A onisciência divina e sua conciliação com o livre-arbítrio
A aparente contradição
Quando um desejo de estudar filosofia e teologia nasce em alguém, é comum nos depararmos com paradoxos e confutações de adversários, que agem a fim de mostrar contradições e erros nas formulações teístas. Já foi visto em outros textos -” “Deus não existe”, afirma o tolo.” , “Dos atributos divinos”- que Deus e alguns de seus atributos, não todos, uma vez que a quididade divina é nesta vida inteligível, sendo possível apenas concluir características que competem à nossa razão, por via negativa, podem muito bem ser alcançados racionalmente. Nesse artigo, em vista disso, vamos apenas nos preocupar com a aparente contradição entre a suma onisciência e previdência divina e o livre-arbítrio (algo que proferem os cristãos).
Deus é determinista?
Se a sabedoria divina compreende a intelecção de todas as coisas, até mesmo das modalidades temporais, passado, presente e futuro, o futuro tem que existir de algum modo, uma vez que não se pode conhecer o que não existe, o não-ser. Tal futuro existe, ainda que predeterminado na mente divina, que dispõe seus efeitos numa ordem certa. Ora, se é isto que se sucede, também é verdade que que não temos livre-arbítrio mas apenas uma ilusão de sermos agentes livres capazes de escolher racionalmente algo contingentemente. Se todos os efeitos foram predispostos de modo necessário pela inteligência divina, podendo esta ver o que acontecerá necessariamente num tempo futuro, também assim são nossas ações. Logo não existe livre-arbítrio. Será?
Entendendo a providência e a previdência divinas
Distingamos os dois termos. A providência divina compreende o agir de Deus enquanto “sustenta” as demais coisas no ser, existindo, e as auxilia. Podemos criar uma relação análoga entre a providência divina e a sua onipotência. Em sua providência, a potência ativa (não confundamos potência ativa com passiva) é direcionada às suas criaturas, ao universo criado e todos os efeitos nele contidos. Se a providência é análoga à onipotência, a previdência é análoga à onisciência. Tudo enquanto criado e participante no ser tem uma quididade específica que predispõe a coisa para o seu fim. Todo fim é atingido por meios e, assim, Deus conhece os meios que serão usados pelos agentes (ainda que inconscientes) até o fim de sua operação. Resumindo, Deus conhece todas as modalidades temporais mediante o conhecimento de sua essência e dos seus efeitos, mesmo sendo eterno, sem qualquer submissão à ação do tempo, porquanto imutável.
A criação dos entes determina também seu aspecto modal
Na criação de algo, ou em sua sustentação no ser -para os que supõem a eternidade do movimento-, é determinado também o seu modo de ser (necessário ou contingente). Os efeitos que advém da Causa Primeira não são todos necessários, se fossem cairíamos no absurdo de afirmar que todos os efeitos, nós e os entes sensíveis, são eternos, algo evidentemente falso, alguns são também predispostos como contingentes e nenhum pode ser “amodal”, nem contingente nem necessário, todos precisam estar em alguma dessas esferas. É evidente, portanto, que a única coisa necessária para todos os entes é exatamente a sua determinação modal, fazendo-os ser sempre ou ser e não-ser em diferentes ocasiões.
A determinação modal e previdência
Entendido que Deus cria algumas coisas necessárias e outras contingentes resta, portanto, entender porque o livre-arbítrio não é suprimido. Para os entes necessários é verdade que seu fim e os meios utilizados são também necessários -nesse caso observamos que os meios utilizados e o fim serão um só, eles agem de um só modo e esse modo como agirão no futuro é conhecido pela Suma Inteligência-. Para os entes contingentes o modo de proceder é diferente;os homens são entes contingentes, tanto materialmente quando em sua alma, mente, uma vez que ela nem sempre estava no ser -existindo-. Muitos são os modos como podemos agir para atingir um mesmo fim, como quando penso em fazer um sanduíche, posso fazê-lo de várias maneiras mas isso não determina qual vou escolher. Os entes que agem contingentemente, enquanto dotados de livre-arbítrio, possuem diversos futuros possíveis, diversos futuros que podem se realizar e que dependem, portanto, da escolha que será executada. Ora, assim sendo, Deus conhece todos os futuros possíveis dos entes contingentes. Nós podemos sim escolher entre uma boa escolha moral ou uma má, isso não está predeterminado e Deus conhece exatamente os dois futuros possíveis, dos quais só um irá de concretizar. Não significa, de forma alguma, que a onisciência de Deus é deficitária -poderiam objetar que se Deus só conhece oque pode acontecer e não oque de fato vai, o que é contraditório, já que sua sabedoria é perfeita- mas que ela é infinitamente superior, capaz de prever não só um futuro necessário mas todos aqueles que podem se concretizar. No primeiro caso, dos entes necessários, a providência relaciona-se com o único futuro possível. No segundo, dos contingentes, a providência divina relaciona-se com todos os futuros possíveis e abarca uma maior possibilidade, permitindo que Ele saiba oque fazer para cada um deles.
Conclusão
Em vista disso, é perceptível que a onisciência divina não tira a possibilidade de existirem livres agentes que façam escolhas boas ou más livremente. O exposto aqui pode parecer um tanto confuso, e foi devidamente resumido das soluções tomistas e boecianas. Para aqueles que se aprofundarem no tema verão que em Santo Tomás o aspecto modal de necessidade abrange um maior número de coisas mas isso não anula a explicação dada. Dúvidas ou sugestões nos comentários.