Florina, um conto inédito de Emília Freitas, a autora de A Rainha do Ignoto (1883)

Sérgio Barcellos Ximenes
9 min readJan 3, 2020

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Outros artigos sobre Emília Freitas: Délia (autora de Lésbia) e Emília Freitas (autora de A Rainha do Ignoto): a saudade dos 15 anos de idade | Duas crônicas inéditas de Emília Freitas| O retrato falso de Emília Freitas

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Tema: o conto maravilhoso Florina, de autoria de Emília Freitas (1855–1908), a romancista de A Rainha do Ignoto.

Pesquisadora responsável pela descoberta do conto: Constância Lima Duarte (informação presente na cronologia relativa a Emília Freitas, na terceira edição do romance).

Publicação do conto: no periódico abolicionista Libertador, de Fortaleza (CE), em 8 e 9 de agosto de 1883, na seção Folhetim.

Atribuição de autoria: nenhuma, nos dois episódios do folhetim; a “assinatura” final é “…”.

Indícios de autoria:

1. A publicação de poemas de Emília Freitas naquele periódico.

2. As semelhanças entre o conto e o romance: (1) a trama associada a uma caverna proibida e misteriosa que dá acesso a um mundo maravilhoso; (2) a jovem pastora que vive nas montanhas onde se situa a caverna; e (3) a tristeza da rainha desse mundo, apesar de todo o seu poder.

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Apresentação

O conto maravilhoso Florina não está associado à escritora Emília Freitas (1855–1908), a romancista de A Rainha do Ignoto, em nenhuma página da Web. A busca também não gera resultado positivo no Google Scholar, o site do Google para trabalhos acadêmicos.

A única menção ao conto se encontra na cronologia relativa a Emília Freitas publicada na terceira edição do romance, elaborada pela escritora Constância Lima Duarte. Cabe a essa pesquisadora, portanto, a divulgação inicial dessa desconhecida produção literária da autora cearense.

A mim caberá, neste artigo, apresentar a primeira reprodução completa e atualização do conto de Emília Freitas.

Uma observação necessária: nas últimas semanas, novas edições de A Rainha do Ignoto foram publicadas, estando previstas outras até o final do ano. Desconheço se o conto Florina faz parte de algum desses livros.

E esse conto apresenta um atrativo extra aos historiadores da literatura brasileira. Ele serviu como uma espécie de preparação ou teste para a criação de A Rainha do Ignoto ― um procedimento, aliás, comum a muitos autores: experimentar uma ideia em um conto, e depois, percebendo que ela “promete”, estendê-la para a forma do romance.

No caso de Emília Freitas, o período transcorrido entre o conto e o romance foi de exatamente 16 anos: de 1883 a 1899.

Florina saiu no Libertador, periódico cearense de natureza abolicionista, em dois episódios, nos dias 8 e 9 de agosto de 1883, sempre na seção Folhetim.

Capa do Libertador de 8 de agosto de 1883 — http://memoria.bn.br/docreader/229865/1284
Início do conto Florina

Libertador (Fortaleza, CE), 8/8/1883, número 171, página 2, da primeira à quarta coluna

http://memoria.bn.br/docreader/229865/1285

9/8/1883, número 172, página 3, primeira e segunda colunas.

http://memoria.bn.br/docreader/229865/1290

A relação do conto com Emília Freitas

Não se lê nenhuma assinatura de autor, mas o conteúdo da história, para quem conhece o texto de A Rainha do Ignoto, é obviamente relacionado ao do romance, por estas semelhanças:

1. A caverna proibida e misteriosa, que dá acesso a um mundo maravilhoso no qual se desvendam os segredos da trama;

2. A jovem pastora, que vive nas montanhas onde se encontra a misteriosa caverna;

3. A tristeza da rainha, apesar de ser a dona do mundo da caverna. Esta é uma das marcas da psicologia de Funesta, a contraparte romanesca da personagem Florina do conto.

Outro indício forte é o fato de Emília Freitas ter contribuído com vários poemas para as páginas do Libertador.

Observe-se que essa história se enquadra de fato no gênero do conto maravilhoso, caracterizado por acontecimentos inexplicáveis pelo senso comum, pela lógica ou pela ciência, ao passo que A Rainha do Ignoto, ao oferecer explicações científicas e psicológicas para os fenômenos estranhos da trama, enquadra-se na literatura fantástica.

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Florina

(Conto maravilhoso)

Havia uma crença popular [de] que ninguém devia entrar na caverna da montanha; chamavam-na a caverna maldita; todos os pastores a avistavam de longe, mas não ousavam aproximar-se.

Entretanto, Florina, a formosa pastora que há [havia] três anos conduzia as vacas à pastagem, sentia um violento desejo de saber o que havia naquela caverna, e de dia a dia ela experimentava mais viva curiosidade. Mal completou seus dezesseis anos, disse ela consigo:

— Sou moça, não devo mais ter medo.

