A vida prévia de Ash Cobalt

Part 4 - Lá nos campos da Itália

Alcimar Veríssimo
A vida prévia de Ash Cobalt
6 min readMar 10, 2017

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Este texto faz parte de um livro. Se você chegou até aqui de forma aleatória, solicito que leia os capítulos anteriores clicando aqui.

Para um menino que cresceu alimentando-se de Chapatis numa comunidade pobre de Camp Funston, nada mal estar de cara com a responsabilidade de uma guerra, certo? Meu orgulho continuava lá em cima e eu não queria parar por ali. Logo após o treinamento que durou dois anos, meus colegas e eu recebemos uma dispensa de 15 dias. Foram os dias mais difíceis para os familiares que não sabiam se teriam seus filhos de volta depois da campanha que duraria por tempo indeterminado. Como eu era filho único, o Comando do Exército precisou da autorização dos meus pais para que eu prosseguisse na viagem. O que foi motivo de discussão entre eles. Minha mãe se recusou a assinar, sendo assim, meu pai deu um jeito de falsificar a assinatura dela. Esse foi o grande motivo da separação dos dois que não durou nem os 15 dias que eu estava na dispensa. Resolvi deixar pra ela, todo o dinheiro que eu havia economizado durante o tempo que eu passei no quartel. Meu pai, que sempre a jurou amor eterno, percebeu ali o quanto seu filho havia mudado, mas ele não sabe que fiz aquilo pra amenizar a dor da pobre coitada. “Pai! O amor é lindo, mas falsifica assinaturas”. Disse eu com um sorriso irônico antes de partir.

Militares da FEB (Força Expedicionária Brasileira), 1945 - Imagem do Google

O plano do meu pai deu certo e em 15 de janeiro de 1944, com assinatura falsificada, parti para os campos da Itália, que com certeza é um belo país para se visitar durante o inverno. Eu só não imaginava que minha primeira visita seria com um Fuzil Johnson M1941 cruzado ao corpo, uma pistola Colt M1911 na cintura e várias caixas de munição para carregar. Ficamos durante alguns dias em marcha até o primeiro campo de batalha, na cidade de Luca, Itália. Durante esses dias eu tive bastante tempo pra conversar e fazer amizade com alguns Brasileiros da FEB que adoravam vangloriar a cidade do Rio de Janeiro. A insígnia deles era de uma cobra fumando, graças uma alusão irônica ao que se afirmava à época de sua formação, que seria "Mais fácil uma cobra fumar cachimbo do que o Brasil participar da guerra na Europa". Pois o Brasil participou e a cobra fumou. Os Brasileiros eram engraçados, mas o Sargento Jordan era meu melhor amigo naquela situação, desde as horas vagas onde bebíamos e falávamos sobre mulheres até os momentos em que a única opção era torcer para que nenhum caça alemão atingisse a nossa base durante a madrugada. Certo dia ele me fez uma pergunta que eu não soube responder.

Se um dia você esquecer de tudo o que viveu, se apaixonaria novamente pela mesma pessoa?

Estas palavras permaneceram na minha cabeça durante muito tempo. Por quem eu poderia me apaixonar duas vezes? Até onde eu sabia, a única mulher pela qual eu me apaixonei estava em algum lugar dos Estados Unidos e eu não tinha nenhuma notícia dela além das lembranças de quando éramos crianças. O curioso é que ele parecia saber de algo, mas nunca mais tocou no assunto.

Chegamos ao nosso primeiro confronto e as coisas começaram a sair do controle. As noticias de morte começavam a chegar a toda hora. Nesse momento eu agradeci por não ter sido designado ao pelotão de infantaria. Caso contrário, as chances de ter morrido em batalha seriam bem maiores. Eu ficava numa base junto ao Sargento Jordan e os outros dois Soldados aguardando alguma mensagem da tropa. Nas primeiras vezes que saímos da base cheios de munição foi como dar um tiro no escuro. É difícil de explicar aquela sensação única de cruzar um campo sob alvo de fogos do inimigo enquanto se preocupa em não deixar cair as caixas de munição na traseira do Jeep. Nesse momento sua vida é menos importante que o material empregado.

