Em busca da paisagem perdida

Um ensaio confundindo finalidades e origens: montagem

Marcelo Armesto Dos Santos
atrito
Published in
7 min readApr 30, 2018

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A imagem não é um ponto sobre uma linha, mas produz uma temporalidade com dupla face: nem evento, nem bloco fechado e eterno. A história se desmonta em sua temporalidade e, portanto, exige sua remontagem, em blocos de memória justapostos. A imagem é dialética, portanto, anacrônica e sintomal. Como sintoma, entendo que o objeto histórico, quando aparece no presente, atualiza um Outrora que sobreviveu; o sintoma pensado como o que sobra, o que escapa, o fantasma de uma origem que não conseguimos mais alcançar, que sempre pressupõe a ideia de esquecimento. E sobre o anacronismo, penso em uma imagem que confunde a cronologia e põe em xeque a compreensão lógica e causal da historicidade.

É dentro dessa perspectiva que penso o pensar sobre meu trabalho poético. O próprio fazer, mesmo em suas opções mais conscientes e pouco subjetivas é permeado por escolhas sintomais e reflexões anacrônicas. Em Vago, por exemplo, é impossível para mim traçar uma genealogia ou uma causalidade de seu processo de criação. Consigo, no máximo, através da convocação da memória e do fluxo de consciência, remontar fragmentos — ou, melhor dizendo — trechos significantes e remontá-los como venho tentando fazer aqui. A cronologia se confunde, inúmeros Outroras vêm atualizar o Agora: influências de outros artistas que não estavam em nível consciente, ideias teóricas que me eram menos familiares à época do início do trabalho, comentários de pessoas próximas que talvez eu já acredito que são meus, etc. São imagens misturadas que geram um Atlas, um campo de imagens que resultam no que penso sobre o trabalho enquanto redijo esse texto.

A história da arte é a história dos restos e dos detalhes, em que nada é mais imprevisível do que o futuro fermentado nas obras de arte, em que cada época tem uma série de profecias que lhe é possível de realizar. Se a história é a história das profecias, o pensar do artista sobre a sua produção poética também é. Coisas são entendidas em um Agora, como se houvessem assim sido pensadas no Outrora.

É uma atualização da interpretação do passado como reminiscência platônica — em que aprender é sempre relembrar — sob uma ótica de que, sim, pesquisar é sempre relembrar, mas não no sentido de reaprender algo que o Espírito já sabia. Mas sim, de que pesquisar é ser confrontado com o passado que vem em direção ao historiador, e não o contrário. Entendo a produção poética — e o refletir sobre ela — da mesma forma: um passado que vem em direção ao artista, que é canalizado e cria um trabalho. E serve como um canal não no sentido do demiurgo que canaliza uma inspiração divina, mas sim como um funil que condensa todo um Outrora — o passado do próprio artista — para um Agora que se materializa em um trabalho de arte (e que atualiza o Outrora em um movimento de retroalimentação). As memórias, as experiências, os recalques, as referências, as possibilidades materiais, as teorias, vêm todas em direção ao artista e reaparecem em um sintoma que é o trabalho de arte.

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Como eu escreveria bem se não existisse! Se entre a folha branca e a efervescência das palavras e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão decepada que empunha a pena e escreve… Mas o que moveria essa mão? A multidão anônima? O espírito dos tempos? O inconsciente coletivo? Não sei. Não quereria anular a mim mesmo para tornar-me o porta-voz de alguma coisa definida. Só o faria para transmitir o escrevível que espera para ser escrito, o narrável que ninguém narra. (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

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Tento aqui produzir em mim um novo olhar sobre o trabalho, sem entendê-lo nem como evento isolado no colar de contas da história nem como uma caixa fechada fora de minha própria história. Não como aquele que acredita que as coisas são apenas o que são, tampouco como aquele da crença. Busco olhar para o trabalho como produto de sobrevivências e atualização de um Outrora sem cair em uma compreensão lógica ou causal. Tento trazer aqui uma série de fragmentos justapostos, de elementos apresentados em estado de copresença, não conjugados em termos de “ou, ou” mas de “e, e”. É tentar pensar o trabalho como um passado que vem em minha direção em suas reminiscências, bifurcações e atualizações. É tentar a renúncia a hierarquização entre os fatos importantes e desimportantes, a objetividade contra a subjetividade, atentar ao detalhe, ao resto, às latências.

