Sobre a Santíssima Trindade

Guilherme Henrique
7 min readMay 27, 2018

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Após a festa de Pentecostes é celebrada na Igreja a Solenidade da Santíssima Trindade, onde busca-se glorificar as pessoas presentes na essência divina, a saber, O Pai, O Filho e O Espírito Santo. Para muitos tal objeto de fé é inconcebível e é sempre muito atacado por aqueles que desejam demonstrar que os artigos explanados pela revelação divina nas Sagradas Escrituras são falsos ou controversos. Para além disso muitos cristãos também duvidam da Trindade,como eu duvidava, pensando ser absurdo um mesmo ente ser uno e trino ao mesmo tempo, tal que resultaria em contradição.

É incontestável que as Escrituras nos revelam que em Deus há filiação, como nos é dito em Mateus “Ninguém conheceu o Filho, senão o Pai; e ninguém conheceu o Pai senão o Filho” (Mt 11,27) em Marcos “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). Também é dado testemunho do Filho no Antigo Testamento “Qual é o seu nome e qual o nome do seu Filho?” (Pr 30,4) e nos Salmos “O Senhor me disse, tu és meu Filho; Ele me invocará, tu és meu Pai” (Sl 2,7 , Sl 88,27) — pode-se objetar que com filho esteja se referindo a outra pessoa que não ao Filho, Verbo. Tal proposição é desmentida no Livro IV da Suma Contra os Gentios, Cap II-. Resta, pois, entendermos corretamente como se dá a filiação e a geração divina e mostrar que a Trindade em nada contradiz a unidade de Deus, com base nas palavras de Santo Tomás.

A linguagem

Nós, como seres sociais e comunicativos, desejamos transmitir, comunicar nossas impressões e pensamentos acerca do mundo externo aos outros homens. Não podendo manifestar a ideia propriamente, pois não posso te mostrar exatamente o que penso, nem você tem acesso aos meus pensamentos, desenvolvemos sinais e falas. Diante disto é claro que a linguagem diz respeito à capacidade dos homens de se comunicarem utilizando de símbolos linguísticos e outros meios. Nos escritos tomasianos nos deparamos sempre com a palavra Verbum, que significa, além da palavra sonora, o conceito exprimido na fala. Por exemplo, quando você olha para um guarda-roupa de certa cor e de tais e tais dimensões no seu intelecto é formado um conceito, uma ideia acerca deste mesmo objeto. Este conceito é chamado por nós de Verbo Interior e nada mais é que a ideia formada no intelecto a respeito de algum objeto apreendido (De differentia verbi divini et humani).

Deus também possui um Verbo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” (João 1,1). Este, evidentemente, é diferente do verbo interior humano, ou o conceito humano. Nós não conhecemos a realidade do conceito de forma predecessora, antes precisamos raciocinar e entrar em contato com os objetos externos através de nossas capacidades sensitivas para abstrair da coisa o seu conceito, e ainda assim algumas coisas ditas por nós não exprimem perfeitamente o conceito da coisa. Deus, como já foi visto em artigos anteriores “A onisciência divina e sua conciliação com o livre-arbítrio”, conhece as coisas de forma única e eterna, através da sua intuição, conhecendo a si mesmo.

Deus conhece, seu ato de conhecer é o Verbo e o Verbo identifica-se com a pessoa do Filho

A maior desta proposição pode ser provada facilmente. Deus é um ser inteligente, possui uma ação intelectiva. Com efeito, nossa racionalidade se dá em nós através de certa participação com a racionalidade da essência divina, “Dos atributos divinos”. O atributo da operação intelectual está antes em Deus, para que, participando da essência divina, possamos também assumir operações racionais. Primeiro em função de seu poder de livre escolha, como já visto em outros artigos, onde nada por Ele criado é criado necessariamente, em virtude de sua essência, como se pelo simples fato de Ele ser a coisa em questão necessariamente tivesse de ser criada, mas todas as coisas sustentadas no ser o são através de uma livre escolha. Ora, não existe livre-arbítrio nos entes brutos, não-racionais. Este é antes um resultado do intelecto, donde se conclui que Deus possui operações intelectivas. Ademais, todas as coisas sustentadas (criadas) no ser possuem um fim que diz respeito à essência própria sua. O homem, por exemplo, tem por fim a felicidade, beatitude eterna (“A alma imaterial e imortal”). Algo tem seu fim estabelecido por alguém que conhece tal fim. Os homens não podem estabelecer seu próprio fim (em sentido universal), pois isto implicaria que eles existissem anteriormente a si mesmos para lhe predisporem um fim específico. O fim das coisas tem que ser estabelecido por um agente externo, e o deste por outro, sucessivamente. Já cansados de saber que não podemos admitir um retrocesso causal infinito, o primeiro na cadeia causal dos entes que possuem um fim é o Sumo Ser Subsistente, Deus mesmo. Ora, se Deus predispõe um fim para as coisas é porque conhece tal fim e tem operação intelectiva.

