Um folhetim inédito de Délia: O Crime do Convento de… (1891)

Sérgio Barcellos Ximenes
27 min readJan 19, 2020

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Outros artigos sobre Délia: A Ama (1884), conto abolicionista de Délia, autora do romance Lésbia (1890) | Délia (autora de Lésbia) e Emília Freitas (autora de A Rainha do Ignoto): a saudade dos 15 anos de idade

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Tema: o folhetim O Crime do Convento de…, escrito por Délia (Maria Benedita Câmara Bormann) e publicado pelo jornal O País (Rio) de 3 a 6 setembro de 1891.

Inspiração para a história: um estupro seguido de assassinato por envenenamento, que vitimou uma menina de 14 anos (Sara de Matos), interna do Convento das Trinas do Mocambo (Lisboa, Portugal), em 23 de julho de 1891.

Única menção ao folhetim: História da Imprensa de Pernambuco (1821–1954), Volume VI: Periódicos do Recife, 1876–1900, páginas 343 e 344, Luiz do Nascimento, 1972.

Republicação do folhetim: Jornal do Recife, de 14 a 19 de novembro de 1891.

Republicação parcial: O Motim, em maio e junho de 1892 (apenas 3 episódios).

Principal diferença do folhetim para a realidade: a punição do culpado pelo estupro (na história de Délia).

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Apresentação

“Délia” é o pseudônimo de Maria Benedita Câmara Bormann (1853–1895), a autora do romance Lésbia (1890).

Apesar de ter escrito essa obra e de ser autora de vários outros folhetins, além de contos e crônicas publicados em jornais importantes nas duas décadas finais do século XIX, Délia é mais conhecida atualmente por seu retrato, erroneamente associado a Maria Firmina dos Reis.

No meu blog (A Arte Literária) há um post exclusivamente dedicado a mostrar capturas de tela de 100 páginas da Web que reproduzem esse equívoco.

https://aarteliteraria.wordpress.com/2017/12/02/o-retrato-falso-de-maria-firmina-dos-reis/

Não somente leitores disseminam a falsa informação sobre Maria Firmina. Na apresentação de uma nova edição do romance Úrsula, lançada pela editora Companhia das Letras/Penguin em novembro de 2018, o retrato de Délia foi novamente associado à primeira romancista brasileira.

http://www.iea.usp.br/noticias/pesquisadora-do-iea-participa-de-nova-edicao-de-ursula-obra-inaugural-da-literatura-afro-brasileira

Este artigo será focado somente no folhetim inédito.

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A história real do crime do Convento das Trinas

O Convento das Trinas do Mocambo situa-se na Rua das Trinas, em Lisboa (Portugal). Fundado em 1657, deve o nome pelo qual é conhecido à Ordem Hospitalar da Santíssima Trindade do Resgate dos Cativos, cujos membros femininos eram denominados “freiras trinitárias”. “Mocambo” é a denominação de um grupo de casebres onde, então, viviam negros africanos.

A página de onde foi copiada esta imagem conta uma história resumida do Convento.

https://bloguedelisboa.blogs.sapo.pt/instituto-hidrografico-publica-livro-106255

Em 23 de julho de 1891, a morte misteriosa de uma menina de 14 anos, interna do Convento, abalou a cidade de Lisboa e a própria reputação da instituição religiosa. O pai de Sara de Matos (nome da menina) não aceitou o relato das autoridades do Convento e, após o enterro, entrou com uma solicitação de investigação oficial pela polícia.

A autópsia revelou dois fatos chocantes: Sara não havia falecido virgem, e a ingestão de veneno seria a provável causa da morte. A suspeita de assassinato visando acobertar estupro de menor tornou-se dominante na boca do povo.

No ano seguinte, o governo português proibiu a internação de menores no Convento.

Minas Gerais, 10 de maio de 1892, ano I, número 18, página 4, última coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/291536/94

Cinco anos após a morte da menina, o julgamento do caso resultou na condenação da responsável por administrar o veneno à Sara, irmã Colecta, a apenas 21 dias de prisão. Segundo a sentença, Colecta enganara-se ao dar um medicamento a Sara, substituindo-o por sal de azedas (ácido oxálico). O sal de azedas, pó cristalino utilizado para clareamento de madeira, metais, mármores e pedras em geral, assim como de roupas, não deve sequer entrar em contato com a pele humana, tal o seu poder corrosivo.

Houve protestos de parte da população, assim como a defesa do veredicto pelos religiosos.

Com a instauração da República em Portugal, em 1910, e a subsequente expulsão das ordens religiosas, Sara veio a receber duas homenagens: uma placa em seu jazigo no Cemitério dos Prazeres e a troca do nome da rua do Convento, para Rua Sara de Matos.

O jazigo de Sara

https://www.facebook.com/contamehistoriaslisboa/posts/o-jazigo-de-sarah-de-mattos-a-morte-enquanto-express%C3%A3o-de-anticlericalismo-e-sim/1018219224972839/

Em 1937, essa última homenagem foi desfeita, e atualmente a via se chama Rua das Trinas.

Um resumo desta história real pode ser lido nesta página:

https://www.facebook.com/contamehistoriaslisboa/posts/a-lenda-negra-de-sara-matos-a-m%C3%A1rtir-laica-do-convento-das-trinasno-dia-23-de-ju/1016522995142462/

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A repercussão do caso no Brasil

O periódico O País, do Rio de Janeiro, noticiou o caso poucos dias depois de ocorrido, reproduzindo notícias de O Século, jornal português que mais acompanhou e comentou o processo judicial.

