A Ama (1884), conto abolicionista de Délia, autora de Lésbia (1890)

Sérgio Barcellos Ximenes
8 min readApr 6, 2020

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Outros artigos sobre Délia: Délia (autora de Lésbia) e Emília Freitas (autora de A Rainha do Ignoto): a saudade dos 15 anos de idade | Um folhetim inédito de Délia: O Crime do Convento de… (1891)

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A Ama, o conto abolicionista de Délia (Maria Benedita Câmara Bormann; 1853, RS — 1895, RJ), autora do romance Lésbia (1890), saiu no jornal Gazeta da Tarde (Rio) em 30 de janeiro de 1884, pouco mais de quatro anos antes da abolição da escravatura.

Délia era a única mulher da seção diária intitulada Folhetim, tendo publicando naquele espaço mais de 20 histórias entre 1883 e 1888.

O conto A Ama aborda duas situações corriqueiras na vida dos escravos brasileiros, a primeira exclusiva das mulheres negras (seu uso forçado como ama de leite de filho de brancos), e a segunda comum a ambos os sexos (a decisão de optar pelo suicídio, motivada pelo sofrimento insuportável inerente à sua condição de cativos).

Essas situações são tratadas em detalhes no meu livro Cenas da Escravidão (1849–1888): o Sofrimento dos Torturados no Império da Crueldade, constituído de 600 histórias de violências contra os escravos.

Uma curiosidade técnica: o estilo escolhido por Délia em seus folhetins poderia, sem alteração, ser aplicado atualmente ao Twitter, já que nenhum dos parágrafos da história ultrapassa os 280 caracteres, contando-se os espaços entre letras.

Gazeta da Tarde (Rio), 30/1/1884, número 25, página 1 — http://memoria.bn.br/DocReader/226688/3343

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A AMA

Joana era uma crioula retinta, sadia, que trabalhava de enxada em uma fazenda próxima da Corte [o Rio de Janeiro].

Um dia, sentiu-se mãe: seus braços trêmulos cingiram docemente os flancos onde seu filho se agitava, e a negra pupila anuviou-se com lágrimas de enternecimento.

Durante nove meses trabalhou conscienciosamente, sem vergar à fadiga desse estado mórbido e incomodativo.

Às vezes, sob o sol ardente, arrimava-se à enxada, limpava o suor e, a largos haustos, aspirava a viração impregnada do cheiro ativo do café.

Seu olhar esmorecido fitava o céu azul imaculado, e a ideia de beijar o filho lhe animava a face de ébano em suave expansão.

É tão singelo e tão profundo o sentir desses pobres seres rudes, votados ao trabalho e à dor!

Uma noite, ao entrar na senzala, deu à luz a um robusto negrinho, e santamente abraçou o filho de suas dores.

Um mês depois, o senhor recebeu carta de um amigo, rogando-lhe que lhe enviasse uma ama em boas condições para amamentar o ilustre descendente de seus vícios.

Joana foi escolhida para esse fim e obedeceu sem murmurar, fula, com o peito dilacerado pelo desespero e pela saudade.

Apertou febrilmente o filho ao coração, como se o quisesse sufocar, e suas lágrimas escaldaram a criança, que chorou, magoada pelo angustioso amplexo materno.

A infeliz o acalentou, deu-lhe o peito em feroz ansiedade, desejando que ele sugasse todo o leite e nada ficasse para o filho dos brancos.

Entorpecida pela dor, a mísera viu desaparecer as terras da fazenda em que nascera e onde deixava tudo quanto havia amado!

Na estação da estrada de ferro encontrou um criado de confiança, que a conduziu em carro até a elegante habitação de seu amo.

Ao apear-se, introduziram-na em perfumada alcova, onde repousava uma bonita e pálida criatura.

A um gesto da jovem, Joana, indiferente, aproximou-se do berço e mirou o que nele havia: era um menino franzino, mimoso, cheio de rendas.

Aquele sono tranquilo e aquele morno perfume de criança comoveram a negra, que evocou a imagem do filho a dormir na esteira.

Suas narinas tremeram, e o magnetismo do seu olhar materno despertou o inocente, que chorou de fome.

Instintivamente, ela o tomou ao colo e lhe deu o seio pesado e dolorido pelo excesso do leite.