A intelecção, sendo o ato do intelecto, o seu operar, deve se identificar em Deus com o seu ser. Lembremo-nos dos escritos do Doutor Angélico quando este põe as razões pelas quais a essência divina identifica-se com o seu ser. Com efeito, nas coisas onde a essência não é idêntica ao ser (todas as criaturas) encontra-se uma composição dos dois termos, como a composição de matéria e forma. Como já visto, composição implica em potência entre as partes, e potência não pode de modo algum haver na Causa Primeira, no Ato Puro. Depreende-se disto também que Deus conhece primeira e propriamente a si mesmo, como diz o Aquinate. Nos homens o intelecto difere do objeto da intelecção, como quando um conceito é apreendido pelo intelecto, aquele passa a existir neste, como uma relação mutável e de potência-ato. Em Deus isto não se sucede, como é óbvio. Resulta que se Deus conhecesse primeiramente algo exterior e diferente de si isto implicaria em potência por parte do intelecto divino e também mutabilidade. No entanto, Deus conhece primeiramente a sua essência e sendo eterno este ato intelectivo realiza-se desde toda a eternidade. Entendido isso entendemos também o que se diz com “O Verbo estava em Deus”. Um inteligente ao ser conhecido pelo intelecto está neste, ou seja, ao apreendermos alguma coisa esta coisa está em nossa mente de algum modo, como por conceito. Assim sendo, Deus, no ato de conhecer a si mesmo emana o Verbo de Deus. Como o intelecto divino não passa da potência ao ato, é necessário que este operar e emanar do Verbo de Deus ao se conhecer seja ao coeterno à sua própria “existência”, que não lhe foi acrescido no tempo. Ademais, como tudo que está em Deus é ele mesmo, como sua própria essência, não resulta outra coisa que não o Verbo ser o próprio Deus “Quando se prepararam os céus, eu estava presente” (Pr 8,27).

Do exposto acima podemos induzir que o Verbo é a própria pessoa do Filho, pois o Filho é gerado pelo Pai como o Verbo emana de uma operação de Deus. A geração do Filho identifica-se com a concepção do Verbo, como dito nas Escrituras “Vimo-lo como o Unigênito do Pai” (Jo 1,14) e “O Unigênito que está no seio do Pai” (Jo 1,18). Podem ainda alguns sugestionar que se Deus tem o seu Verbo, o Verbo, sendo independente, pode ter o seu próprio verbo, o seu próprio conhecer, e o seu verbo também outro verbo, infinitamente. No entanto, como já foi dito acima, a ação intelectiva divina identifica-se com Deus e sua essência. Em função disto o Verbo é o próprio Deus, e em Deus há um só intelecto, uma só intelecção.

O Espírito Santo

Nas Sagradas Escrituras encontramos também o Espírito Santo de Deus : “Ide, batizai todos os povos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,9) , “Três são os testemunhos no céu : Pai, Verbo e Espírito Santo” (1Jo 5,7) , “Quando vier o Paráclito, que eu vos mandarei do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de mim” (Jo 15,26).

Entendamos que todo ato intelectual é dotado também de vontade, pois desejamos conhecer aquilo que nos parece um bem. Em toda criatura inteligente há também a vontade. Sendo Deus um ser inteligente, é também dotado de vontade, e esta vontade não lhe é algo acrescido mas é algo que identifica-se com a sua essência, não havendo composição alguma, o que resultaria em potencialidade. Uma só coisa são, em Deus, o intelecto e a vontade. Como o Verbo é o próprio Deus, a vontade divina tem sua inclinação e o seu apetite voltado para si mesmo, ou seja, Deus quer e ama a si mesmo. No entanto, não se deseja ou ama aquilo que não se conhece, donde depreende-se que o querer divino procede do Pai e do Filho. Em outras palavras, Deus, ao conhecer a si mesmo, deseja-se. Temos assim uma “triprocessão” de Deus, Deus enquanto Pai, que conhece e quer, Deus enquanto Filho, que é o ato intelectivo concluído ao se conhecer, e Deus enquanto quer a si mesmo, que é chamado Espírito Santo, enquanto deseja a si mesmo e resulta do Pai e do Verbo, pois não se pode desejar aquilo que não conhece. Os três identificam-se na essência divina e são um só, sendo também subsistentes em função da própria essência divina, que não recebe o ser de outro mas é subsistente por si mesmo.

O Pai, O Filho e O Espírito Santo

A Santíssima Trindade, assim, não implica em qualquer contradição quando se trata da unidade divina. Ao entender os termos é totalmente possível compreender que o objeto de fé cristã não repugna à razão, no entanto devemos ter muito cuidado para não tentar rebaixar este tão sublime mistério da Igreja a algo totalmente alcançável pela mente humana. Todas as conclusões são formas resumidas dos escritos do Doutor Angélico, e podem ser encontradas soluções muito mais ricas no Livro IV da Suma contra os Gentios. Concluímos então que na natureza divina subsistem três pessoas (tomo pessoa no sentido tomista, uma substância intelectual subsistente), O Pai que se diferencia do Filho pela relação de paternidade e emanação, O Filho que se diferencia do Pai pela relação de filiação e o Espírito Santo que se diferencia dos supra-citados enquanto procede do amor existente entre os dois. Dúvidas e objeções nos comentários.

Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis.

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