Duas crônicas inéditas de Emília Freitas, autora de A Rainha do Ignoto

Sérgio Barcellos Ximenes
11 min readJan 27, 2020

--

Lista de artigos | Livros na Amazon

Academia.edu | Medium | OneDrive | Scribd | Twitter

_____________________

Outros artigos sobre Emília Freitas: Délia (autora de Lésbia) e Emília Freitas (autora de A Rainha do Ignoto): a saudade dos 15 anos de idade | O retrato falso de Emília Freitas| Florina, um conto inédito de Emília Freitas (1883)

_____________________

Tema: duas crônicas da escritora cearense Emília Freitas (1855–1908), autora de A Rainha do Ignoto, cujos textos não estão disponíveis na Web ou em trabalhos acadêmicos.

A Infância, a Mocidade e a Velhice: texto sobre as fases da vida humana redigido em prosa, mas provavelmente concebido como um poema, devido ao número de rimas; publicado no jornal O Estado do Ceará em 20 de outubro de 1891, com a assinatura “Emília Freitas”.

Do Ceará ao Amazonas: relato de viagem publicado no Almanaque do Amazonas, edição de 1895, da página 185 à 189, com a assinatura “Emília Freitas” e a indicação: “junho de 1892”; Emília havia realizado sua primeira viagem nesse sentido no final de 1891.

Apresentação

Além do romance A Rainha do Ignoto (1900) e do livro de poemas Canções do Lar (1891), a cearense Emília Freitas (1855–1908) escreveu artigos sobre espiritismo, poemas esparsos, um conto maravilhoso (Florina) e duas crônicas, estas jamais apresentadas em trabalhos acadêmicos.

O único estudo que cita uma das duas crônicas (na seção Referências), especificamente a crônica A Infância, a Mocidade e a Velhice, intitula-se Ipomeias: Mulheres do século XIX na imprensa cearense, TCC (trabalho de conclusão de curso) de Anna Heloisa de Vasconcelos apresentado em 2018 no curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará.

http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/41065

A Infância, a Mocidade e a Velhice, texto em forma de crônica, provavelmente foi concebido como um poema, dedução óbvia derivada de suas frequentes rimas e da métrica de natureza poética. Por exemplo, este é um trecho da crônica.

“ — Oh! Mocidade! Tão gentil, tão bela! diz-me onde a vista teu querer conduz?

“Pendeu a fonte e lhe rolou dos olhos gota de pranto convertida em luz.”

A forma provável do texto original:

— Oh! Mocidade! Tão gentil, tão bela!

Diz-me onde a vista teu querer conduz?

Pendeu a fonte e lhe rolou dos olhos

Gota de pranto convertida em luz.

Trata-se, portanto, de uma crônica em prosa poética.

Essa primeira crônica da autora de A Rainha do Ignoto, publicada em 20 de outubro de 1891 no jornal O Estado do Ceará, vinha com a assinatura “Emília Freitas”. A escritora estava então com 36 anos de idade, e no final ano faria a primeira viagem para fora do seu Estado, até a cidade de Manaus, onde passaria a residir.

E essa viagem a Manaus é justamente o tema da segunda e última crônica de Emília, intitulada Do Ceará ao Amazonas e publicada no Almanaque do Amazonas, edição de 1895, também com a assinatura final “Emília Freitas”. A época da criação do texto: junho de 1892.

A autora revela detalhes novos de sua vida: somente a irmã, Cornélia de Freitas Weyne, e uma velha criada de família estavam no cais para a despedida, e o irmão que partiu com Emília para Manaus viajou acompanhado da esposa.

Uma curiosidade: o futuro marido de Emília, Arthunio Vieira, também colaborou para esse número do Almanaque do Amazonas, com um breve conto (Hoc Opus). Entretanto, segundo suas próprias palavras, só conheceria Emília pessoalmente em 1899, vindo a se casar com ela em 1900.

