NEGÓCIO| Enchendo linguiça: 184 páginas que descrevem embutidos alemães e custam milhares de reais

Livro de segunda mão é o único no Brasil disponível em site de venda de livros usados

Portal Tu Dix?!
tudix
4 min readMay 10, 2019

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O livro traz a ficha técnica de 200 embutidos alemães | Foto: Karina Ferreira

Por Karina Ferreira

Não foi por ser o livro mais caro de todo o sebo que ele foi lembrado. Sérgio foi até o acervo buscá-lo quando questionado sobre possuir algum livro com “uma história estranha, algum livro peculiar”. A associação à estranheza fez sentido assim que comecei a folheá-lo: o livro usado, de capa dura, traz a ficha técnica de 200 tipos de linguiças, presuntos e outros embutidos de receitas tipicamente alemãs e custa quase R$ 4 mil.

Sérgio é dono do sebo Cia do Saber, no Centro de Florianópolis, há quatro anos, mas quando o comprou, em 2015, o antigo dono garantiu que o lugar já tinha outros 20 de histórias. Parte delas estão guardadas em caixas no acervo da loja, onde o proprietário encontrou, no meio de uma limpeza, “o livro mais específico” que já viu até hoje. “Ausgezeichnete deutsche Wurstrezepte”, em português “Excelentes receitas alemãs de linguiça”, publicado em 1995, descreve padrões de carne, análises químicas e as tecnologias de produção dos embutidos. As fichas técnicas dividem espaço com anúncios de máquinas de moer, câmaras frigoríficas e o prefácio do autor.

Uma das propagandas que aparecem intercaladas entre as fichas dos produtos | Foto: Karina Ferreira

Nele, Wilhelm Wahl, mestre açougueiro, que mais parece estar no Brasil de 2017 de “carnes fracas” do que na Alemanha de 1995, adverte os produtores sobre a crescente desconfiança dos consumidores em relação à qualidade dos embutidos. Seu conselho é de que os produtores usem matérias-primas excelentes e somente a quantidade necessária de ingredientes.

O livro, que viajou 10.332,45 km entre a livraria em que foi vendido, em Munique, na Alemanha, e o sebo da Rua Fernando Machado, viveu em uma época em que até a moeda era outra. Os 168 Marcos Alemães que são cobrados em sua etiqueta, extintos no país em 1 de janeiro de 1999, hoje seriam 86 Euros, ou R$ 381. Valorizou-se com os anos e hoje é o único exemplar no maior site de vendas de livros usados do país, o Estante Virtual.

Anúncio do livro no site Estante Virtual | Acesso em: 09/05/2019

A etiqueta, que funciona como uma espécie de certidão de nascimento do livro, não nos dá mais dicas sobre por onde ele andou nos últimos 24 anos. A conservação e ausência de rasuras me fazem pensar se esteve nas mãos desinfetadas de algum charcuteiro muito metódico, na estante de um comprador compulsivo que tem mais livros do que consegue ler, ou foi um daqueles presentes de amigo secreto de firma.

August Lachner é a livraria em que o livro foi vendido, em alguma data após 24 de fevereiro de 1997. Ele estava localizado na rua Theresienstr, número 43 | Foto por: Karina Ferreira

Yuli Mello Dugaich, produtor de embutidos artesanais que montou a própria charcutaria em Florianópolis há 1 ano e meio, não reclamaria de o terem tirado nesse amigo secreto. Ele, que tem outros três livros específicos sobre receitas e técnicas, disse que o valor elevado provavelmente se deve à raridade de livros como esse. Apesar da charcutaria ser uma das técnicas mais antigas de conservação de alimentos, datando de aproximadamente 3.000 anos, não há muito material acerca da técnica. Yuli diz que usa receitas de livros como esse, porém como a carne muda entre as regiões, as variações de gordura, por exemplo, vão tornar o resultado bastante único, por isso ele adapta e vai testando todas elas, inclusive usando temperos e outros ingredientes locais, para tornar o produto mais artesanal e sustentável.

As fichas técnicas com foto, composição química, tempo de preparo e mais informações específicas sobre cada embutido| Foto: Karina Ferreira

Caso Yuli se interesse pelo livro de Sérgio, bastariam 65,8 kg de linguiça de porco — o embutido de valor mais humilde da casa — ou 11,3 kg do presunto de cordeiro, que leva 6 meses para ser preparado e, atualmente, é o produto mais caro da loja, para realizar o escambo. Caso Sérgio aceitasse participar desse tipo de economia, claro. Enquanto as negociações não avançam, Yuli me convida para conhecer a loja e provar a tábua de frios, especialidade da casa. Agradeço contando que sou vegetariana e, com isso, contribuo com mais uma história estranha entre as tantas possíveis — e não escritas—que recheiam o livro mais caro e menos procurado do sebo.

Leia o perfil de outros livros que representam os sebos do Centro de Florianópolis: memórias, arte e nostalgia. As reportagens fazem parte do projeto “Será que o pessoal não lê?”, que você confere agora.

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