O País (Rio de Janeiro), 17 de agosto de 1891, ano VII, número 3399, página 1, sexta e sétima colunas — http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/3653

No mesmo dia, o Jornal do Brasil apresentou o caso aos seus leitores, sem destaque.

Jornal do Brasil, 17 de agosto de 1891, ano I, número 131, página 2, segunda coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/030015_01/595

No mês seguinte, o jornal gaúcho A Federação publicou um longo relato intitulado Grande crime no convento de Trinas, desenvolvido em pelo menos quatro episódios.

A Federação, Porto Alegre (RS), ano VIII.

10/9/1891: número 209, página 2, primeira e segunda colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/388653/6634

15/9/1891: número 213, página 2, quarta, quinta e sexta colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/388653/6650

17/9/1891: número 215, página 2, quarta e quinta colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/388653/6658

21/9/1891: número 218, página 2, primeira coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/388653/6670

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O folhetim de Délia

O Crime do Convento de… é uma dramatização do caso de estupro e assassinato no Convento das Trinas. Curiosamente, cinco anos antes do desfecho do caso, no qual os criminosos ficaram impunes por omissão da Justiça, Délia imaginou uma vingança dos homens, que também não veio a acontecer na realidade. A menina Sara de Matos só foi vingada na ficção.

A única possibilidade de não ser inédito o folhetim transcrito abaixo é a sua possível presença no livro Contos Breves (1880–1895), de Norma Telles, obra indisponível em forma digital ou impressa.

http://www.normatelles.com.br/colecao_rosas_de_leitura.html

A estudiosa não menciona o título como um dos folhetins de Délia, na cronologia da autora.

http://www.normatelles.com.br/cronologia_maria_benedita_bormann.html

Só há uma associação do título do folhetim com a sua autora, considerando-se os resultados do Google, Google Books e Google Scholar. É esta:

“Até um folhetim ostentou: ‘O crime do convento de…’, por Délia, mas, tendo começado no segundo número, só foi até o quarto, ficando a novela apenas no princípio”. O autor se refere ao periódico O Motim, publicado na cidade de Recife (PE) em 1892.

História da Imprensa de Pernambuco (1821–1954), Volume VI: Periódicos do Recife, 1876–1900, páginas 343 e 344, Luiz do Nascimento, Editora Universitária, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1972 — http://www.fundaj.gov.br/geral/200anosdaimprensa/historia_da_imprensa_v06.pdf

Esta foi a pista que me levou à descoberta da história.

A publicação inicial do folhetim deu-se no jornal carioca O País, de 3 a 6 de setembro de 1891, sempre na seção Folhetim.

O País, ano VII, 3 de setembro de 1891, número 3416, página 1, quinta coluna — http://memoria.bn.br/docreader/178691_02/3755
3 de setembro de 1891, número 3416, página 3 — http://memoria.bn.br/docreader/178691_02/3757

Os demais episódios

4 de setembro de 1891, número 3417, página 3.

http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/3763

5 de setembro de 1891, número 3418, página 3.

http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/3769

6 de setembro de 1891, número 3419, página 3.

http://memoria.bn.br/DocReader/178691_02/3775

Dois meses depois, o Jornal do Recife republicaria a história (de 14 a 19 de novembro de 1891), também na seção Folhetim.

Jornal do Recife, 14 de novembro de 1891, ano XXXIV, número 260, página 3, terceira coluna — http://memoria.bn.br/DocReader/705110/30239
14 de novembro de 1891, número 260, página 2, quinta, sexta, sétima e oitava colunas — http://memoria.bn.br/DocReader/705110/30238

Os demais episódios

17 de novembro de 1891, número 262, página 2, quinta, sexta, sétima e oitava colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/705110/30250

18 de novembro de 1891, número 263, página 2, quinta, sexta, sétima e oitava colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/705110/30256

19 de novembro de 1891, número 264, página 2, quinta, sexta, sétima e oitava colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/705110/30260

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O CRIME DO CONVENTO DE…

Atualização do texto: Sérgio Barcellos Ximenes.

I

A superiora

Na época em que se deram os acontecimentos que passamos a relatar, a irmã Santa Clara, superiora do convento de… contava quarenta anos. Alta, magra, rosto comprido e bexigoso, sobrancelhas cerradas, olhos pequenos, vivos e inquisidores, nariz adunco, dentes escuros e irregulares, e, aos cantos da boca rasgada e de lábios delgados, uns pelos hirsutos e grisalhos.

Insexual [sem interesse pelo sexo] no aspecto como na alma, pois não possuía o valor que caracteriza o homem, nem as delicadas sensibilidades que exornam [adornam] a mulher.

Primogênita de um casal pobre, mostrou-se desde a mais tenra infância sempre reservada e pouco afetuosa. Não amimava aos irmãos e só se lembrava dos deveres fraternos, quando [então] os moía com severas correções.

Quase nem notava a própria fealdade, porquanto desconhecia a vaidade e não alimentava desejos ou esperanças de casar. Nunca inspirara um pensamento amoroso, mas também jamais sentira um frêmito juvenil eletrizá-la ante nenhum homem.

Enfastiada de trabalhar para aqueles a quem não amava, sem nada que a encantasse ou prendesse à vida, manifestou o desejo de retirar-se a um convento, onde pudesse enclausurar o ócio e dar largas ao egoísmo, orando ou simulando orar, sem o mínimo fervor, pois sempre desconhecera o sofrimento que engendra a necessidade de crer e de esperar um eterno consolo ou compensação.