A Infância, a Mocidade e a Velhice

Oferecido à Exma. Sra. D. Maria Accioly.

Achei-me à borda de um risonho lago.

A fresca aragem, que corria branda, movia os ramos da cecém florida até a face das serenas águas, onde iam retratar-se as rosas e as açucenas das manhãs da vida.

E, impregnada do jasmim cheiroso, da baunilha e resedá mimoso, ela impelia a nacarada concha, em que fugia-me a formosa — Infância.

Esta, vestida da rosada aurora, fronte toucada de dourados sonhos, erguia o cetro da esperança, rindo e cantando o hino de um porvir ditoso.

— Infância! Infância! — lhe acenei da margem, erguendo o lenço de que fiz bandeira — por que me deixas neste extenso prado, e vás fugindo sem cuidar ligeira?

— Volta um momento teu feliz semblante, e vê terno, e, que sentido — adeus!

Mas ela ia pressurosa e bela como uma nuvem pelo céu azul!

*

Segui na estrada soluçando ainda, e subi a encosta de gentil colina, verde, tão verde, como a primavera, onde se erguiam, colossais, gigantes! lindas palmeiras!

Ali, o sol da vida, a Mocidade fervida erguia a torre de ilusões no ar, e eu vi a louca de binóculo em punho, perdendo! vista, de ambições num mar.

Mas… lá, distante, se quebrando ao longe, eram as vagas da existência em luta, que se atiravam com furor indômito, do desengano, sobre a rocha bruta!

— Oh! Mocidade! Tão gentil, tão bela! diz-me onde a vista teu querer conduz?

Pendeu a fronte e lhe rolou dos olhos gota de pranto convertida em luz.

Então, bem triste fui seguindo além, e vi um ente a caminhar na neve, e a pesada bruma do tristonho inverno sobre o seu peito parecia leve!

Tinha um barrete com florões de gelo sobre a cabeça a comprimir razão; da experiência, sustentava a sonda, nos frios dedos da calosa mão.

— Sois vós, Velhice, a quem respeito e amo, quanto adorava a meus honrados pais?

— Por que vagando nas ruínas tristes de anos passados aqui só chorais?

Ela fitou-me com seus olhos baços, toda clemência, placidez, bondade, e foi descendo a solitária encosta por sobre a neve a desfolhar — Saudade.

Outubro de 1891.

Emília Freitas.

O Estado do Ceará, 20/10/1891, número 349, páginas 2 (última coluna) e 3 (primeira coluna) — http://memoria.bn.br/DocReader/225746/1214 — http://memoria.bn.br/DocReader/225746/1215

Do Ceará ao Amazonas

A Fortaleza e Manaus

I

Findava o dia. O sol mergulhando no ocaso derramava com as sombras da tarde uma tristeza indefinível que se espalhava por sobre a cidade da Fortaleza.

As brancas torres da matriz de São José perdiam-se no ar, como cismando nas alegrias do passado; um véu de saudosa memória as envolvia mudamente.

No pátio do quartel do 11° Batalhão, debruçados à varanda, conversavam alguns oficiais, e do lado da fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, uma praça se exercitava no toque da corneta.

Em frente soluçava o mar, e seu pranto de espuma vinha banhar as conchas e seixos da praia solitária na hora do crepúsculo.

Em busca do vapor Manau”, ancorado no porto, fugia ligeiro da costa um bote, que me afastava da terra que me serviu de berço! Da terra em que jaziam os restos de meus pais! Voltei a cabeça e vi sobre os cômoros [elevações] de praia, soluçando como eu, minha irmã e uma velha e fiel serva, únicos seres que vieram fazer-me as honras da partida e derramarem algumas lágrimas em sinal de afeto.

A bordo, da janela do camarote, contemplei a cidade natal [observação: Emília nasceu, na verdade, em um distrito de Aracati, distante cerca de 150 quilômetros de Fortaleza], que se afastava iluminada, envolvendo-se cada vez mais nas brumas da distância, na escuridão da noite… até sumir-se nas solidões do mar.

