Os bastidores da produção da reportagem sobre os cinco anos do clipe de "Oração", da Banda Mais Bonita da Cidade | "Casa de Oração | Rio Negro-SC | 2016 (Foto: Lex Kozlik)

Por Trás do Plano

Os bastidores de "A Sequência do Plano", documentário e matéria sobre a gravação do clipe "Oração", da Banda Mais Bonita da Cidade.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
9 min readOct 27, 2016

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Eu nunca quis ser o primeiro, queria ser o melhor, queria acertar a história, dar todos os detalhes, contar isso lindamente. Esta frase não é minha. É de Gay Talese, jornalista octagenário, “criador” do jornalismo literário (já falei dele aqui).

Somos, todos, resultado de uma gama de fatores que vamos acumulando por toda a vida: nossas experiências empíricas, mais a cultura que consumimos, as pessoas que convivemos, os lugares que frequentamos, os livros que lemos. Tudo isso eu sou. Tudo isso me forma.

Com a literatura, eu aprendi principalmente o prazer da imaginação, da transgressão e da iconoclastia. Como, por exemplo, a liberdade de iniciar um texto jornalístico apropriando-se de uma citação sem aspas. Quero, com isso, insinuar veladamente que não só concordo e compactuo com o pensamento do texto, como me aproprio dele.

Com o jornalismo, aprendi o rigor e a responsabilidade da informação. Como, por exemplo, esclarecer que chamar Talese de “criador” do jornalismo literário não é bem uma verdade, mas uma interpretação, por isso as aspas. E que para eu ser sincero e preciso com os meus leitores, como convém a um jornalista, era preciso, por exemplo, que eu escrevesse esse esclarecimento.

E foi assim, querendo ser o melhor, e não o primeiro, que eu cheguei em 2016, com cinco anos de atraso, à Casa de Rio Negro, onde foi rodado o clipe de Oração, da Banda Mais Bonita da Cidade. Zeca Camargo, novidadeiro, chegou primeiro. Eu? “Queria acertar a história, dar todos os detalhes, contar isso lindamente.” Contar por último. Contar definitivamente.

A Banda Mais Bonita da Cidade, Rosano Mauro Jr., Ana Larousse e Leo Fressato, fotografados para a reportagem "A Sequência do Plano" (Foto: Lex Kozlik)

A “Casa de Oração”

“Onde não há intimidade, a contemporaneidade não se demora.” Quando Oração viralizou o Brasil em looping, em 2011, eu conhecia “intimamente” aquelas três vidas inteiras: Léo, Ana e Banda. À Anaa menina de cabelos vermelhos que pediu emprestada a casa da vó, como descreve a matéria, ou a mulher ruiva sentada no sofá aos 2:17, como descreve o documentário — eu fui apresentado em 2004, há 350km de Curitiba, na sala da casa da minha mãe, em Santa Catarina.

Éramos jovens (mais do que ainda somos hoje), era feriado de Carnaval e eu frequentemente levava “uma galera” de Curitiba para “curtir” as belezas naturais do lugar, num tempo em que curtir ainda não era apenas dar joinha em postagens alheias.

Naquela ocasião, éramos seis, a galera. Sete com a “tal menina dos cabelos vermelhos”, que desembarcou de gaiato junto com outros amigos, sem nem me conhecer, dizendo “muito prazer” dentro da sala da casa onde nasci, sem que eu nunca tivesse visto mais ruiva.

Embora o convívio sempre tenha existido pelos anos consecutivos que nos separam até aqui (fui Produtor Executivo de seu primeiro disco, tínhamos ido juntos à “Casa de Oração outras duas vezes antes, nos encontrado nos bares e São Francisco da vida…), a intimidade nunca mais foi a mesma. Naquele primeiro final de semana com ela em Tangará, soube segredos de cortar os pulsos, que não contaria em nenhuma revista.

Rômulo Zanotto e Ana Larousse. Ela confidenciando histórias sobre os retratos de sua família e sobre a "Casa de Oração" (Foto: Lex Kozlik)

Naquele primeiro final de semana com Ana em Tangará, soube segredos de cortar os pulsos, que não contaria em nenhuma revista.

Em setembro daquele mesmo ano, eu mudaria então para o Rio de Janeiro, de onde retornaria a Curitiba apenas quatro anos depois. Na volta, conheci o Leo, tocando violão, de forma também inusitada e intimista, na sala da casa de outro grande amigo.

