Para aqueles que estão fugindo #24: Seres de fogo
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Certo dia sou acordado pelas cabras e seus sininhos, como de costume, mas volto a dormir até o sol esquentar a barraca. Levanto e caminho sonolento na direção de uma moita, para urinar, quando avisto uma bolsinha de couro jogada no chão, embaixo de uma árvore, do tamanho de uma caixa de fósforos e com símbolo Om, da ioga, estampado em tinta branca.
Seu extraordinário conteúdo me dá um susto e faz a sonolência passar num instante: dentro estão sete papeizinhos com LSD e uma bolinha de haxixe. Acordo a Jade com a novidade e concluímos que a caixinha deve ter pertencido a uma grega que foi nossa vizinha por umas semanas, mas que já partiu de Sougia em direção à Índia.
O fluxo de pessoas aumenta com a proximidade da alta temporada. Duas amigas da Sérvia entram em contato conosco pelo Couchsurfing e acabam conseguindo emprego num bar. Um polonês designer, fotógrafo e ativista digital também entra em contato e nós o hospedamos por uns dias na barraca extra. Vive no Canadá desde criança e está passando as férias na Grécia. Usa óculos, gel no cabelo, roupas descoladas — acho engraçado seu jeito de falar cheio de formalidades, meio nerd.
Numa tarde saio mais cedo do trabalho para ir a Lyssos com ele, uma americana de origem hispânica que está esperando o marido soldado voltar do Iraque e a Jade.
A trilha começa por um cânion de mais ou menos um quilômetro — os altíssimos paredões às vezes se inclinam por cima de nós, dando a impressão de um iminente desabamento. Depois há uma íngreme subida por uma floresta de grossos pinheiros até um altiplano, onde há uma extensa vegetação rasteira de um arbusto espinhoso, espécie de orégano selvagem, e uma única árvore solitária, gigantesca, meio fantasmagórica, o mar ao fundo. No final desse trecho avistamos Lyssos, lá embaixo, cercada de montanhas.
Já passam das sete quando iniciamos a descida pela encosta cheia de oliveiras ancestrais — o amarelado do céu vai se transformando num azul escuro. A sensação em Lyssos é sempre a mesma: o tempo parece parar e uma presença assustadora, ao mesmo tempo excitante, permeia o lugar — o vale parece ter vida própria. Ainda estamos caminhando em direção à praia, na penumbra, quando ouvimos uns gritos enlouquecidos — teremos companhia durante a noite.
Quando chegamos na praia o sol já se pôs por completo e uma incrível chuva de meteoros risca o céu escuro. Depois do mergulho, acendemos uma fogueira. Um baseado com haxixe e uma garrafa plástica com vinho caseiro rodam de mão em mão.
De repente, surge um grupo de pessoas no canto oposto da praia, a uns vinte metros, mas não é possível vê-las direito, pois fogueira ofusca a vista na escuridão da noite.
Qual não é a minha surpresa, então, quando duas mulheres nuas saem do mar tremendo de frio e se aproximam pedindo permissão para “usar” o calor da fogueira. Fecho os olhos suavemente, respiro fundo, e agradeço mentalmente aos céus por este momento.
Elas logo se enrolam em panos, que não chegam a cobrir totalmente seus corpos nus. Em seguida outras pessoas ocupam os lugares vagos ao redor da fogueira e finalmente conto um total de três casais. Antes do vinho passar pela mão de todos ouço um rosnado feroz a alguns palmos da minha nuca. Não é um blefe: só tenho tempo de prender a respiração e a carnificina começa.
Dois ou mais cachorros se atacam violentamente, a poucos centímetros de nós. Os homens correm para cima deles mas eu não enxergo nada na escuridão, só ouço as pancadas e os gritos rasgantes, dos homens e dos cachorros, misturados. Quando a briga é finalmente apartada e os homens voltam à roda eu falo, exaltado, quase gritando, que poderia ter me machucado feio ou perdido uma orelha. Eles só ouvem.
Passado o susto a conversa volta ao normal. A luminosidade dançante da fogueira revela tatuagens, piercings, moicanos, roupas surradas. Poderiam se passar por uma tribo nômade futurista, meio Mad Max, e é mais ou menos o que são. Descubro que furgão preto e velho que tinha visto em Sougia pertence a eles: vivem na estrada e sobrevivem de performances malabarísticas com fogo nas cidades por onde passam. São de diferentes países do oeste e leste da Europa e já rodaram boa parte do continente europeu e norte da África juntos, com os cachorros.
De repente um dos homens se levanta, caminha até a beira do mar e começa a rodopiar duas bolas de fogo presas por correntes. Outros o seguem e em pouco tempo a noite negra é cortada por uma mistura de chamas e corpos dançantes, pelo encontro de dois dos elementos mais temidos e adorados na história da humanidade: o fogo e a carne.
A visão onírica da dança de fogo, com o céu absurdamente estrelado ao fundo, faz um pensamento brotar das profundezas da mente, com um sorriso meio louco: apesar de todos os medos e incertezas, cair no mundo é realmente um belo caminho.
No fim da madrugada, durante a despedida, entrego dois papeizinhos de doce como uma oferenda aos seres do fogo. Eles agradecem efusivamente e vão dormir em algum canto do vale. De manhã partimos sem o polonês, que decidiu ficar fotografando os nômades com sua câmera profissional.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.