Arquipélago Gulag (5/6)

Hemanuela P
8 min readApr 29, 2019

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Injustiças

Disponível em Joven Pan

“Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder.” George Orwell (1984)

Esta parte do resumo irá contemplar os capítulos finais da primeira parte do Arquipélago Gulag. Soljenitsin buscou demonstrar como foi a evolução do sistema legislativo da Rússia. Como, aos poucos, o Partido Comunista conquistou poder legal para perseguir, prender e até matar seus inimigos.

Mas antes, vale contar sobre como ele recebeu sua sentença (durante um período ele só esteve preso aguardando saber qual seria a duração da sua pena) e como foi liberado, após cerca de 8 anos.

Alexander conta que no ano de 1945 era esperado uma grande anistia em virtude do aniversário da Revolução. Um companheiro de cela sonhava — e acertava — que outros companheiros seriam libertos. Até que um dia sonhou, e por incrível que pareça ele acertou, que chegara a vez dele e de Soljenitsin.

No fundo eles não foram libertos, mas receberam suas sentenças e com tempo de prisão bem menor do que esperavam. Alexander chegou a pedir apelação, pois considerou sua pena injusta, mas no fundo sabia que era um alívio não ser condenado a mais de 20 anos. Sua intenção era não dar nenhum passo em falso. Trabalhar honradamente e manter-se calado. “Tanta era a fé que punha nesse programa, tanta era a esperança que tinha este inocente grão apanhado entre as pedras de moer stalinistas! Sentíamos vontade de estar de acordo com ele, de cumprir comodamente a sentença e de varrer depois da cabeça tudo o que tínhamos sofrido.

Mas uma sensação começou a emergir de dentro de mim: se para viver é preciso não viver — então para quê?”

Neste ponto ele começa a relatar o funcionamento das Comissões Especiais, responsáveis pelos julgamentos e sentenças.

A intenção do Partido Comunista era que não houvessem tribunais. Em 1929 o VIII Congresso do Partido incluía no seu programa: “fazer o possível no sentido de que toda a população trabalhadora, sem exceção, seja chamada ao exercício das funções judiciais”.

Mas organizar uma população inteira e conscientiza-los disso era tarefa difícil e a GPU criou as já citadas troikas e estas evoluíram para as Comissões Especiais (OSO), composta pelo Comitê do Partido, Ministério da Segurança do Estado e a Procuradoria. Não cabia recursos às penas imputadas pela OSO, pois não era um tribunal de verdade, ela apenas impunha “sanções administrativas”.

As troikas aplicavam, no início, penas de três e cinco anos e a partir de 1937 a OSO aplicava dez anos. Em 1948 a OSO passou a aplicar penas de 25 anos! Além disso, não cabia recurso contra as sanções pois não havia nenhuma instância superior. Soljenitsin explica que a OSO “estava subordinada unicamente ao ministro do Interior, a Stalin e a Satanás…”.

Outros fatos absurdos: não era preciso nem ver o acusado pessoalmente. Nem mesmo por foto.

As características essenciais desse sistema de julgamentos eram: portas fechadas (sessões secretas, longe do inimigo), predeterminação das sentenças (muitas estavam prontas aguardando só a inclusão do nome do acusado) e a dialética (toda análise chegava a mesma conclusão: culpado).

Era algo tão evidente que em 1958 os funcionários do sistema judicial cometeram uma gafe: “publicaram nos jornais o projeto das novas ‘Bases do sistema penal da URSS’ e esqueceram-se de inserir um ponto sobre a possibilidade de uma sentença de absolvição. O órgão do governo repreendeu-os, mas em tom brando: ‘Isso pode dar a impressão de que os nossos tribunais só preferem sentenças condenatórias’”.