Um dia, pois, ela deixou o rebanho sob a guarda de seu jovem irmão, dizendo-lhe que ia colher morangas; mas ela concebera outro pensamento, e internada no bosque, dirigiu-se para a terrível caverna.

Penetrou na caverna sem hesitar, tanto sua curiosidade era viva, mas, apenas deu alguns passos, veio-lhe o desejo de recuar

Infelizmente não era coisa possível: a caverna fechava-se à medida que ela avançava, e, o que era mais maravilhoso, ela enxergava suficientemente para caminhar. Por toda a parte, um clarão, cujos raios nenhum foco projetava, e Florina lobrigava [enxergava] ao longe outra abertura da montanha, que parecia convidá-la a animar-se e prosseguir seu caminho.

Ela acelerou o passo porque temia que a caverna, fechando-se por diante, [ela] fosse sepultada viva na montanha

Nada foi: Florina, depois de ter caminhado longo tempo, muito tempo, sem cessar de ver muito longe de si a abertura, que ela acreditava nunca atingir, chegou ao fim, e ficou bem surpreendida de descobrir um país maravilhoso e mil coisas das quais não tinha ideia alguma.

O céu era róseo, a erva e as folhas azuis, os pássaros tinham quatro asas, as menores borboletas eram grandes como folhas de sicômoro, a água jorrava aqui e ali em molhos de esguichos cintilantes, que exalavam os mais suaves perfumes, os gamos, de pelo branco, de cornos dourados, de olhos azuis, que vinham beber a essas fontes embalsamadas, dançavam ao redor da donzela e falavam-lhe um idioma desconhecido mas tão doce e tão sonoro, que ela sentia indizível prazer em ouvi-lo, tão expressivo que em poucos momentos ela adivinhava quase tudo. É verdade que essas lindas criaturas ocupavam-se sobretudo de sua beleza.

Florina marchava de surpresa em surpresa; todo esse país. encantado parecia-lhe estar em festa. Ela ouviu por trás de muitas árvores, inteiramente novas para si, concerto de vozes humanas; para esse lado dirigiu-se ela.

Na quebrada de uma avenida juncada de ouro, ela avistou, através de magníficas sombras, um palácio de prodigiosa beleza. À medida que ela se aproximava, ouvia maior ruído: eram cantos e risos, cuja expressão singular infundia-lhe mais terror do que alegria.

No entanto, ela não via aparecer pessoa alguma.

Ela não ousou apresentar-se à grande entrada, e fazendo um desvio acercou-se de uma janela baixa, de onde saía um odor da mais apetitosa cozinha do mundo.

Ela bate timidamente à porta. Um grande cozinheiro apareceu, que lhe fala com voz áspera;

― Que procuras aqui?

― Procuro meu caminho, senhor, e rogo-vos dizer por onde poderei voltar a minha casa.

— Ah! Sois a bela que atravessastes a montanha! Sede bem-vinda, Florina! Não esperávamos senão a vós!

Dizendo estas palavras com riso sardônico, o grande cozinheiro afiava sua faca num amolador de aço e arremessava sobre a donzela olhares fulgentes.

— Entrai ― disse-lhe ele ―, mademoiselle, entre, vosso caminho é por aqui.

Florina, depois de ter percorrido um longo corredor, achou-se no meio de uma vasta cozinha, onde vinte marmitões e outros tantos criados estavam ocupados nos aprestos de um suntuoso festim.

Por toda a parte coziam-se as viandas, trabalhava[m]-se as aves. Ao mesmo tempo, trinta marmitões estavam ocupados; mas a pastora surpreendeu-se vendo a maior das marmitas aberta e vazia junto ao fogão, e malgrado seu espanto, não pôde conter-se e disse à meia-voz:

— Senhor cozinheiro, por que esta marmita não está cheia como as outras?

— Porque ela esperava a sua caça, Florina, e esta acaba de chegar neste momento. Éreis vós a quem nós esperávamos para pôr dentro, e quando estiverdes pronta, começará o festim.

Florina desatou a chorar e pediu ao cozinheiro que lhe poupasse a vida.

— Só há um meio de salvação para vós ― retorquiu o chefe. ― Eis aqui uma chave de ouro; procurai em todo o palácio a porta que ela pode abrir. Se achardes, nós não vos cozeremos e escolheremos outra pessoa para o festim de Sua Majestade.

― Em nome do rei, senhor cozinheiro, não ponhas pessoas alguma em meu lugar neste momento! Não há aqui viandas em abundância para a refeição de Sua Majestade?

— Florina, pensai em vós só, e não pretendais introduzir entre nós novos costumes. Quanto a mim, só tenho a dizer-vos: vede a fechadura que possa convir a esta chave, e estais salva. Depois podereis implorar uma graça, uma só, à nossa sagrada majestade.