Depois de relutarem algum tempo, cederam os pesarosos pais à teimosia da filha, e chorosos acompanharam-na até ao claustro. Ao despedir-se deles, não lhes deu a moça nem saudades, nem lágrimas, experimentando apenas a alegria de um vivo anelo alfim [afinal] realizado.

Desde que tomou o véu, foi sempre fiel cumpridora das obrigações que lhe impunham, tornando-se o modelo de virtudes da comunidade.

Alguns anos mais tarde, grassando uma epidemia no convento, mostrou-se infatigável, sempre de pé, sem quebra de forças, tratando das enfermas sem carinhosas palavras, mas com escrupuloso cuidado.

As poucas freiras que escaparam, gratas aos seus desvelos, elegeram-na superiora, causando-lhe assim o primeiro e único arroubo de toda a sua vida — governar, ela, que nascera com a bossa [propensão] do despotismo.

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II

A irmã Maria

Era a irmã Maria de origem francesa; pertencia a distinta família, cuja genealogia começava nas Cruzadas e acabava em apoteose na guilhotina de [17]93. Seu pai, fiel vassalo que não quisera transigir com as suas crenças políticas, fora executado, deixando-a só com a mãe, a quem não conseguiu consolar, vendo-a definhar dia a dia em cruel desalento, e perdendo-a dois meses depois do pai.

Recolheu-a uma tia materna, que procurou mitigar-lhe os pesares, porém só o amor do Conde Roland, seu noivo, lograva galvanizar a desventurada moça que, nos extremosos pais, perdera os seus melhores amigos.

Mas o seu nefasto destino reservava-lhe ainda uma provação: algum tempo depois, soube a donzela que o Conde se achava preso, o que então equivalia a uma sentença de morte, pois os processos, quando os havia, eram sumários, apenas uma formalidade para satisfazer a neurose do homicídio que reinava naquela época. Pela magia da sua beleza e das suas lágrimas, obteve Maria dos cérberos [guardiães ferozes] que o guardavam a permissão de abraçá-lo uma última vez antes de vê-lo morrer. Foi uma dessas cenas pungentíssimas que não se descrevem e que nunca mais se apagará da memória dos que nelas figuram e que sobrevivem à catástrofe que as provocou.

E foi essa mimosa criatura, com dezoito anos apenas, branca como os lírios, de cabelos da cor do ouro polido, de olhos de safira, flexível como o vime, casta e meiga, quem incutiu valor ao mártir, revoltado de morrer na flor dos anos, amando e sendo amado por ela, condenado por um tribunal de tigres e guilhotinado sem crimes à face dos homens.

E a moça, qual Virgem dolorosa [menção às imagens de Maria ao pé da Cruz], seguiu a carreta que levava ao suplício o seu bem-amado, a sua esperança, o seu futuro, tudo quanto a vida lhe devia em alegrias e lenitivo.

Enquanto se executavam os outros pacientes, ela o exortava à resignação, à fé em uma outra vida melhor. Jurava-lhe que iria após o seu martírio encerrar-se em um claustro, onde oraria por ele até que a morte a levasse também ao seio da eternidade, a fim de reuni-los.

E o inocente, seminu, a tiritar do frio e de pena, não despregava os olhos daquele semblante angélico, e tudo prometia, e em tudo cria, porque ela lhe suplicava.

Quando vieram buscá-lo, Maria atirou-lhe um beijo, apontou-lhe para o céu, e, hirta, com o olhar alucinado, acompanhou-o, vendo-o ajoelhar-se e pouco depois rolar-lhe a pálida cabeça que ela tanto amara.

Levaram-na dali desmaiada, e, depois de longa enfermidade, foi professar em Portugal, porque a França inteira só repercutia o ruído da máquina ceifadora das mais belas, das mais nobres e das mais puras individualidades.

Uma gulosa, essa filha sinistra de Guillotin [a guilhotina].

Só de longe, na paz de um asilo, poderia ela orar por esses irmãos que se dilaceravam em uma luta fratricida, e que a haviam orfanado e enterrado viva em um sepulcro antecipado, bem mais medonho do que o verdadeiro túmulo, porquanto não aniquilava nem a lembrança nem a saudade.

Quando Maria tomou o véu, já a irmã Santa Clara era superiora, e apesar do alquebramento moral que a combalia, sentiu a moça instintiva repulsão, que só o respeito continha, pela virago [mulher de aspecto feminino] de hábito. Aquele tipo antipático e frio não lhe daria o conforto que ela quisera encontrar na madre Abadessa.

Pela mesma lei do contraste, a nobre estirpe de Maria, a sua primorosa educação e a elevação dos seus sentimentos provocaram a aversão da superiora, que a sobrecarregou de afazeres e de fadigas, alegando para isso a vasta ilustração da moça; esperava talvez uma queixa, uma revolta ou momento de fraqueza que lhe desse o ensejo de mortificá-la, mas era de aço aquela criatura flexível, que mal deslizava pelos longos corredores.

Estudando-a, porém, aos poucos descobriu a megera o ponto vulnerável da pobre freira, que, humilde, tanto suportava, menos a vista de uma punição injusta ou demasiada; então, o seu belo olhar azul despedia um clarão, tremiam-lhe os lábios e a voz suave emitia um protesto ou uma súplica, nunca atendida e antes escarnecida.

