa, que vem do amor à vida, do gosto pela liberdade, de um coração aberto pelos céus que não cansam de fitar.

Após semanas como vizinhos o Iorgos deve seguir viagem amanhã e nos convida para jantar na ruína onde dorme — tem alguns dias que deixou a caverna. A lentilha que preparou está fria e boia na água. O chão é de terra, com cocô de cabra aqui e ali, ervas daninhas crescendo por todos os lados. Sua cama é um cobertor — não carrega barraca nem saco de dormir.

Conversamos avidamente como de costume e a Jade fica de lado, um pouco deslocada. O papo é finalmente interrompido pelo som alto e nervoso do bouzouki, tocado com o coração, ecoando pela ruína, elevando-se sobre a mata e sumindo na escuridão da noite.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com