Soljenitsin compara o fortalecimento da OSO ao crescimento humano:

- criança: seria o período das tchekas/GPU. O Partido havia tomado o poder, mas não havia um código penal ou tribunais. Um famoso camarada do Partido Comunista, Krilenko, comentou que “um tribunal revolucionário é um órgão da luta da classe operária contra os seus inimigos” e deve atuar “tendo em vista os interesses da Revolução…levando em conta os resultados mais desejáveis para as massas operárias e camponesas”. Por isso, como citado acima, todos os cidadãos deveriam ser capazes de exercer justiça. A verdadeira justiça seria a de um júri popular. Um júri proletariado. Vejamos um exemplo: os clérigos da igreja organizaram uma guarda voluntária para o patriarca da igreja. A ideia era avisar se houvesse algum tipo de ameaça de invasão e tentativa de confisco de relíquias (algo que vinha acontecendo bastante). A guarda voluntária foi acusada e condenada. Primeiro motivo: existir. Segundo motivo: resistir às tentativas de confisco tocando os sinos das igrejas (eles não tinham armas). Terceiro motivo: enviar muitas queixas ao Comissário do Povo reclamando da forma como eram tratados. Pena: fuzilamento. Mas houve atenuantes e a sentença foi reduzida para “internamento num campo de concentração até a completa vitória sobre o imperialismo mundial”. Bem ambicioso, né? Se eles estivessem vivos hoje, ainda estariam presos.

- viril: a fase de perseguição spetsi (especialistas). O proletariado era levado a odiar os especialistas. Foram os casos de sabotagem que já mencionei anteriormente. Um caso bastante interessante: o engenheiro Oldenborguer. Este engenheiro trabalhou durante 30 anos no Serviço de Canalização de Água de Moscou. Em 1922 era engenheiro-chefe e pelo que Soljenitsin relatava, era o tipo de homem que vivia para seu trabalho e tinha muito orgulho disso. Em um período de greve, cuidou sozinho para que o sistema de abastecimento não falhasse. Mas, apesar de todo seu esforço, era um inimigo. A orientação do Camarada Lenin era que “para vigiar os especialistas burgueses, precisamos de um cão de guarda como a Inspeção Operário-Camponesa”.

Este homem, bastante capaz, passou a ser vigiado e perseguido. “Ultrapassando os limites de sua natureza interina de intelectual, em virtude da qual nunca na sua vida se tinha exprimido com dureza, Olderborguer atraveu-se a qualificar as ações do novo chefe da canalização, Zeniuk (homem admirado por Krilenko), de despotismo!”.

As comissões de inspeção Operário-Camponesa não encontravam defeitos na canalização, mas acusavam o engenheiro de tentar dilapidar as caldeiras. Oldenborguer tentou adquirir caldeiras de madeira por equipamentos novos de cimento e foi acusado de sabotagem.

Surpreendemente, os trabalhadores do serviço de bombeamento não viam sabotagem e defendiam Odenborguer a ponto de defenderem sua candidatura para o Soviete de Moscou (algo como Homem do Ano, pelo que entendi). Obviamente o Partido recusou e destituiu o engenheiro do conselho de administração, impondo vigilância constante.

Isso tudo não foi suficiente. O Camarada Sediêlhnikov (um jornalista) escreveu um artigo numa revista chamada Vida Econômica comentando que “em virtude dos rumores que inquietam a opinião pública a cerca do estado catastrófico da canalização…”, e relatou muitos boatos, inclusive o de que o serviço de canalização estava na verdade minando, intencionalmente, os alicerces de Moscou.

Uma comissão foi convocada e a conclusão foi de que o estado das canalizações era satisfatório. O camarada então respondeu “eu apenas me propus a tarefa de provocar barulho em torno do problema, mas compete aos spetsi averiguar o que há de verdade em toda essa questão”. Que interessante manobra jornalística! Soljenitsin ficaria surpreso, se estivesse vivo, em ver como conseguiram copiá-la nos dias de hoje.

Oldenborguer suportou o quanto foi possível. Lembra que ele havia pedido caldeiras novas e foi acusado de sabotagem? Fizeram encomendas de caldeiras estrangeiras. O ultraje foi o limite. Oldenborguer suicidou-se.

Há ainda outro caso interessantíssimo envolvendo a Igreja.

Disponível em Dailymail

Já comentei sobre os confiscos. A guerra civil se desenrolava e a Igreja possuía muitas relíquias de valor, mas os confiscos eram péssima propaganda para o Partido. Tampouco podiam pedir ajuda, pois isso seria como “minar a ditatura do proletariado”. A fome era tamanha que os pais comiam os próprios filhos.