— Aí temos a irmã Maricas toda sensibilizada! Doravante dar-lhe-ei mais em que se ocupar, porque essas lamúrias são filhas da ociosidade. E saiba, para seu governo, que às minhas ações nada deve se opor, nem mesmo em pensamento.

Havia dez anos que Maria padecia milhares de iniquidades no asilo em que julgara encontrar a paz de que tanto carecia, e, apesar de tantas dores, ainda era bonita: apenas notavam-se-lhe mais tristeza e abatimento no semblante, mais brandura na voz e mais piedade no coração.

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III

A educanda

Carmen Rodrigues chamava-se a mais linda, a mais inteligente e a mais aplicada das educandas. Diziam-na a discípula predileta da irmã Maria, que a amava em extremo e a quem a menina retribuía com veras [a máxima sinceridade], atraídas ambas pela afinidade dos seus respectivos caracteres.

Datava de dois anos a amizade que as unia e que brotara desde a primeira palavra de consolo que a freira dirigira à criança, vendo-a chorar ainda orvalhada pelas lágrimas de despedida do pai. Sentira a moça vibrar-lhe o instinto materno, inato em toda a mulher, ao contemplar aquele anjo pálido em vigoroso luto pela mãe querida.

Era Carmen o penhor do ardente afeto que unira Rosária Pilar, formosa espanhola, ao português Antônio Rodrigues, e durou treze anos mui rápidos essa completa felicidade, uma dessas venturas extremas que pressagiam pouca duração.

Nascida em um ninho de afetos, sem ver uma só nuvem ensombrar aquela harmonia, cresceu a menina não tendo noção dos males que acabrunham a humanidade, julgando que a vida seria sempre a continuação da ternura que a cercava por todos os lados.

Tendo instrução e não querendo separar-se da filha, encarregou-se Rosária da sua educação, e a par do que lhe ensinava, incutiu-lhe a sua fé religiosa que se baseava nos divinos preceitos de Cristo: simples, como a prática do bem, o código dessa mulher honesta e sensível.

Tinha Carmen doze anos quando a morte matou-lhe a mãe adorada, deixando a moça inconsolável, pois, além de muito amorável, já tinha o critério de uma moça e compreendia o inestimável valor daquela que perdera. Recalcou, porém, a dor no fundo da alma, a fim de minorar o desespero do pai.

Só o dever de velar pela filha venceu o desânimo do Antônio Rodrigues e deu-lhe a coragem de separar-se dela, deixando-a no convento de… [para] continuar a sua educação, conquanto ele ia a Montevidéu vender algumas propriedades pertencentes à sua finada mulher.

Na irmã Maria encontrou a menina um ser simpático e amigo, a quem podia amar e sob cuja guarda mostrou-se dócil, aplicada, digna de todos os louvores, feliz em cumprir com seus deveres e em dizê-lo ao pai nas longas cartas que lhe escrevia.

Um ano depois voltou Rodrigues, sem ter ainda ultimado os seus negócios, levando Carmen para a sua bela quinta em Cintra, a fim de que ela espairecesse e ambos matassem as saudades curtidas nessa forçada ausência.

Que felizes dias esses, em que recordavam o passado falando na querida morta, mirando-lhe o retrato, derramando lágrimas de enternecimento ao evocarem cenas e palavras em que ela expandira a sua exuberante ternura.

À tarde, de mãos dadas, percorriam as alamedas, faziam projetos, comunicavam-se as suas ideias e impressões, em um tom de camaradagem que ainda mais estreitava o afeto que os unia.

E o benéfico influxo da irmã Maria sobre o seu dorido coração de órfã era assunto inesgotável, ao qual volvia sempre a menina em uma efusão de reconhecimento que o pai partilhava.

Meses depois, voltou Carmen ao convento, indo o pai liquidar de vez os negócios e prometendo demorar-se pouco. Entristeceu-lhe a volta ao recolhimento o saber da morte de seu velho confessor, protótipo do verdadeiro sacerdócio, e antipatizou com o seu sucessor.

Na verdade, a sua figura era a antítese perfeita do venerável ancião que o precedera: quarenta anos, alto, musculoso, vermelho, olhos negros e brilhantes, sobrancelhas espessas, nariz de ventas largas e movediças, lábios sensuais, queixo forte, mãos grossas e peludas: um Hércules de feira com batina.

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IV

Duplo sacrilégio

Durante essa nova ausência do pai, completou Carmen quatorze anos, e meses depois sentiu-se agitada pelos influxos da puberdade: era melancolia sem causa, irradiações íntimas que se traduziam em doces cismas, sem determinado objetivo, mas de extrema magia.

A natureza inteira aparecia-lhe sob mais belo aspecto, e a sua imaginação romanesca exaltava-se em meio da austera monotonia que a cercava; por vezes, tinha a tentação de professar como a irmã Maria, a fim de nunca separar-se dessa terna amiga, porém a lembrança do pai levava-a a uma outra ordem de ideias.

Revia a extrema ventura de sua mãe, a poesia do lar que lhe fora berço, e a imagem ideal de um belo mancebo surgia a sorrir-lhe daquela suave penumbra: um anseio constrangia-lhe o peito e a garganta, causando-lhe o extático enlevo de uma alma candidamente aberta às puras alegrias da vida.