Este Grande Amigo, com maiúsculas, tinha morado na França, conhecido a Ana (que durante esta minha estada carioca ou um pouco depois também tinha se mudado, ido morar além-mar) e sido apresentado ao Leo em algum momento que me foge à precisão jornalística e, ao mesmo tempo, se torna literariamente desnecessária. Segundo ele, “eu precisava conhecer o Leo”. Achei um chato. Artistas em início de carreira, quando estão “entendendo seu tamanho e seu talento”, são, com frequência, uns pernósticos.

Só passei a gostar dele alguns meses mais tarde, quando, por outra coincidência do destino, o convívio e a intimidade se estreitaram. Naquelas de “estar voltando para Curitiba”, sem ainda um lugar para chamar de meu, passei a dividir apartamento com uma colega de Faculdade. A colega, agora, era também amiga do Leo. Bem íntima, bem próxima. E assim, o Leo ia aparecendo “lá em casa” (a casa não era minha, lembra?), quase todo dia, cantando orações e rezando músicas. É… Eu precisava conhecer o Leo! Obrigado, Destino!

Leo e Rômulo Zanotto (Foto: Lex Kozlik)

Leo era ainda um menino, um piá, como chamamos em Curitiba. Mas no trato e na simplicidade das letras, das palavras e das melodias, já era um pequeno gênio trovador (característica que mais me atrai nas artes ligadas às letras). Tivesse ele também uma verve e uma vivência política mais afiadas e fosse o dobro de menos tímido, certamente seria o nosso Chico Buarque curitibano.

Fosse como fosse, era assim que eu olhava o Leo: com o prazer de quem vê, ao mesmo tempo, algo simples e poderoso à sua frente. O que aconteceria com Oração, pouco depois, foi a prova dos nove. Como amigo dele, tive o privilégio de sentir um pouco antes o que milhões de pessoas sentiriam depois. Anos depois (2012), produzi também seu primeiro disco.

Submundo Autofágico

A Banda veio por último. Eu tinha voltado do Rio de Janeiro transformado em Produtor Executivo. Havia percebido, em mim, uma capacidade de produção e realização de ideias artísticas acima da média dos meus colegas artistas, e achava — depois tive certeza — que, além das minhas ideias, eu podia viabilizar também as ideias dos outros.

Foi assim que, no final de 2009, quando trouxe a Curitiba pela primeira vez o show de Maria Gadú, convidei o Leo para fazer a abertura. A ideia era que, a partir dali, em qualquer show nacional que eu trouxesse, em que a produção comportasse e a logística permitisse, fosse apresentado um artista curitibano.

Só que as vendas começaram, os ingressos foram saindo, e a plateia foi crescendo, chegando à casa do milhar. Eu fiquei preocupado. Leo não era o nosso Chico Buarque, era apenas um menino, não tinha feito nenhum show contundente até então. Conseguiria segurar, sozinho, mil pessoas que não o conheciam, apenas com violão e voz?

Hoje eu sei que sim. Na época, na dúvida, preferi optar pela minha responsabilidade e credibilidade profissional. "Tirei" o Leo. “Tirei” não é uma citação minha nem do Talese. É, também, uma forma de insinuar que eu conversei com ele e o tiramos juntos. Foi o próprio Leo quem me indicou a solução: colocar a Banda em seu lugar, falando coisas de amor.

Reprodução do flyer do show

À Banda, eu ainda não tinha sido apresentado em sala de casa alguma. Os conheci no camarim, no dia do show. Ao contrário do que aconteceu com o Leo e a Ana, nunca tive, com os Bonitos, uma relação mais próxima, mais estreita, mais pessoal. Mas também nunca os perdi de vista.

No ano seguinte (2010), quisemos, eu e minha sócia, produzi-los. Os procuramos, fizemos o projeto de gravação do que seria o primeiro álbum da banda, o CD Mais Bonito da Cidade, e o inscrevemos em nome da Uyara na Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Naquele ano, o edital tinha duas categorias para os proponentes (como se chamam os representantes dos projetos) — iniciantes e não-iniciantes –, com critérios bastante controversos para análise e julgamento.

Uyara mal tinha saído da faculdade. Não tinha, portanto, um histórico artístico contundente ainda. Foi inscrita como iniciante. Alguém, na Fundação Cultural, desclassificou o projeto. Seria mãe Dinah, se antevendo à explosão do clipe?

Seja como for, “o que não acontece também faz história”: sem o CD Mais Bonito nas mãos, não fizemos projeto juntos. Ao invés disso, os Bonitos gravaram uns vídeos. Três. E o que aconteceu depois, você já sabe.

