A Pharmácia Franceza

Frank Junior
A Ponte
Published in
7 min readSep 26, 2018

No ano de 1855 surgiu no Brasil uma epidemia de cólera que logo atingiu Pernambuco, causando centenas de mortes, dentre elas o 1º. vigário caruaruense, o Pe. Antonio Jorge Guerra (substituído logo após pelo “vigarinho”, o Vigário Freire, se tornando o 2º vigário de Caruaru).

O Governo Imperial (Dom Pedro II) contratou enfermeiros e farmacêuticos franceses, especialmente para o trabalho no interior do Norte e do Nordeste brasileiros. Entre os contratados encontrava-se Jean Barthlemy Pegot (1824–1895), nascido na zona rural da cidade francesa de Marselha, sudoeste da França, que foi encaminhado para trabalhar na vila de Caruru em setembro de 1855 (Caruaru só se tornaria cidade 2 anos depois). Em meados de 1856, Jean Pegot conseguiu extinguir a cólera no local utilizando sais químicos e medicamentos trazidos da Europa, atendendo ricos e pobres.

Durante esse tempo, Jean Pegot ficou hospedado na casa do rábula (uma espécie de advogado que sem formação acadêmica em Direito, tinha a permissão de exercer a função) Antônio Florêncio de Carvalho Ametista, único caruaruense que sabia falar francês, e morava na Rua da Frente (hoje a rua 15 de Novembro) e que inclusive foi vítima de cólera pouco depois.

Na casa de Ametista, Jean Pegot conheceu sua filha, a jovem Ana Emília Florêncio de Carvalho Ametista (1848–1925). Quando Jean Pegot conseguiu extinguir a cólera na localidade, o seu contrato também terminava, porém ele decidiu ficar na vila, e se casou com Ana Emília.

Ana Emília e Jean Pegot

Pharmacia Franceza

Ainda no ano de 1856, já fixado no local, Jean Pegot, após autorização da Câmara de Vereadores (que era a instância política mais importante da época, já que não se tinha prefeitura, porque não era uma cidade ainda), abriu a famosa Pharmacia Franceza, a primeira farmácia de Caruaru, pois as que existiram anteriormente eram apenas boticas (uma precursora da farmácia, época em que a medicina e a farmácia eram uma profissão só). Seu primeiro endereço, nos primeiros três anos, foi na esquina do beco de João Piston (atual rua dos Expedicionários) com a Rua da Frente (atual 15 de Novembro). Seu segundo endereço, a partir de 1859, foi no sobrado mandado construir pelo próprio Jean Pegot, já com dois pavimentos, usando na fachada principal, material importado da Europa, localizado num beco que também fazia esquina com a Rua da Frente.

No pavimento térreo situavam-se as prateleiras das drogas, o laboratório para aviamento das receitas, o balcão de ferro, as banquetas de couro para a turma do plantão e, na parte posterior, o salão destinado aos casos graves ou urgentes, necessitados de intervenção cirúrgica. Jean Pegot, além de farmacêutico, também trabalhou como médico, parteiro, cirurgião e professor de francês, aliás, o primeiro de língua estrangeira da cidade.

O beco (que ligava a Rua da Frente com a rua Duque de Caxias) onde a farmácia estava localizada rapidamente ficou conhecido como Beco de Jean Pegot e após sua morte, como Beco de Donaninha, nome pelo qual era conhecida dona Ana Pegot. No início do século XX, também foi conhecido por Beco de Dona Elvira (morava no sobrado do lado esquerdo do beco).

Jean Pegot e Donaninha não tiveram filhos e por isso adotaram dois filhos. Inicialmente foi adotado Manoel de Freitas Torres dos Santos (Nôzinho de Freitas) e a seguir, após o falecimento de uma irmã de Donaninha — Maria Crisólita — o seu sobrinho, Sinval Florêncio de Carvalho Santos (o Major Sinval), que tinha apenas 8 anos de idade.

Major Sinval

Com a morte do velho Pegot, quem assume a farmácia é seu filho Sinval, e foi na administração dele que o local ganhou fama. Durante décadas, a farmácia reuniu intelectuais, piadistas, gente de imprensa e amigos saudosistas, dentre eles um grande amigo de major Sinval, Nelson Barbalho.

Eu já ia dizer aqui que falar sobre Major Sinval por si só merecia um livro, mas Nelson Barbalho já fez isso, e publicou 3 livros (e mais 1 inédito) só sobre Major Sinval e a Pharmácia Franceza. Inclusive, o 1º livro publicado de Nelson foi “Major Sinval” no ano de 1968, contando até com um prefácio de um outro grande nome da literatura caruaruense, Agnaldo Fagundes. Ainda bem que o lançamento do 1º livro de Nelson sobre Major Sinval foi uma homenagem ainda em vida ao major, que só veio a falecer no ano de 1974.