Às vezes, à noite, gostava de mirar largo tempo o luar que se infiltrava pelas grades da janela fronteira ao seu leito, dando asas à fantasia, voando, voando sempre em pleno azul; por fim, angélico sorriso soabria-lhe [entreabria-lhe] os lábios, pois lhe parecia que todo aquele luar que fugira estava dentro dela, iluminando-a.

Quanto ao seu físico, lembrava os belos versos de Serpa Pimentel:

“E ela era como a rosa abotoada.

Desabrochando apenas,

E coberta de frescor e de viço,

Cujo rubor transluz singelo e casto

Por entre o fofo musgo verdejante —

Das recamadas folhas…”

[Poema Duas Épocas da Vida, de José Freire de Serpa Pimentel.]

De mediana estatura, alva, rosada, esplêndidas tranças negras e aneladas que lhe iam às curvas, olhos castanhos, grandes e doces, franjados de longos cílios, nariz aquilino, boca pequena, nacarada, dentes alvos e miúdos, formas airosas que a puberdade arredondava, mãos e pés fidalgos: um conjunto de infinda graça.

Além das saudades do pai, havia uma nuvem que empanava a calma de seu coração e que o apertava em um pressentimento de desgraça, sempre que se confessava ao padre João: em vez de sair do confessionário serena e confortada, como outrora, sentia um descontentamento, um mal-estar, quase um vexame pelas multíplices [numerosas] perguntas, pela insistência com que o confessor queria ouvir culpas que ela não tinha e cujo sentido nem mesmo compreendia.

Cansada de negar, com os nervos exaustos, ansiando deixá-lo, tinha por vezes ímpetos de fazer como alguns acusados inocentes que se inculpam para libertar-se de uma chicana capciosa, mas a retidão do seu caráter repelia esse alvitre [essa sugestão] e, resignada, cumpria as penitências que ele lhe impunha por desobediência.

Na alma infame do padre rugia uma paixão medonha que a razão mal continha, lancinando o infrene [desenfreado] desejo que o ensandecia à vista da menina: toda aquela pureza, que antes devera impor-lhe respeito, revolvia a lama de que ele era feito, fazendo vir à tona todos os maus instintos que lhe dormitavam no íntimo.

E sofria o miserável, sofria muito no único ponto sensível, na sua carne maldita que nunca soubera domar. Alta noite, moído e enervado pela insônia, soltava rugidos de fera e derramava lágrimas de raiva, sacudido por uma volúpia bestial.

E na manhã seguinte ia ao convento, pretextava uma exortação a fazer-lhe, só para senti-la junto a si, devorando-a com o olhar, bebendo-lhe o hálito fresco, alimentando a chama que o consumia, em vez de fugir e de evitá-la. E a superiora, ainda que um tanto surpresa da relutância dessa menina, de ordinário tão dócil, nada notava e por seu turno admoestava a vítima de sua cegueira fanática, que não via no padre o homem.

A educanda relatara à irmã Maria o que se passava, pedindo-lhe um conselho, um meio de vencer a obstinação com que o confessor a acusava de ocultar culpas que não tinha: muito pura para adivinhar a perversidade do sacerdote, atribuiu à freira aquela animosidade a uma antipatia bem inexplicável, visto tratar-se de Carmen, e ficou sobressaltada.

Felizmente, a volta de Antônio Rodrigues serenou-a: preferia curtir fundas saudades desse último afeto que o seu coração encontrara, a ver a sua dileta sofrer injustiças. O pai fora à Inglaterra buscar a preceptora escolhida por um amigo, e não mais se separaria da filha.

Uma tarde, às cinco horas, terminadas as aulas, achava-se a menina junto à irmã Maria quando a vieram chamar para que fosse à capela. Ela empalideceu, e o seu doce olhar de antílope fixou-se na freira com indizível terror.

— Vai, minha filha, nada temas: Deus estará contigo. Demais, pouco tempo permanecerás aqui.

A contragosto, obedeceu a menina, que nesse dia acordara tristonha, apesar de se aproximar a hora de ir, enfim, sem peias, viver ao lado do querido pai: é que doía-lhe deixar ali, naquela atmosfera glacial, a sua consoladora, a sua amiga, a quem em momentos de efusão chamava de mamã.

Maria dirigiu-se ao coro que ficava sobre o confessionário. Ajoelhou-se e começou a orar, fitando a Jesus crucificado, lívido, gotejando sangue e com a dorida cabeça pendente em mortal desconforto. Pouco depois roçou-a o hábito da superiora, que se prosternou [pôs-se em atitude reverencial de oração] mais adiante.

A freira gostava de orar àquela hora, e às vezes demorava-se muito tempo, até que lá fora as trevas da noite substituíssem a luz do dia; a frescura que ali reinava, saturada de uns ressaibos de incenso, da cera de velas e do perfume das flores, causava-lhe uma sensação benéfica, enchendo-lhe a alma uma grande calma.

Ela julgava que de há muito a capela se achasse vazia, quando viu de súbito o voo sinistro de umas asas negras que se abateram nos degraus do altar, e ouviu um flébil [fraco] grito que lhe revolveu as entranhas. Ergueu-se de chofre e ficou paralisada, com a boca aberta, sem emitir nenhum som, os olhos fora das órbitas, a garganta seca, o peito oprimido em medonha angustia.

Não! Não era possível! Aquilo era um pesadelo atroz!… Como! Pois ali, no santuário, à face de Deus! Oh! Não!… Havia de despertar e de certificar -se do contrário. Mas não! Via uma pavorosa realidade, que abalava as suas crenças, destruía todas as suas noções de moral e de justiça, ofendia o seu pudor de virgem, revoltando todos os seus instintos de mulher educada.