Então enxuguei a derradeira lágrima da despedida e um triste adeus — fugiu-me dos lábios e misturou-se com o rumste [?] das vagas!…

II

No dia seguinte, podendo triunfar o enjoo que prostrava meu irmão e sua esposa, saí para o salão e com alguma indiferença vi passar a chusma de passageiros que, deixando seus beliches, iam formar diversos grupos. Alguns, discorrendo sobre política, tratavam da deposição infalível dos Governadores do Ceará e Amazonas.

Na mesma ocasião, um cearense apresentava um boletim saído da imprensa do “Libertador”, que passou de mão em mão, e quando por sua vez chegou às minhas, peguei naquele significante pedaço de papel e logo, como uma chuva de setas, as imensas recordações do meu torrão natal traspassaram-me o peito e fizeram-me pender a fronte!…

Mas dentre os desconhecidos alguém poderia imaginar que estivesse perto de uma alma que pensa, de um coração que sente?!…

Certamente não. Eu passava por todos como uma sombra!…

Do castelo de popa, contemplava tristemente a monotonia do volver das ondas, a uniformidade das brumas do horizonte, e talvez que nem o mais hábil psicológico pudesse adivinhar o eu que se ocultava nas profundezas do pensamento!…

III

Depois de dois dias de uma marcha lenta, na manhã do terceiro fundeava o Manaus ao porto do Maranhão.

Desde aquela hora até ao pôr do sol, quando o vapor levantou ferro, não despreguei a vista da Cidade de São Luís, a querida das musas — a terra de Gonçalves Dias!

Engolfada nas reminiscências da infância, parecia-me ainda ouvir a voz faceta de meu avô, que tendo ali passado os primeiros anos de sua mocidade, muitas vezes saudosamente repetia: “Maranhão”!… “Maranhão!”…

IV

Seguimos nossa derrota [itinerário] cada vez mais lentamente; havia um desarranjo na caldeira do vapor, mas isso não me preocupava, não sei se por ignorância do perigo ou pouco aferro à vida.

Foi extrema a comoção que senti quando alguns passageiros exclamaram: “Vamos chegar ao Pará, ali está o Pinheiro!”.

Contendo as pulsações céleres de um coração torturado, desviei a vista daquelas casinhas brancas entre verdura, como um punhado de jasmins espalhados sobre a relva…

Eram 5 horas da tarde quando chegamos ao porto de Belém. O calor se fez sentir a bordo, com a intensidade dos raios do sol nas aprazadas regiões do Equador!

Não tenho expressão com que possa descrever o que se passou em minha alma, durante os três dias que permaneci nessa cidade, da qual fazia uma ideia mil vezes mais desfavorável.

V

Deixamos a baía do Guajará.

Entramos no rio Amazonas. Que grandeza! Que majestade nas águas desse gigante!… Está cercado de todos os esplendores da natureza e se impõe à nossa admiração com uma arrogância invencível!

Esqueci, durante os dias [em] que fizemos o seu curso, as saudades do Ceará, e fitei quase alegre os bandos de garças e outros pássaros que pousavam na basta e emaranhada ramagem dos poderosos arvoredos, pelas margens.

Não me cansava de contemplar as ilhas que aparecem na foz do Amazonas, e gostava de vê-las umas após outras, passando pela embarcação como um pedaço de floresta flutuante!…

A suntuosidade impetuosa dessa feliz região comunicou-se à minha fraqueza e encorajou-me para as outras de toda espécie! Já possa afrontar as tempestades! Eu, que tremia ao aspecto carregado da menor nuvem do inverno, sorrindo ao fuzilar do relâmpago escutei sem susto o ribombar do trovão!!