Nas saídas seguintes nós ficávamos mais espertos. Como tudo na vida, depois da primeira vez fica bem mais fácil. Muitas vezes eu tive que atirar em alguns militares alemães que tentavam parar o Jeep. O Sargento Jordan era impecável quando assumia a direção e sempre encontrava os melhores atalhos para chegar em segurança no local indicado. Quando chegávamos, ele permanecia na viatura enquanto eu descia com as caixas e outro soldado fazia a minha cobertura enquanto eu corria até nossos amigos encurralados atrás de alguma parede. Nossa função era essencial na guerra e eu sempre acreditei que poderia fazer algo melhor que aquilo, mas eu estava errado e finalmente aprendi a gostar de ajudar. Eu não estava mais sendo egoísta.

Alguns meses se passaram e um grande problema que enfrentamos foi a falta de chuva durante a campanha. O Sargento Jordan alegou que a chuva faria com que os soldados esfriassem a cabeça e esquecessem um pouco dos problemas. Ele parecia saber de tudo mesmo, mas depois do inverno, durante toda a campanha, não havia chovido em nenhum dos dias.

A cada mês que se passava, mandávamos mais corpos de amigos que tombavam em batalha de volta aos Estados Unidos. Certamente os psicólogos que nos acompanharam durante o treinamento não faziam Ideia do que é ver um amigo ser atingido por um tiro de 7,62mm e não poder fazer nada, mas eu posso te garantir que com o passar dos dias isso se torna algo tão comum que deixa de ser trágico e passa a ser memorável. Apenas durante a guerra entende-se o real significado da palavra “paz”.

No dia 20 de abril de 1945 enquanto aguardava um novo chamado, o Sargento Jordan observava com atenção a viatura que nos transportou por mais de um ano. Na minha cabeça, ele agradecia por ainda estarmos vivos. Aquele Jeep jamais havia falhado enquanto comandado por ele, até que nosso rádio PTT iniciou uma chamada. Era de uma tropa que tinha acabado de perder metade de seus homens em combate e não tinha mais munição. Nos dirigimos até o local e fizemos tudo como sempre. O Sargento Jordan estava com pressa, gritou como um louco ao tentar dizer alguma coisa que não conseguimos ouvir muito bem, mas fazia gestos com a mão como se estivesse nos chamando de volta para a viatura. O problema é que os alemães teriam encontrado nossa localização e estavam por vir. Nesse momento, corremos insanamente até o Jeep, mas só eu consegui alcança-lo a tempo antes do Sargento pisar no acelerador. Olhei pra trás e vi que os meus companheiros de transporte haviam sido atingidos por tiros de metralhadora enquanto tentavam escapar. Provavelmente todo o resto da tropa que ficou, morreu naquele local, sem direito a segunda chance.

No caminho de volta para a base aconteceu o que nós não esperávamos. Enquanto fazíamos uma curva, um alemão apareceu misteriosamente na frente da viatura com um rifle na mão. Ele tinha aparentemente 36 anos de idade, um bigode estranho e usava um óculos engraçado. Foram as últimas coisas que consegui gravar antes dele efetuar um disparo em nossa direção. O tiro acertou em cheio a cabeça do Sargento Jordan, que veio a falecer na hora. Depois disso, como consequência da posição em que o nos encontrávamos na curva, o grande e indestrutível Jeep Willys 42 veio a tombar e capotou como um carro de brinquedo.

Eu não morri nesse dia, mas uma parte da viatura caiu por cima de mim. O que me causou uma Amnésia retrógrada, fazendo-me perder a consciência e entrar em coma. O curioso é que esse tipo de amnésia faz com que todas as suas memórias prévias sejam apagadas e por mais que eu saísse do coma, eu não lembraria de nada sobre a minha vida. O Sargento Jordan estava certo, com a chuva alguns soldados esqueceriam seus problemas. Especificamente eu, Soldado n° 309, Ash. E naquele dia, depois de 1 ano e 3 meses, pela primeira vez durante a campanha, choveu forte na primavera da Itália de 1945.

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