A superiora erguera-se ao mesmo tempo que ela: tudo vira, espantada por tão estranho espetáculo. Enfurecida contra o endemoninhado que desmoralizava a comunidade, e diante daquele duplo sacrilégio, ainda teve bastante sangue-frio para imaginar o meio do salvar a honra do seu convento.

Aproximou-se da irmã Maria, travou-lhe do braço, arrastou-a quase sem dizer palavra e desceu à capela. Ao ruído da porta, ergueu-se o padre assustado, tremendo ainda de sensualidade e de súbito pavor.

— O senhor é um sacrílego! Um louco!… Desonrar deste modo a casa que dirijo e o seu caráter sacerdotal!… Saia incontinenti! — vociferou a superiora.

O miserável curvou a cabeça e saiu.

Entrementes, a irmã Maria ajoelhara-se junto à menina desmaiada, compusera-lhe as vestes com piedoso carinho, solevara-lhe [erguera-llhe] o busto e sustinha-a de encontro ao seio, banhando-a de lágrimas, desejando que a pobrezinha não mais despertasse.

E todo aquele horror passara-se em minutos.

— Carreguemo-la! — disse a superiora.

Levaram-na de manso e depuseram-na no próprio estrado em que dormia a irmã Maria, até que trouxessem o leito de Carmen. Não podendo mais ocupar o dormitório das educandas, vinha para a cela da sua amiga e enfermeira.

Ao terminar o desmaio, teve a menina violentas crises nervosas, sossegando aos poucos sob a ação de calmantes ministrados pela abadessa. A chorar velou-lhe Maria o agitado sono, ansiando que amanhecesse e que mandassem chamar o médico.

Despertando toda dorida, acudiu à mente da menina a sua irreparável desgraça, e desatou em soluços, ocultando a cabeça no seio da amiga que a estreitava, chorando com ela e cobrindo-a de beijos.

— Oh! Mamã, não me deixes só!… Tenho medo, muito medo, e sofro tanto!… — disse com a sua voz de criança.

— Sossega, minha filha, não te deixarei, não sairei daqui.

Pouco depois apareceu a superiora com uma tisana [medicamento líquido feito de cereais] e, sem mesmo perguntar à enferma como se achava, ordenou-lhe que bebesse. Ao retirar-se, acompanhou-a a irmã Maria e perguntou-lhe timidamente se não viria o médico.

— Para quê? Para propalar-se o escândalo? Nada! O mal está feito e, passando o estado nervoso, ficará boa — disse a superiora.

Descontente e apreensiva, voltou a moça para junto da doente, que estava desassossegada, muito pálida e em ânsias, até que vomitou, ficando extenuada. Advertida do ocorrido, mandou a abadessa que lhe espaçassem as doses; porém, cada vez que ingeria o remédio, mostrava-se Carmen mais incomodada.

Não comeu em todo o dia, teve febre, e à noite era extrema a sua fraqueza. Quando adormecia, nem assim sossegava porque atormentavam-na os pesadelos que a faziam soltar pavorosos gritos, acordando lavada em frio suor: verdadeiras visões apocalípticas, em que uns monstros tonsurados e de batina tripudiavam em saturnais.

Pela madrugada apareceu a superiora, que se encolerizou vendo a beberagem quase intacta.

— Por que não cumpre as minhas prescrições? — perguntou à freira.

— Por ver que piora sempre que toma o remédio, e tive receio…

— Ah, teve receio? — acentuou a abadessa com ironia.

Retirou-se e voltou pouco depois com uma xícara de infusão mais carregada. Acordou a menina e a fez beber: súbita decomposição operou-se no seu semblante já desfeito, apertou o peito com as mãos crispadas, fixou desvairada a irmã Maria e caiu inerte.

Esta, aflita, tomou-a nos braços, pedindo um médico e, a soluçar, mostrou-a à superiora, em cujo rosto pareceu-lhe divisar a sombra de triunfante sorriso. Então uma ideia horrível veio à mente da freira, elucidando e fazendo-a compreender o sinistro desfecho com que a abadessa salvaguardava a honra do convento.

— Madre, a senhora matou-a! — exclamou horrorizada.

— Quando a educanda enterrar-se você irá para o in-pace [cárcere destinado a faltosas no convento], refletir no que acaba de avançar sobre a sua superiora — disse ela, e saiu levando os restos das tisanas.

Foi intolerável o que a irmã Maria padeceu, penteando e vestindo a sua querida discípula, morta ao desabrochar, linda, rica e adorada; e, depois de sofrer o maior dos atentados, ainda comprava com a própria vida a impunidade do criminoso!

Horrenda aquela iniquidade cometida entre os muros de um asilo religioso, e ante ela revoltava-se o ulcerado e manso coração da freira, subindo-lhe uma onda de fel aos lábios ressequidos; dura sorte era essa, de perder por morte violenta quase todos a quem amara!

E a afeição dessa menina viera-lhe depois de tantos anos de solidão e de preces saudosas, parecendo uma compensação às suas esperanças mortas e ao seu desprendimento terrestre!

Quando levaram o corpo da mártir, encerraram a irmã Maria no in-pace.

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V

Epílogo

Dois dias depois chegou Antônio Rodrigues da Inglaterra, com a preceptora que devia completar a educação da filha e fazer-lhe companhia; pressuroso correu ao encontro, antevendo o contentamento de Carmen, saboreando-lhe antecipadamente os carinhosos beijos.