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Em breve, com algum tratamento a moça pálida tornou a aparecer nas festas e nos passeios, e Joana, só, no silêncio dos grandes quartos, pôde considerar-se a verdadeira mãe do menino que amamentava.

Enquanto ele dormia, ela vagava pelo aposento, triste, lembrando-se do filho, da comadre a quem o entregara, dos trabalhos do campo, e sua voz monótona entoava as cantigas do eito em melancólica saudade.

Ao menor vagido do menino, acudia solícita, amante e carinhosa!

Essa criatura “bruta”, com a qual ficavam os outros criados da casa, mostrava em seu maternal afeto a meiguice e o carinho de uma gentil castelã!

A tenra criancinha sossegava imediatamente ao brando movimento de seus braços fortes, amaciados pela ternura.

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No fim de alguns meses, o menino, gordinho, rosado, já sabia sorrir a Joana e lhe estendia os bracinhos roliços, falando-lhe na sua adorável balbúcie.

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Um dia o menino amanheceu rabugento, com as gengivas inflamadas, e começou o cruel trabalho da dentição.

Joana passava as noites acordada, acalentando o inocente que não podia mamar porque magoava a gengiva.

A preta lhe espremia o peito na boca, com paciência, a fim de que ele se alimentasse sem sofrer.

Dia a dia, a criança emagrecia, e Joana chorava vendo a palidez do menino que lhe fitava os grandes olhos tristes, como que apavorado pela aproximação da morte.

A infeliz, como um cão fiel, sentada junto ao berço, seguia ansiosa aquela destruição lenta, e, batendo no peito, amaldiçoava o próprio leite, que não podia reanimar a criança.

Pouco e pouco, o menino fanou-se [murchou] e tomou a rigidez do mármore. Joana chorou, rolando pelo chão em convulsivo pranto.

Depois lavou a criança, vestiu-lhe a roupa mais rica, depositou-o no caixãozinho cheio de flores e fitas, e sentou-se no chão a seu lado, como costumava ficar enquanto ele dormia.

Triste, abatida, vencida pelo cansaço, cerrava um pouco as pálpebras em passageira sonolência e maquinalmente acalentava o menino, cantarolando para adormecê-lo.

Oferecia pungente espetáculo aquele pesar sincero, despido de afetação, seguindo o impulso da ternura e do hábito!

De repente, abria os olhos e chorava, mirando a imobilidade daquele rostinho lívido, de lábios arroxeados.

No dia seguinte, os pais do menino despediram-na, deram-lhe algum dinheiro, como se o devotamento fosse pagável, e deixaram-na voltar ao trabalho e à fadiga.

Se a criança não morresse e crescesse forte e sadia, a recompensa seria a mesma: não a libertariam porque a libertação custa dinheiro e o que havia em casa era pouco para ridículas ostentações!

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Aturdida ainda pelo fatal acontecimento da véspera, Joana deixou aquele teto, onde nada mais a prendia, e entrou no vagão.

O tempo estava sombrio, chuvoso, as estradas lamacentas, as árvores gotejantes, os rios cheios, o horizonte nebuloso, a temperatura fria.

Ela metia a cabeça pela portinhola, e aquela vastidão brumosa, glacial, enlutada, causava-lhe estranha sensação de pavor.

Sua poética e rude imaginação, cheia de superstições, apavorava-se com aquela chegada, sem sol, sem lua, em que a esperança temia aparecer.

Só uma ideia lhe martelava o cérebro — ver o filho, mas aquele mau tempo a entristecia, provocando-lhe vago receio.

Por que seu coração pulsava fracamente, à medida que se aproximava da casa?

Acaso o filho estaria doente?

Com que prazer lhe daria o peito ainda cheio de leite, de que o haviam privado!

Como se chamaria ele?

Estaria gordo ou magro?

Gostaria muito da comadre, a quem o confiara?

Essa ideia feriu-a com o dardo do ciúme!

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Avistou afinal as terras da fazenda, e a emoção apertou-lhe a garganta: apenas pôde rir guturalmente e bater palmas, devorando com ardente olhar as plantações inundadas pela chuva.

Entrou em casa e foi conduzida à presença do senhor, que não lhe disse uma boa palavra nem a recompensou pelo seu bom procedimento na cidade.