Imediatamente Florina pôs mãos à obra: ela experimentou a chave em mais de trezentas portas. Para este trabalho, ela só tinha o resto do dia; o sol baixava, e ainda ela não tinha encontrado fechadura para a chave de ouro.

A pobre moça tremia como varas verdes; nessa precipitação, ela não tinha a precisa serenidade para fazer convenientemente suas experiências. O chefe e quatro ajudantes armados de suas grandes facas seguiam-na passo a passo, e alternadamente diziam à tímida donzela:

― Apressai-vos, o sol baixa; o sol baixa, apressai-vos, Florina!

Ela percorreu os grandes e pequenos aposentos; subira ao madeiramento e descera, passava de corredor a corredor; não deixou uma só fechadura sem experimentá-la, mas a chave era sempre grande ou pequena, ou o palhetão mal torneado e [o] feitio de outro jeito, que não ajustava.

Por fim, o cozinheiro disse à pastora:

― Florina, eis o derradeiro momento: o sol vai atingir a montanha.

A pastora achava-se então em frente a um grande espelho pendurado na parede, e, como para ali lançasse os olhos, viu sua mãe e seu pai sentados em uma cabana. Eles choravam, e sem dúvida pranteavam sua filha que perderam, sem portanto pensar que ela se achava em posição tão cruel.

A esta vista, a desgraçada, fora de si, gritou:

― Meus pobres pais, ainda posso tornar a vê-los antes de morrer!

* * *

Falando assim, ela se precipitou tão vivamente para seu pai e sua mãe, para abraçá-los, que a chave de ouro, saltando, bateu no espelho e o fez em mil pedaços; ora, por trás do espelho achava-se uma porta oculta; esta porta tinha uma fechadura, esta fechadura convinha perfeitamente à chave de ouro. Logo que a pobrezinha a experimentou, a porta abriu-se.

— Não esperávamos senão a vós, bela Florina ― disse-lhe o jovem e lindo monarca, apresentando-lhe, em magnífica sala, sua corte, a mais brilhante do mundo inteiro.

A pastora, olhando para si mesma, via-se como transformada. Entretanto, em si não havia mudança senão no vestuário, que resplandecia de diamantes e rubis. Florina nascera tão bela que não necessitava de outra coisa para transformá-la em completa princesa.

Entretanto, no meio do esplendor soberano, o jovem monarca estava pensativo e melancólico; parecia exposto a uma secreta inquietação, e, conduzindo a estrangeira à mesa do festim, disse-lhe com voz comovida:

— Formosa Florina, tendes uma graça a pedir-me: qual é?

— Ah! senhor ― respondeu ela ― não hesitarei em pedir-vos que me restituais a meus pais, mas vossa felicidade e vossa glória tocam-me mais do que tudo, eis porque peço-vos a graça de toda a infeliz que como eu possa cair nas mãos do vosso cozinheiro…

Apenas [Mal] pronunciara estas palavras, que uma música triunfal ouviu-se na sala do festim ― todos os semblantes se expandiram ―; o Príncipe, sobretudo, parecia radiante, e a mais viva alegria substituíra em seu rosto os sonhos do pesar.

— Oh! Minha libertadora ― exclamou ele, beijando a mão de Florina ―, sede bendita pela súplica que me dirigiste! É a mim que fazeis a graça que implorais para os outros! Feliz pedido, que esperava ter à [há] quinhentos anos, e livra-me de um espantoso encantamento! Sois vós a primeira, Florina, que tendo a pedir-me um favor, um só, esquecestes-vos por outrem. Doravante poderei passar uma vida inocente! Minha mesa real não será mais conspurcada por detestáveis manjares, aos quais foi-me permitido, é verdade, nunca tocar, mas cujo único aspecto horrorizava-me. Em reconhecimento de tão grande benefício, quero, formosa Florina, fazer por vós alguma coisa de mais.

— Ah! Senhor, peço-vos que me restituais a meu pai e à minha mãe!

— Não posso!

— Então chamai-os para junto de sua filha?

— Também não é possível!

― Ah! Então o que é que podereis fazer por mim?

— Enviarei o pássaro vermelho, meu fiel mensageiro, dizer a vossos pais que sois minha esposa e que não há sobre a terra uma rainha mais amada e mais amável do que vós.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Florina reinou ― foi esposa feliz, mas seus olhos arrasados em lágrimas voltavam-se muitas vezes para a montanha, por trás da qual ficara uma metade de sua felicidade.

Não há, mesmo no país das fadas, felicidade completa neste mundo.

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Sérgio Barcellos Ximenes

Escritor. Pesquisador independente. Focos: história da literatura brasileira e do futebol, escravidão e técnica literária.