Logo ao entrar, recebeu-o a madre porteira com umas lamúrias em que o exortava à paciência e, sem mais explicações, levou-o presença da superiora; esta, ao vê-lo, deu à fisionomia um ar compungido que a tornava mais antipática.

— Não recebeu a minha carta? — disse.

— Não, senhora! Mas o que há? — inquiriu, inquieto.

— Dizia-lhe que Carmen estava doente…

— E agora? Como vai?

— Resigne-se, Sr. Rodrigues, aos decretos da Providência…

— Carmen… muito mal!… Morta, talvez!…

— Sim! — disse a superiora, sem mais preâmbulos.

— Oh!… — fez o mísero, cambaleando e levando as mãos à cabeça.

A superiora chegou-lhe uma cadeira, em que ele se deixou cair inconsciente, mas de um ímpeto ergueu-se logo e exclamou:

— Morta! Mas como? De quê? Se era tão sadia!

— Teve umas síncopes que se reproduziram durante dois dias, e na última…

— Em dois dias, meu Deus!… Toda a minha vida!… E o médico, a que atribuiu essas síncopes?

— Não chamei médico porque julguei que fosse uma simples indisposição, e dei-lhe remédios caseiros.

— Mas, vendo que se agravavam os padecimentos nada devia poupar para salvá-la, e surpreende-me esse descuido!

— Oh! Senhor, não podia prever…

— Ao menos depois de morta mandaram chamar o médico? — insistiu o pai.

— Já lhe disse que não veio médico! — replicou com azedume a superiora.

— Pois fez muito mal, e acho tudo isso singular, até mesmo a sua atitude — acentuou Rodrigues, com a súbita intuição dos que muito amam. — Enfim esta casa é a antecâmara da morte?… Adoece uma educanda e não se providencia, deixa-se que a moléstia siga o seu curso fatal e… Quero falar à irmã Maria — acrescentou Rodrigues, furioso.

— Está doente, porque muito se desvelou com a sua filha.

— Sei que eram amigas, e por isso mesmo desejo vê-la.

— O senhor não pode penetrar na cela de uma freira.

— Bem, dê-me a indicação do lugar onde está enterrada a minha filha — disse Rodrigues, aparentemente calmo.

Dirigiu-se a superiora à secretaria e tirou uma folha de papel, que entregou a esse homem cuja presença a incomodava. Contendo as lágrimas, leu o infeliz as poucas linhas que ali havia, guardou o papel no bolso e, com o sobrolho carregado, disse:

— Até breve, senhora! — E saiu.

Sobressaltada desceu a abadessa ao in-pace onde jazia a irmã Maria e reiterou-lhe a ordem do beber da mesma tisana ministrada a Carmen.

— Não, madre, não beberei. Quero poupar-lhe este novo crime.

— Mas eu posso estrangular-te! — vociferou a megera.

— Faça-o. O meu corpo pertence-lhe, mas eu não beberei de moto-próprio [voluntariamente] o veneno, porque isso importaria em um suicídio, o qual a minha religião proíbe.

— Morrerás então de fome e sofrerás mais tempo! — replicou friamente a abadessa, retirando-se.

— Deus a perdoe, madre! — respondeu a voz meiga e enfraquecida da freira.

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Com o prestígio do dinheiro, conseguiu Rodrigues a imediata exumação da filha, procedendo-se à autopsia. Ao abrir-se o caixão, maravilhou aos assistentes a peregrina beleza da morta, ainda em perfeito estado, adorável no rico traje de virgem que ocultava a sua profanação.

Quis o infeliz pai assistir a essa terrível e doloroso espetáculo para o seu terno coração, julgando na sua idolatria salvaguardar ainda com a sua presença o pudor da pobrezinha, que ali estava a dois passos dela, enxugando as lágrimas sem olhar para a nudez do seu anjinho, entorpecido de tanto sofrer, parecendo-lhe que retalhavam as suas próprias carnes nos pontos mais sensíveis.

De repente, uma exclamação dos médicos tirou-o desse torpor e arrancou-lhe um grito medonho, em que extravasava o fel das maiores dores humanas, e, ante os recentes vestígios da bárbara violação que a filha sofrera, as suas faces lívidas tingiram-se de vivíssimo rubor.

— Oh! O meu coração bem pressentia um crime! E agora, tenho a convicção de que a mataram para encobrir este monstruoso atentado!… Ah! Filha da minha alma! Só viverei doravante a fim de punir os teus algozes, e depois irei ter contigo — soluçou o mísero, beijando-a e purificando-a com as suas lágrimas piedosas.

Efetivamente, no exame das vísceras, feito à parte, descobriram os peritos o tóxico que destruíra aquela mimosa existência. Na devassa feita no convento, e à qual assistia Antônio Rodrigues, não se encontrou a irmã Maria, e só depois de muitas ameaças deu a superiora a chave do in-pace. O depauperamento da pobre freira causava dó, e, depois de beber um cordial [medicamento que ativa a circulação sanguínea], pôde falar, e a sua primeira palavra foi para o pai de Carmen, que se ajoelhara junto a ela.

— Ah! Sr. Rodrigues. Deus é justo, porque permitiu que eu o visse antes de morrer. Creia que o meu coração compartilha o seu infortúnio, pois com o nosso bom anjo sepultou-se também a minha única alegria neste mundo — disse a chorar.