Lépida, quase a correr, alcançou a senzala e avidamente procurou o filho: viu somente a comadre.

Alucinada, perguntou pela criança e soube que morrera um ano depois da sua partida.

Caiu a fio comprido [ao comprido], com a face na terra, soluçando, sem derramar lágrimas, sacudida por medonho estertor, sem ouvir a narração da parceira que lhe contava a agonia do filho.

Assim, de bruços, passou a noite inteira, ora soluçando de modo lúgubre, ora em aflitiva modorra.

Pranteava conjuntamente o filho de suas entranhas o o menino que lhe sugara o seio, amenizando-lhe a saudade que sentia do ausente.

Seu cérebro dorido, em mortal fadiga, evocava sucessivamente duas crianças, uma preta, outra branca, ambas frias, rijas, de olhos fechados e imóveis.

Afinal, pela madrugada, as duas visões fundiram-se em uma só, e o filho de criação, que ela contemplara mais tempo, sintetizou em si a a dor que a pungia, e nele chorou a sua triste maternidade!

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Pouco depois, no clarear do dia, foi despertada pelo feitor e voltou à roça, ao trabalho, ao cansaço, tendo na alma as trevas do Averno [antiga cratera italiana, considerada a entrada para o submundo] e a inconsciência da loucura!

Caminhou maquinalmente e começou a tarefa, sem ver o que fazia, atormentada por cruéis miragens onde perpassavam crianças mortas.

Aos lábios lhe subia um sopro ardente saído das entranhas, e que dizia:

― Filho! Filho! Filho!

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O sol surgiu radiante, inundando os campos de luz e calor, ostentando o verdor das árvores retemperadas pela chuva.

As flores viçosas, orvalhadas por diamantinas gotas, exalavam perfumes, e os bem-te-vis esvoaçavam na coma das mangueiras.

No meio das enrediças [plantas trepadeiras], enormes aranhas reparavam a teia avariada pelas chuvas, onde as brancas borboletas batiam as asas, palpitantes, debatendo-se no rendilhado fio que lhes fora traiçoeira armadilha.

Os insetos zumbiam, famintos, embriagados pelo calor e pelo doce néctar das flores apetitosas.

A natureza sorria, trajava galas, entoava um hino de amor, e a vida despontava por toda parte.

Só, morta, no meio de tanta seiva, Joana largou a enxada, vencida pelo desgosto e pela dor dos túmidos seios a vazarem leite.

Caminhou como /um/ espectro, sem receio de cobras, sem calcular que abandonara o serviço, seguindo para as proximidades do Paraíba, que passava dali a um quarto de légua.

Andou e avistou o rio, cheio, rolando suas águas; estugou [apressou] o passo e ajoelhou-se na ribanceira.

Seu olhar desvairado mirava o fervilhar da água em uma espécie de sorvedouro que lhe ficava aos pés, e os lábios murmuravam uns cantos suaves.

Afigurou-se-lhe ver o filho naquele marulho; sorriu, tirou os seios para fora da camisa e, do alto, espremia o leite, que resvalava pelas pedras e toldava as águas.

Sorria à medida que os peitos murchavam, julgando amamentar a criança.

Sublime alucinação materna!

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Outrora, no Canadá, as mães desoladas, com os olhos erguidos para o céu, também se aproximavam lentamente do pequenino mausoléu e, suspirando o nome do adorado filho, espremiam sobre seu túmulo o leite que os devera [deveria] nutrir!

A chorosa indiana [indígena] vê os ventos balouçarem a aérea tumba de seu filho morto: no dia em que a criança adormece no último sono, ela se inclina sobre sua boca e espera o seu despertar.

Quando o sol doura três vezes a nuvem, tece-lhe um leito de flores e folhagem, prende-o ao ramo flexível, balança-o de leve e não percebe que embala um túmulo!

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Joana erguera-se e, subitamente, lembrou-se de tudo: soltou medonho grito e disse, precipitando-se no sorvedouro:

― Filho! Filho!

Desapareceu, e dias depois descobriram o vestígio de seus pés na ribanceira e compreenderam que havia se suicidado.

Nenhuma lágrima, nenhuma prece pela pobre mãe cativa, que se libertara da vida e fora procurar o filho no seio da morte!

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.