Fama & Anonimato

Quando Oração estourou, em 2011, de alguma forma eu queria ter estado junto, participado da festa, pego carona no balão mágico da banda. Eu gostava deles, acreditava neles, torcia por eles. Queria, de alguma fora, ter estado junto. Mas o mundo é uma fossa. Não tem carona nessa carroça. Fiquei aqui, olhando e admirando o voo.

Em 30 de julho de 2011, quando “lotar o Guaíra” deixou de ser verso e passou a ser realidade na vida deles, ao invés de estar no backstage, como gostaria — poucas coisas são mais gostosas na vida do que ver um show ou uma peça com a cumplicidade de quem olha por entre as pernas e as fugas de uma coxia — eu estava na plateia. Fileira M, poltrona 25.

Meu ingresso para o show da Mais Bonita no Guairão, em 2011. Poltrona M25.

Ano seguinte, em frente ao Teatro Paiol, antes da sessão de algum show ou peça de teatro, não a Banda, mas Ana e Leo me chamaram para fazer a Produção Executiva de seus respectivos álbuns de estreia. O CD do Leo, nós também já havíamos apresentado à Lei de Incentivo naquela mesma ocasião da Uyara, igualmente indeferido, e pelo mesmo motivo.

Não importava. Nesta nova ocasião, tiramos o projeto do papel pelo Catarse, financiamento coletivo, e uma das recompensas para os colaboradores era passar um dia na “Casa de Oração. Para planejar a logística e a produção do encontro, fizemos algumas viagens, e passamos alguns dias lá. Foram mágicos. “This house is a magic house.” Um bordão interno, que surgiu à época, e virou meme entre a gente.

Voltar a ela, agora, para contar esta história, foi igualmente mágico. Gosto do que eu chamo de “lugares com alma”. E um dos objetivos que eu me proponho na vida é esse: tentar perceber e revelar a alma. Das coisas, das pessoas, e dos lugares. Verdade, com sensibilidade.

Rômulo Zanotto e equipe da revista One (Foto: Lex Kozlik)

E um dos objetivos que eu me proponho na vida é esse: tentar perceber e revelar a alma. Das coisas, das pessoas, e dos lugares.

Fazer isso em relação à casa, ao Leo, à Ana, à Banda, foi uma forma, ainda que tardia, de fazer parte da festa daquele plano, ainda que fosse na sequência dele. Entrar na história, ainda que fosse por detrás do pano. Não fui o primeiro a entrar, mas fui o último a sair.

Quando a saga da postagens dos vídeos terminou, Ana me mandou o seguinte áudio, disponibilizado no rodapé deste link a título de registro jornalístico e transcrito abaixo. No áudio, ela está falando comigo. Mas não sei porquê… gosto de imaginar que ela está falando com Gay Talese!? 😉

“Rômulo Zanotto, querido, há dias que estou para te escrever, no entanto vou te mandar um áudio”, começa ela. “Bonito… Que trabalho lindo que vocês fizeram. Eu não tenho nem palavras. Até encontrei ontem com a Uyara, a gente falou: Que lindo! E ela falou: Nossa, eu agradeci tanto o Rômulo, porquê… que lindo ter este material, a gente precisava tanto ter isso, é lindo ver registrado. (…) O texto da revista, eu li agora, que texto bonito, que bem escrito. Que sensibilidade, que coisa linda. Que coisa linda! Que trabalho bem cuidado, bem escrito, bem cuidado, roteiro lindo, bem montado, a fotografia tá linda. Nossa! (…) Tá muito bonito! Queria te agradecer e te elogiar. E passe isso para os garotos também. Tá muito bonito mesmo. Muito gostoso ter todo esse material. Eu assisti ontem com a minha mãe todos os episódios, eu não tinha visto ainda. Ela chorou, se emocionou muito. Quando assistiu o meu, falando da família, que foi o último que a gente assistiu juntas, ela se emocionou bastante. Tá muito bonito. Muito bonito mesmo. Obrigado, obrigado pelo cuidado. Parabéns. Cara, sigam esta ideia dos documentários porque esse cuidado que vocês tiveram assim, na montagem, no tratamento pessoal, no tratamento do texto, é um cuidado muito raro que tem assim, no jornalismo, então… vocês pesquisaram muito, teve muita pesquisa, muito cuidado em manter a… verdade das coisas que aconteceram e que foram ditas e vividas. Muita preocupação com a verdade, com a sensibilidade, enfim. Sigam muito este projeto, porque jornalismo precisa de sensibilidade junto com verdade. Então é isso. Desculpa o áudio longo. Um beijo muito grande pra você, Aviador. Ficou lindo, cara! Eu só falei: Gente, o Rômulo tá num balão, o Rômulo é foda!

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.