— Bem o sei, minha boa irmã, e compreende a ansiedade com que eu esperava este momento!… Reúna, porém, todas as suas forças para responder às perguntas destes senhores; mais tarde, então, contar-me-á tudo.

— O que eu tenho a referir-lhe é também o que vou declarar à autoridade aqui presente. Estou à disposição da Justiça, embora pese-me acusar a quem quer que seja, mas antes de tudo está a minha consciência.

Sentou-se sobre o leito que lhe haviam improvisado, limpou as lágrimas que lhe inundavam o rosto macerado e emagrecido, mas de angélica beleza, e começou a narração desde a entrada do padre João para o convento, deduzindo os fatos com extraordinária clareza.

Quando teve de contar o duplo sacrilégio que presenciara, olhou compassiva para Rodrigues, exortou-o à coragem, segurou-lhe na mão trêmula e, ruborizada de pejo, relatou tudo, sem nada omitir.

— Ele!… Um padre!… Ah! Infame — exclamou o desditoso pai, rompendo em soluços, enquanto a freira chorava e os assistentes ficavam, uns atônitos e outros indignados.

Revoltou-se sobremodo o infeliz, ouvindo as peripécias do envenenamento, em que a virago fanática sacrificava sem remorso, quase inconsciente, uma existência preciosa, para abafar o escândalo que reverteria sobre a comunidade logo que se descobrisse o nefando crime ali praticado.

Depois do interrogatório, ficando só, sentiu-se a irmã Maria exausta e fechou os olhos, desejando morrer, pois cumprira a sua triste missão e só ansiava pelo eterno descanso. De repente, beijaram-lhe a mão, e ela viu Rodrigues contemplando-a por entre lágrimas.

— Minha irmã, antes de nos separarmos para sempre, diga-me em que posso lhe ser útil? O que deseja para melhorar a sua penosa condição?

— Parte? O que vai fazer? — inquiriu aflita.

— Matar o monstro e depois morrer — disse Rodrigues, com terrível calma.

A mulher valorosa que existia na irmã Maria compreendeu aquele desforço [vingança] paterno, mas a freira estremeceu e ficou perplexa.

— Peço-lhe, suplico-lhe, em nome da afeição que a uniu ao meu tesouro, que me diga o que deseja! Olhe que é o pedido de um moribundo que a irmã tem a satisfazer.

— Pois bem: eu muito lhe agradeceria se obtivesse a minha transferência para um convento em França, a fim de morrer em minha pátria.

— Será feita a sua vontade. E, agora, dê-me a sua benção e depois reze por mim.

A irmã Maria soergueu-se a custo, cruzou as mãos diáfanas sobre a fronte do infeliz e, com lágrimas na voz, disse:

— Deus justo e bom, perdoa-o e recebe-o no seio da tua infinita misericórdia!

O justiceiro levantou-se calmo, beijou o hábito da santa e saiu.

…………………………………………………………………..

O padre João, desde que soubera da exumação de Carmen, ficara sobressaltado e tratara de fugir, indo refugiar-se em uma aldeia do Minho em casa do cura, a quem narrou o crime cometido, pedindo-lhe agasalho por alguns dias até que passasse à Espanha.

Tencionava partir pela madrugada e já tinha o farnel pronto. Por causa do calor, tirou a cabeleira e as barbas postiças e chegou à janela, expondo a fronte abrasada à viração da noite.

Em torno, a quietação dos campos, quebrada apenas pelo mugir do gado e pelos latidos dos cães, iluminando a planície esplêndido luar: uma dessas noites de amor e de poesia, em que a alma se dilata em sensações radiosas.

Apoiado à janela, o padre percorria em mente um cemitério, chegava a uma sepultura e via Carmen, linda, sedutora ainda depois de morta, dormir o sono eterno e sem transição. Esquecia-se de que ela morrera e tornava a vê-la viva na plenitude de todos os encantos.

Quando começara a exercer as suas funções no convento, o seu olhar infame fuzilara um dia, vendo o rosto angélico da irmã Maria, mas a gracilidade de suas formas arrefecera-lhe os ardores. Pouco depois voltara a menina ao recolhimento, e a sua vista fascinara o miserável, inspirando-lhe uma paixão infrene.

E agora ele revivia dia a dia as emoções que ela lhe causara, a embriaguez em que o hipnotizara, escravizando-o a uma ideia fixa que o inebriava e torturava em tantálico [muito penoso] desejo.

E, enfim, naquela tarde, vendo-a como a encarnação da primavera, aspirando pela grade do confessionário o perfume que dela se desprendia, esquecera tudo, de nada se arreceara e fora feliz como nunca, e, à evocação do seu deleite, tremia todo, suspirando de volúpia, com os olhos úmidos e o peito arquejante.

Nesse momento entrou um homem no quarto, foi direito a ele e, cravando-lhe no peito um punhal até ao cabo, disse:

— Toma, tigre, aqui onde devias ter um coração.

O monstro tonsurado caiu sem soltar um grito.

FIM

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Poema citado no folhetim

Crônica Literária da Nova Academia Dramática, Volume 2, página 139, Academia dramatica da Universidade de Coimbra, 1841 — https://books.google.com.br/books?id=X-caAAAAYAAJ&lpg=PA138&ots=2DCd5KmEW0&dq=%22Cujo%20rubor%20transluz%20singelo%20e%20casto%22&hl=pt-BR&pg=PA139#v=onepage&q=%22Cujo%20rubor%20transluz%20singelo%20e%20casto%22&f=false

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.