Foi aos estampidos desse singular festejo que, à meia-noite de 24 para 25 do dezembro de 1891, ouvimos a missa do Natal, celebrada pelo padre Borba em um altar que se improvisou a bordo. Mil recordações queridas e dolorosas assaltaram-me a mente e fizeram-me voltar a outras noites como aquelas, passadas na doce tranquilidade de meu pobre lar.

VI

Nos dias que se seguiram, o quadro não mudava, a paisagem era a mesma, porém a minha curiosidade, a minha admiração crescia.

Às vezes, na solidão das Águas e escuro da noite descobríamos uma luz; era o farol de um vapor de alguma das companhias de navegação do Amazonas que passava pelo nosso.

Outras vezes era uma choça, em que vivia[m] os habitantes daquelas felizes e soberbas paragens; que espetáculo! Que primor! Se o caso dava-se nas horas calmas do dia, um rancho de crianças acenavam do tombadilho, erguendo lenços brancos e saudando alegremente os passageiros da outra embarcação ou aos habitantes das tristes e pitorescas choças e cabanas, até que se sumisse na extensão das águas.

Na confluência do Amazonas com o rio Negro senti uma tristeza indefinível! As águas desse rio, onde parece haverem derramado as tintas do leito da alma, têm um aspecto aterrador, mas ao mesmo tempo imponente! Faz pensar nas profundezas de um abismo! Idealizar-se o perigo, comprimir-se o coração e pensar-se na morte!… Entretanto, é magnifico o espetáculo, ao ver-se a luta insana do[s] rio[s] Solimões, Negro e Amazonas, e até a presente data não se sabe qual será o vencedor; as suas águas não se confundem, e pode-se observar até grande distância a cor desses gigantes d’água, ou, para melhor expressar-me, do caudaloso Amazonas, desse rio cantado em prosa e verso pelos melhores literatos, pois outra coisa não é senão o mesmo rio com diversos nomes!…

Toda a impressão desagradável que havia recebido à entrada do porto desvaneceu-se como uma nuvem quando vi surgir Manaus, a cidadezinha pitoresca, como são as povoações da serra de Baturité, a predileta de meus sonhos, o paraíso terreal do Ceará.

Depois de alguns meses de vida manauense posso dizer: Manaus é a camponesa nutrida e bonita; de faces coradas, olhos buliçosos, riso franco e semblante alegre; veste-se de cores vivas, como as penas das araras, enfeita as lanosas e fartas tranças com cravos e rezas, calça na ponta do pé as sandálias bordadas, e sustendo a pesada bolsa caminha segura pelas desigualdades do solo ubérrimo [muito fértil] com ares de rainha das selvas!

A Fortaleza é a moça pálida e romântica; de olhar cismador e lânguido, riso ideal, fronte divina e cândida, veste-se de azul celeste, põe um diadema de estrelas e envolve-se no prateado manto de um luar transparente, erguendo um facho, e um ramo do louro; ela contempla do alto os nevoeiros da Costa, e com os lábios secos deixa rolar pela face a pérola de uma lágrima, como uma gota de orvalho no cálice de um lírio!!

Manaus, como o agiota, pensa nas transações da Bolsa, nas empresas lucrativas, nas grandes navegações, e adormece calculando, para sonhar com perdas e ganhos…

A Fortaleza, como o pintor, o poeta e o músico, ocupa-se em colorir as distrações com as tintas do Íris [arco-íris], medir e rimar as aspirações com os voos rápidos da ideia, e fazer, com a escola do sentimento, urna partitura em tom menor.

Afinal, Manaus é a riqueza, a força, a seiva da vida, e a Fortaleza é a formosura, a graça, a poesia, o amor!…

Manaus, junho de 1892.

Emília Freitas.

Almanaque do Amazonas — 1895, José Feliciano Augusto de Ataíde e Artur Cardoso de Oliveira (organizadores), Manaus (AM), páginas 185 a 189 — https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/969

--

--

Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.