Délia (autora de Lésbia) e Emília Freitas (autora de A Rainha do Ignoto): a saudade dos 15 anos de idade

Sérgio Barcellos Ximenes
4 min readApr 26, 2020

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Duas das mais importantes escritoras brasileiras do final do século XIX, Délia (pseudônimo de Maria Benedita Câmara Bormann, 1853, RS — 1895, RJ), autora do romance Lésbia, e Emília Freitas (1855, CE — 1908, AM), autora de A Rainha do Ignoto, escreveram textos saudosos sobre os seus 15 anos de idade.

O texto de Emília Freitas é conhecido porque integra o primeiro capítulo daquele romance da autora. Já o de Délia, ainda inédito, será mostrado neste post.

O poema de Emília Freitas sobre os 15 anos

No primeiro capítulo de A Rainha do Ignoto, intitulado Funesta (nome da protagonista do romance), o Doutor Edmundo, personagem que se tornará obcecado por ela, tem a primeira visão dessa enigmática mulher da gruta do Areré.

À noite, apreciando de sua janela o rio Jaguaribe, Edmundo vê Funesta passar em um pequeno bote, elegantemente trajada e acompanhada de uma “figura negra e peluda” cuja cauda se estende até o rio, e de um estranho cão de enorme cabeça.

De pé, Funesta dedilha a harpa enquanto canta em francês:

Te souvient, tu, Marie

De notre enfance aux champs

Notre jouet a la prairie,

J’avais alors quinze ans.

Tradução

Tu te lembras, Marie,

De nossa infância nos campos,

Nossas brincadeiras no prado…

Eu tinha então quinze anos.

*

E mais:

“Te souvient tu même

De nos transports brülants,

Quand je te dis: t’aime…

J’avais alors quinze ans.

*

“Le bruit de cette fête

Retour dans mon coeur

Le temps que je regrets

C’est le temps de bonheur.

*

“Au présent je soupire…

Mes yeux sont baissés,

Ils ont craint de me dire

Mes beaux jours sont passés.

*

“Ma bouche en vain répète

De regrets superflus!

Le temps que je regret

C’est le temps que n’est plus”.

Tradução

E lembras, tu mesma,

De nossa excitação ardente,

Quando eu te disse: te amo…

Eu tinha então quinze anos.

*

Os sons desta festa

Voltam ao meu coração,

Os tempos que eu lamento

São os tempos de felicidade.

*

No presente, eu suspiro.

Meus olhos estão abaixados,

Eles receiam me dizer

Que meus belos dias passaram.

*

Minha boca em vão repete

Arrependimentos supérfluos!

Os tempos que eu lamento

São aqueles que não são mais!

A crônica de Emília Freitas sobre os 15 anos

O texto de Emília Freitas. também saudoso, saiu no primeiro número de 1899 do Almanaque Literário Alagoano das Senhoras, publicado em Maceió. Meus 15 anos traz como data da criação 20 de setembro de 1888, na cidade do Rio.

Meus 15 anos

Era meio-dia.

O céu de um azul lavado, o sol ardente, as árvores de um verde carregado exalavam ativo aroma.

Havia uma suave quietação, interrompida apenas pelo cantar dos galos e pelo rodar de um ou outro veículo.

Depois de uma noite de vigília, eu me sentia alquebrada, e, entregando-me maquinalmente a um trabalho de agulha, verificava que o meu cérebro não formulava uma só ideia; era a primeira vez que o estado mórbido do meu corpo se estendia até ao meu espírito.

Achei certo encanto no calor que me entorpecia, compreendi a vida animal e vegetativa e tive uma beatitude física; pesavam-me as pálpebras, e em breve cederia ao sono.

Quase ao perder a perceptibilidade de todo o ruído, distingui os sons de um piano na vizinhança: mãos adestradas vibravam uns acordes sonoros, ligando-os profissionalmente à introdução de uma das melhores composições de salão.

Ouvindo essa música, de há muito conhecida, entreabri as pálpebras, e, à medida que escutava, sentia ressurgir o passado e um frêmito juvenil eletrizar todo o meu ser.

Oh! Meus 15 anos! Tão ricos de seiva, de alegrias e de esperanças, com que presteza voastes como um bando de fugitivas andorinhas!…

Era eu então o pássaro livre, contente de viver, chilrando gostosamente em homenagem ao Criador!

Ignorava que a vida é a expiação da própria vida!

Sonho ridente e abençoado! Fase bem curta, e, no entanto, a única de felicidade que hei tido, desde que nasci!

E tão doce me é a tua lembrança que até apaga por momentos o sulco das tremendas catástrofes que me hão convulsionado!

Graças a essa quadra florida poderei ao menos dizer, ao findar a minha peregrinação pela Terra — que vivi doze meses!…

Que saudade eu tenho de tudo que gozei e do que não gozei!…

DÉLIA

Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1888.

Almanaque Literário Alagoano das Senhoras, 1889, número 1, páginas 53 e 54 — http://memoria.bn.br/docreader/707260/204

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.