Primeiro livro de Nelson Barbalho (1968)
Nelson Barbalho e Major Sinval no lançamento do livro (1968)

Major Sinval era um grande poeta-improvisador e boticário, era muito sábio nas artes da cura e na ciência dos versos, além de um grande contador de histórias e causos.

Em um dos encontros de mesa de bar entre Nelson Barbalho e Major Sinval, já hora da despedida com o “quengo cheio” como ele mesmo explica no livro “O Trem da Saudade”, Nelson mandou o mote da saidera para o major:

“Sinval e Nelson Barbalho / São amigos de primeira”

Major Sinval “dando de garra dum copo de cana e duma coxa de galinha assada” brindou e improvisou:

“Banhados com o mesmo orvalho
Cresceram no mesmo clima
E vivem na mesma estima
Sinval e Nelson Barbalho”
Cada qual no seu trabalho
Moureja a vida inteira
Porém, de qualquer maneira
Quer juntos, quer separados
Esses dois cabras danados
São amigos de primeira”.

Com a fama de major Sinval e da farmácia, o beco onde a farmácia ficava localizada rapidamente ficou conhecido como Beco do Major Sinval. A partir da segunda metade do século XX, de Beco do Ouvidor, e só depois virou Beco da Estudantil e Beco da Pequena de Ouro, embora oficialmente tenha o nome de Rua Ana de Albuquerque Galvão.

Major Sinval também teve duas filhas, Mabel Santos que na década de 30 foi considerada a moça mais bonita da cidade, e Cacilda Santos, considerada a maior poetiza de Caruaru.

Nôzinho de Freitas

O irmão de major Sinval (o outro filho do casal Pegot) também foi um personagem de extrema representatividade de Caruaru, Manoel de Freitas Torres dos Santos, foi pioneiro em várias áreas em Caruaru. Fundou o primeiro atelier fotográfico de Caruaru, a “Photografia Três Estrelas”, a primeira livraria da cidade, a “Electro Primor” na Rua da Frente onde fundou também a “Pharmacia Freitas”. Foi proprietário da pioneira “Saboaria Serrana” (fábrica de sabão e sabonete) premiada no Rio de Janeiro e primeira a ser instalada às margens da ferrovia, o que deu origem a um conjunto fabril que conhecemos hoje como distrito industrial.

Projetou a segunda torre da antiga Catedral da cidade (igreja anterior à igreja da Matriz, demolida por quem não valoriza nem preserva a história da cidade).

Criou ainda o primeiro horto florestal de Caruaru, em área ao lado da sua chácara, na margem direita do Rio Ipojuca, atual Parque 18 de Maio, onde instalou um inusitado sistema de captação de água movido por catavento e que abastecia o chalé por tubulação, ou seja,, água encanada pela primeira vez na cidade. Trouxe para Caruaru a primeira “máquina falante” — um fonógrafo da Casa Edison, precursor das vitrolas. Foi co-patrocinador da Escola Éden Infantil juntamente com Otaviano Pereira Tejo, onde estudaram Gustavo, filho de Manoel de Freitas, João e Elysio Condé, Álvaro Lins, dentre outros.
Foi maçom da Loja Dever e Humanidade.
Idealizador, fundador e primeiro presidente da ACC (Associação Comercial e Caruaru) atual ACIC, doou o terreno para construção da primeira sede da entidade e ainda concedeu empréstimo para as despesas da construção. Foi dele também a doação do terreno para construção do Hospital São Sebastião.
Faleceu antes de Major Sinval, no ano de 1946.

Nôzinho de Freitas
Interior da Farmácia Freitas, no qual Manoel de Freitas era proprietário.
Casa de Nôzinho de Freitas, localizada na antiga boate 100 graus, onde hoje é o Carrancão.

Hoje em dia, no local da saudosa, centenária, ponto de encontro de intelectuais da época, a Pharmácia Franceza, é apenas uma loja qualquer do centro, para tristeza da história cultural da cidade.
Mas nós fazemos nossa parte hoje de preservar a cultura, e não deixar figuras como Major Sinval, Cacilda Santos, Nôzinho de Freitas e o casal Pegot caírem no esquecimento.

Referências:

- Um agradecimento especial ao grupo “Caruaru Arcaico”, (em especial a Hélio Florêncio e Walmiré Dimeron), onde eu peguei boa parte das fotografias e informações.

--

--