Em dezembro de 1921 o Comitê do Estado de Ajuda às Vítimas da Fome propôs à Igreja que oferecesse seus bens aos famintos — só os que não eram canonicamente imprescindíveis. O Patriarca foi de acordo e sublinhou que as ofertas deveriam ser voluntárias. Isso irritou o Partido e este, por sua vez, autorizou o confisco. O patriarca não concordou. “Isto é de Deus, e nós daremos tudo. Mas não é necessário fazer confiscos, a oferta deve ser voluntária”, comentou um metropolita de Petrogrado, defendendo a posição da Igreja. Tudo parecia que poderia caminhar para uma solução pacífica, mas o Partido não aceitava a submissão à bondade da Igreja. Lançaram boatos nos jornais prejudicando os pastores e príncipes da Igreja. “Não precisamos de nenhum dos vossos sacrifícios! Nem de ter quaisquer conversações convosco! Tudo pertence ao poder e ele tomará conta do que considerar necessário”. ¹ E foi o que fizeram.

- adulta: Soljenitsin considera que a lei torna-se adulta quando entra em voga o Código Penal corrigido e melhorado (no qualestá o famoso artigo 58 já citado aqui).

Krilenko buscava um processo robusto. Algo que envolvesse uma organização em todo o país. Alexander cita alguns julgamentos que envolviam a intelligentsia ou organizações mencheviques. Eram processos em geral eram fabricados com o objetivo de atrair a atenção do povo para um inimigo, mas como era difícil arranjar todo o processo “Stalin decidiu não mais lançar mão dos julgamentos públicos. Mais exatamente, ele tinha projetado em 1937 levar a cabo uma ampla rede de processos por zonas, para que a alma negra da oposição se tornasse visível para as massas. Mas não se encontraram bons encenadores, estava fora das possibilidades…”. Além disso, era comum que o povo, assistindo aos julgamentos, ficasse do lado dos acusados. Alguns, como o engenheiro Oldenborguer, eram boas pessoas e não havia realmente prova de que queriam prejudicar o Partido. Era muito mais seguro evitar essas encenações em público.

Na libertação de Soljenitsin continuamos tendo surpresas com o sistema judicial.

Em 1963, ele foi chamado perante um tribunal de 70 juízes e lhes disse “que dia tão memorável! Tendo sido condenado primeiro a um campo de trabalhos forçados e depois ao desterro perpétuo, nunca os meus olhos tinham visto um só juiz, e agora vejo-os a todos os senhores, reunidos aqui juntos!”. Alexander explica que também devia ser a primeira vez que tais juízes viam um zek (preso de campo de concentração) ao vivo.

Ele conta que os juízes falaram sobre vários casos nos quais tentaram evitar sentenças absurdas. Pareciam homens bons, não foram culpados de nada do que aconteceu. Essa era a impressão. Mas isso também o fez refletir que os juízes também eram apenas peões nas mãos do Ministro de Segurança.

Eles contavam-me tudo da melhor forma que podiam, enquanto eu os examinava com assombro. Estes eram homens! Homens completos”. Chegavam mesmo a sorrir” Eles explicavam sinceramente como tinham desejado sempre o bem. Mas, e se tudo desse uma volta tal que eles tivessem de julgar-me outra vez? Aqui nesta mesma sala? (Mostraram-me a sala principal). Bom, condenar-me-iam também.

Qual nasceu primeiro: o ovo ou a galinha? Os homens ou o sistema?”

Ao libertarem Soljenitsin comentavam que havia lido Um dia na vida de Ivan Denisovich (livro sobre os campos de trabalho forçado que Alexander conseguiu publicar enquanto estava preso) e que ansiavam por reformas e mudanças sociais.

Ele encerra o capítulo comentando “se a primeira e minúscula gota de verdade explodiu como uma bomba psicológica, o que sucederá no nosso país quando a verdade se precipitar em torrentes?

E há de precipitar-se inevitavelmente”.

Ansiamos por isso. Ainda.

Link para o próximo post: https://medium.com/@portatrechos/resumo-arquip%C3%A9lago-gulag-6-c4bdb9eca139

Referências:

¹ Soljenitsin menciona que retirou os dados sobre os processos clericais do livro Ensaio sobre a história dos tumultos religiosos, de Anatoli Levitin, Part I, samizdat, 1962. E das notas do interrogatório do Patriarca Tíkhon, tomo 5 dos atos do processo judicial.

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