O resto — para o historiador materialista — era sintomal do saber inconsciente, resultado de um recalque da história, por isso, chamou-se o pesquisador de trapeiro da história. O método a arqueologia psíquica, em que a ação do pesquisador coloca as coisas de perna para o ar, inverte superfície e fundo, como um escavador planejado que não só inventaria os objetos que trouxe à luz como também mostra o lugar onde estavam conservados.

Através da montagem, podemos passar a incorporar tudo o que estamos pensando dentro do trabalho no qual estamos mergulhados. Na montagem existem dois pilares construtivos: o movimento e o inconsciente. É porque não podemos separar o objeto desse conhecimento — aqui meu próprio trabalho poético — do método de sua abordagem que esse texto se configura em um pensar como posso pensar sobre a articulação teórico-prática de minha pesquisa. É, reconheço, um pensamento em abismo, que pode desembocar em um exercício infinito. Porém, assumindo que a origem dessa série de trabalhos é um livro como Se um viajante numa noite de inverno, é preciso admitir que o jogo de espelhos é parte indispensável do jogo.

Especular, refletir: toda atividade do pensamento me remete aos espelhos. Segundo Plotino, a alma é um espelho que cria as coisas materiais refletindo as idéias de uma razão superior. Talvez seja por isso que eu preciso de espelhos para pensar: só consigo concentrar-me quando em presença de imagens refletidas, como se minha alma tivesse necessidade de um modelo para imitar toda vez que exercita sua virtude especulativa. (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

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Na série de trabalhos que venho desenvolvendo da qual Vago faz parte, interessa-me mais a atitude do debruçar-se sobre uma mesa sobre a qual estão dispostos documentos, imagens, textos, do que a atitude de cruzar as mãos por detrás das costas e contemplar um quadro em uma parede branca. A escala dos trabalhos, o tipo de pesquisa do qual eles derivam, o tipo de articulação que espero que aconteça entre eles, tem mais a ver com o ambiente da mesa do que com o da parede. Da mesma forma, acredito que essa seja a forma mais prolífica sob a qual posso pensar sobre meu próprio trabalho. Aqui busco dispor vários desses trechos, como alguém que ordena as folhas em uma grande mesa.

O tipo de pensamento possibilitado pela relação de imagens é diferente do olhar contemplativo. Ao espectador cabe o papel de estabelecer conexões, recuperar contatos, produzir pensamento e reflexão. Toda obra de arte é filiada à história da arte que a precedeu, atualiza o Outrora. A arte precisa ser entendida como forma de pensamento, em que o que pensa não é seu autor, mas a obra mesma, em um tipo de pensar material e objetivo.

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Conto muitas histórias ao mesmo tempo porque desejo que em torno desse relato sinta-se a presença de outras histórias, até o limite da saturação; histórias que poderia contar ou que talvez venha a fazê-lo, ou quem sabe já tenha contado em outras ocasiões; um espaço cheio de histórias, que talvez não seja outra coisa senão o tempo de minha vida, no qual é possível movimentar-se em todas as direções, como no espaço sideral, encontrando sempre novas histórias, que para narrar seria preciso antes narrar outras, de modo que, partindo de qualquer momento ou lugar, encontre-se sempre a mesma densidade de matéria para relatar.[…] E isso, pesando-se os fatos, é o sinal de uma verdadeira riqueza, vasta e sólida, pois, se hipoteticamente tivesse somente uma história para contar, eu me desdobraria por ela e, na ânsia de valorizá-la, acabaria por consumi-la, ao passo que, tendo um estoque praticamente ilimitado de substâncias narráveis, estou em condições de manipulá-la com desprendimento e tranqüilidade, deixando transparecer até um ligeiro enfado e permitindo-me o luxo de demorar-me em episódios secundários e detalhes insignificantes. (Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno)

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Algumas perguntas sucedem esse texto. Como começar a falar sobre o próprio trabalho? Ao desenvolver uma pesquisa que fala sobre sua própria produção, como ser um historiador de si mesmo? Até onde ir na coleção dos trapos e farrapos da própria história? Os restos, os farelos de borracha no chão podem falar tanto sobre o pensamento quanto os riscos sobre o papel? A partir de que momento se é anacrônico em relação ao próprio fazer? É possível para o artista analisar os próprios sintomas?

Outros nós

O debruçar sobre a mesa na pesquisa
COLI, Jorge. O corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura do século XIX. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

As reminiscências
PLATÃO. Fédon (a imortalidade da alma). E-book. Livro de domínio público.

O modo geral de como olhar para o próprio trabalho, a montagem, o historiador materialista
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

___. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

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