Para Santiago Sob a Chuva (Parte 3 de 4) — No meio do Caminho havia a riqueza dos encontros

Renata Mello Feltrin
7 min readFeb 7, 2023

( Para ler os textos anteriores dessa série: Texto 1 e Texto 2 )

Naquela última quinzena de outubro de 2022, eu e Rogério estávamos no no 3o dia de caminhada pelo Caminho Central Portugês rumo à Santiago de Compostela. Quanto mais avançávamos nos dias de peregrinação, mais passavamos por lugares de muita natureza exuberante. Bosques que pareciam sair de um filme de conto de fadas, muitas vezes com um rio à nossa direita com um barulhinho de água delicioso e calmante. Trechos de muita subida e por vezes descida intensa.

Passamos também à percorrer bons pedaços pela antiga estrada XIX Romana, com solo repleto de antiquíssimas pedras, muito irregulares, que exigia bastante esforço físico, mas que compensava pelo visual. Imaginar toda a história já experimentada ali, toda a mística de séculos e séculos de vivências e fé passadas naqueles trechos foi especial. A experiência de passar muitas e muitas horas imersa nesses cenários, desplugada do “mundo real”, sem telas, offline nos levaram a horas e horas de extrema conexão. Só que a conexão ali era outra.

Os encontros dentro do encontro

Se nos dois primeiros dias o encontro foi com a chuva e comigo mesma, entre Redondela e Pontevedra, no dia 3, começou outra sequência de encontros, agora com pessoas. E esses momentos trouxeram ainda mais significado e profundidade à experiência que estávamos nos propondo à viver.

Conhecemos a Marina, vinda da Ucrânia. Ela teve sua cidade natal destruída pela guerra que acontecia naquele momento com a Rússia e, por isso, havia levado também a família para morar com ela em Kiev. Marina estava fazendo o caminho e depois iria voltar para lá. Conversamos, nos emocionamos, nos abraçamos, seguimos. Um encontro que me fez passar o resto da caminhada naquele dia pensativa e introspectiva.

Voltar para a Guerra

Eu havia experimentado, na concretude da conexão com a Marina, a realidade de que pessoas vivem em locais em estado de guerra prolongados por pura falta de opção. Ucrânia, Palestina, África, quanta gente! Além disso, quantas pessoas, por falta de acesso, por falta de tudo, por sua raça, por seu gênero, por sua orientação sexual, e até mesmo sua escolha religiosa, vive uma guerra para sobreviver, para conseguir comer, para conseguir ser genuinamente quem são?

Pensei muito no que o caminho faria na Marina, o que ela deixaria nele e o que levaria dele. Quais as guerras que, de natureza distintas, cada um vive? Meditei sobre o que seria viver o Caminho de Santiago e depois voltar para o estado de conflito eminente. E refleti qual seria minha própria guerra continuada, para a qual eu precisaria voltar diferente.

Um oásis bem na minha frente

No dia 4, saindo de Pontevedra, o sol muito tímido nos deu bom dia quando atravessamos a ponte sob o Rio Minho, mas logo depois sumiu. A chuva novamente nos faria companhia, ficou mais intensa apenas no período final da caminhada, mas aquele foi um dia muito nublado. Caminhando em meio à natureza, em um trecho de chuva fina, avistamos uma peregrina sozinha seguindo à nossa frente. Ela parou, nos avistou e nos chamou ao seu encontro. No seu rosto um sorriso imenso, genuíno e iluminado.

— Vocês poderiam tirar uma foto minha? Queria mostrar pra minha família como estou caminhando, com essa capa de chuva!

Era uma senhora e vestia uma capa-poncho azul e na cabeça, em baixo dela, uma touca branca de tricô com um enorme pom-pom em cima. Chamava-se Helta, vinha da Áustria. Quis saber nossos nomes, de onde éramos, se éramos casados. Viu fotos das nossas filhas, ficou encantada e nos encantou. Conversamos:

— Helta quantos anos você tem?
— Tenho 70 anos.
— Nossa, 70! Por que fazer o caminho agora?
— Porque agora eu posso! ( com um sorriso incrível que reforçava esse poder! )

Helta estava fazendo o caminho sozinha já há 4 semanas. Contou que havia saído de Lisboa, de lá são 610 quilômetros até Santiago, mas faria a pé “uns 400”. Um pedaço fez de ônibus, outro de táxi porque chovia muito e em uma cidade dormiu 2 noites seguidas para descansar.

— Estou fazendo no meu ritmo, o importante é chegar!

Pouco antes do caminho no Brasil eu havia feito um workshop com a médica Ana Cláudia Quintana Arantes, geriatra e especialista em cuidados paliativos. O seu último livro — PARA A VIDA TODA VALER À PENA — é quase um guia prático para se envelhecer mais feliz. No começo do livro ela cria um paralelo que diz: imagine que aos 40 anos você vai assinar um contrato aceitando que aos 70 vai morar no deserto, e até lá tem que se preparar. O deserto é a velhice.

No workshop, Ana disse uma frase que me marcou: “A velhice com alegria não é um oásis que encontramos no deserto, é um oásis que precisamos construir. A gente precisa escolher muito cedo o que quer viver quando velho e se preparar para isso.

Na minha frente, sorrindo, Helta era a concretude da fala de Ana Cláudia. Para mim não foi por acaso encontrá-la, não foi por acaso descobrir que ela tinha exatamente 70 anos. Quantos tantos ao chegar na velhice aderem à reclusão e abdicam de fazer muitas coisas? Helta estava ali escolhendo viver, ela podia! E com certeza não foi uma questão apenas de sorte ela ter esse poder na velhice. Aquela senhora foi para mim o encontro vivo com alguém que construiu com intencionalidade o seu oásis.

A vida não é só surpresa, destino e desconhecimento. Nos espera no futuro o resultado das nossas escolhas. O desenrolar da nossa existência é sobre escolher. Por mais que a gente não perceba, ou não o faça com convicção, sempre estamos escolhendo algo em prol de outro na vida. Da forma como me alimento, do exercício físico que faço ou deixo de fazer, das amizades que cultivo ou deixo morrer, da curiosidade por aprender algo novo que me alimenta ou do conformismo com o mais do mesmo, tudo é escolha. Gradualmente vamos agregando em quem somos o acumulo delas e se tivermos a sorte de ter vida longa, elas chegarão conosco no deserto.

Eu abracei Helta, conversei mais um pouco e absorvi toda a potência daquele encontro. Ela nos disse que podíamos seguir porque ela ia no ritmo próprio, devagar. Eu, na verdade, não queria sair do lado dela, mas seguimos. Com ela no coração. Naquele dia nublado ela foi meu raio de sol. E e quando penso nela, ainda hoje, Helta continua me iluminando intensamente.

A força feminina

O sexto dia pra gente, seria o último trecho também para tantos e nesse dia havia muitos, mas muitos peregrinos durante todo o percurso caminhando ao nosso lado. Uma moça com joelho machucado e dois pedaços de galhos de madeira que ela usava como cajado, bem improvisados caminhou bastante tempo à nossa frente.

Paramos pela última vez a 8 km de Santiago, a última refeição antes da chegada. Assim que saímos do café encontramos Beto e Edianeth, ele 65 anos e ela 60: dois brasileiros de Curitiba que havíamos conhecido 3 dias antes em um trecho do percurso. Passamos a caminhar juntos então nesse trecho final. Eles haviam saído de Porto e estavam no décimo segundo dia do seu caminho.

Edianeth, com muitas bolhas nos pés, me contou que tinham 4 filhos hoje já adultos e há muito sonhava fazer essa peregrinação, mas só agora com eles crescidos puderam viver isso. Ela estava no final de um tratamento contra um câncer de pulmão seguindo sua jornada ali com uma firmeza e ao mesmo tempo doçura emocionantes. Neth me fez pensar em uma frase que gosto muito: “a amabilidade, o amor e a ternura são bem equilibrados com o compromisso, o coração e a firmeza”. Ela estava ali amavelmente comprometida com ela mesma, com o viver, com o seguir.

Ao longo de nossa experiência de caminho, encontramos muitas mulheres sozinhas fazendo a caminhada, sem dúvida bem mais que homens. Se você aprofundar, vai descobrir que nós, mulheres, somos normalmente mais abertas a experimentar a vulnerabilidade e buscar o auto conhecimento como processo de evolução.

Eu me conectei à cada uma que passou por mim em sua coragem, na escolha por enfrentar o desconhecido, na necessidade da busca por minha essência, no reconhecimento da própria força feminina e auto suficiência.

Cada uma delas me inspirou: aquelas com quem falei e mesmo aquelas que só avistei por perto. Elas me mostraram, como um reflexo no espelho cada vez mais nítido, a força e sensibilidade do feminino conectadas.

Tatuagens eternas

Edineth com quem me conectei também pós caminho e com quem planejo encontrar de novo no Brasil, foi e continua sendo mais um grande encontro que aqueles dias na Galícia me trouxeram de presente. Conexões que aconteceram e ficaram gravadas afetivamente na minha lembrança e no meu coração.

Dizem que a gente pode esquecer do que viveu, mas jamais esquece do que sentiu. Os encontros do caminho são tatuagens coloridas e eternas gravadas pelos sentimentos em mim.

Sobre a Autora: Renata é casada com Rogério Feltrin desde 2005 e juntos percorreram 125km do Caminho de Santiago na Galícia entre 19 e 24/10/2022. São pais de Carolina 9 anos e Mariana 12 anos, que atuou como ilustradora desse projeto.

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Renata Mello Feltrin

Renata Feltrin é mãe, construtora de futuros e apaixonada por viajar como uma atitude de curiosidade e descoberta sobre si mesma, o mundo, pessoas e culturas.