Cemitério de Consoles | Gizmondo (2005): uma história de luxúria, crime e cadeia

Desembolsando milhões em divulgações envolvendo celebridades, o sistema por fim não gerou lucro algum para sua desenvolvedora.

Rafael Smeers
Aventurine Brasil
6 min readOct 29, 2018

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Cemitério de Consoles é uma marca Aventurine Brasil. O uso sem permissão é proibido. | Gizmondo Logo © by Tiger Telematics | Gaming Room by HardwareHeaven

Já vimos um número considerável de estranhezas ao longo do Cemitério de Consoles, como o descarte de tudo que havia sido feito no caso do Apple Bandai Pippin e até mesmo o console Commodore 64 Games System em si. Ainda assim, nenhum deles foi tão longe quanto o protagonista da edição de hoje: o Gizmondo, uma espécie de central multimídia portátil afetada por participações de sua companhia no crime organizado.

Criado pela Tiger Telematics, o videogame foi amplamente prejudicado por escândalos na imprensa sueca envolvendo a investigação de registros criminais no passado de vários executivos, uma situação que pouco a pouco constituía uma avalanche em direção à empresa. O portátil que dizia “Eu posso fazer qualquer coisa” e oferecia uma gama ampla de funções acabou por ser somente mais um barril de pólvora no caminho de um incêndio.

Como de costume, a dramatização explosiva de “inovação” chega a tornar o comercial assustador.

Um castelo de cartas

Originalmente chamado de Gametrac, o desenvolvimento do sistema que viria a se tornar o Gizmondo foi anunciado em outubro de 2003 como um competidor ao N-Gage, da Nokia. Assim como ele e outros dispositivos lançados na época, a ideia era diferenciar-se do Game Boy Advance através da implementação de funções de telefonia celular, enquanto também competia com o Nintendo DS e PlayStation Portable.

Pouco tempo depois, o conceito era apresentado na CES de Las Vegas, até que em abril de 2004 o nome Gametrac foi substituído por Gizmondo. As expectativas da mídia estavam altas devido ao número de funções do aparelho, que o faziam soar como um competidor digno à Nintendo e à Sony.

Utilizando cartuchos, o videogame portátil era lançado no Reino Unido e na Suécia no início do ano seguinte, em 2005. O consumidor podia escolher entre dois modelos: um com propagandas, mas com custo reduzido (£129) e outro sem propagandas, mas custo integral (£229).

Já os Estados Unidos teve de esperar até outubro, quando o Gizmondo seria vendido ao preço de 400 dólares pela versão sem propagandas e 229 dólares com propagandas, uma diferença de custo mais intensa do que na Europa. O comércio do aparelho era realizado em lojas especializadas e em quiosques de shopping. Pouco tempo depois, um modelo widescreen foi lançado, com funções extras como Wi-Fi, saída para TV e melhorias na câmera, resolução e processador do aparelho.

O Widescreen Gizmondo (dir.) procurava se aproximar mais do design “refinado” do Nintendo DS e do PlayStation Portable, mas foi lançado muito próximo ao lançamento oficial americano.

A espera foi ocasionada pelo adiamento constante da data de lançamento do sistema no continente. Neste período, milhões eram investidos na divulgação do produto. Festas extravagantes e repletas de famosos eram comuns e já criavam a dúvida da origem de todo esse dinheiro. Jenson Button, corredor britânico de Fórmula 1 aparecia frequentemente em propagandas em revistas e teve até seu próprio jogo para o console, Chicane.

E isso não é tudo. Um dos executivos da empresa, Stefan Eriksson, chegou até a participar da corrida 24 Horas de Le Mans de 2005 em uma Ferrari 360 Modena GTC patrocinada pela Gizmondo. Mas as coisas começaram a desmoronar, pois a imprensa sueca revelava gradualmente o passado criminal de vários executivos, entre eles o CEO da Tiger Telematics: Carl Freer.

O tempo fechou ainda mais quando Stefan Eriksson também foi desmascarado, acusado de envolvimento na máfia de Uppsala (cidade na Suécia). Em fevereiro de 2006, a Gizmondo declarava sua falência com endividamento de 300 milhões de dólares e o fim da produção de seu produto.

Em adição, não muito tempo depois disso acontecer, Stefan Eriksson se envolveria em um acidente com sua Ferrari e investigações acabariam revelando que aquele carro nem mesmo era dele, mas sim do Banco Real da Escócia. Depois do ocorrido, também foram revelados envolvimentos dele com o crime organizado, resultando em dois anos de prisão.

Muitas funções e poucas opções

Como pode-se imaginar, o Gizmondo não teve o prazer de construir uma biblioteca de títulos honorável. O console foi basicamente composto por somente os seus 14 títulos de lançamento, enquanto todos os outros jogos em desenvolvimento foram cancelados.

Entre eles, destacavam-se por popularidade FIFA Soccer 2005 e SSX 3. Boa parte dos outros títulos era composta por aproximações mais casuais e infantis.

Já entre os títulos cancelados pela descontinuação do console, temos nomes grandes e notáveis. Age of Empires, Alien Hominid, Carmaggedon, Halo: Combat Evolved, Rayman, Tomb Raider e Worms World Party são alguns dos títulos que planejavam dar as caras no Gizmondo, mas não foram rápidos o suficiente e também não solucionariam os problemas da Tiger Telematics. Com o ocorrido, aqueles que aderiram ao sistema tiveram de se contentar ao uso de suas outras funções.

Recepção

Algumas críticas elogiaram o Gizmondo em seu lançamento, mas boa parte dos elogios ficavam por conta do hype construído até então. Conforme os escândalos envolvendo os executivos da Tiger Telematics cresciam, o aparelho obtinha uma imagem ruim de mercado e perdia oportunidades de parcerias futuras. Pontos como a baixa qualidade de reprodução de vídeo, a baixa qualidade da câmera e a imprecisão dos botões direcionais eram frequentemente criticados.

Chris Merris: “O produto não tem foco, sofre de diversas falhas e carrega um preço altamente insultante.”

Houveram também reclamações quanto ao tempo de inicialização do sistema, que levava cerca de 50 segundos, dez vezes mais que o tempo de inicialização do Nintendo DS. Enquanto o Nintendo DS apresentava inovações como tela touchscreen e dual screen e o PlayStation Portable abrigava títulos variados e posava de boa alternativa, o Gizmondo tinha poucos jogos e era absurdamente caro em comparação aos seus concorrentes. Pelo preço de 400 dólares, era possível adquirir um Xbox 360.

Placa-mãe do Gizmondo.

Nem mesmo a versão “barateada” (Smart Add) do console, que apresentaria propagandas de até 40 segundos até três vezes por dia para compensar a diferença no custo final ao consumidor, justificava a compra. Ironicamente, as propagandas nunca chegaram a veicular, o que quer dizer que aqueles que compraram o sistema por praticamente a metade do preço provavelmente tiveram a mesma experiência dos que investiram na versão “ad-free”. Um verdadeiro descaso ao consumidor, apesar de inevitável devido à falência da produtora.

Isso sem falar de que vários dos softwares expostos nos comerciais do Gizmondo não vinham com o aparelho, como por exemplo a função GPS. Jornalistas também expunham os riscos da ousadia da Tiger Telematics, que inicialmente comercializava o console por si própria através de seu website e através dos quiosques de shopping anteriormente citados. Podemos citar como pontos responsáveis pelo fracasso do videogame:

→ Preço extremamente alto em comparação aos seus concorrentes;
→ Investimento exacerbado em divulgação;
→ Escândalos envolvendo a desenvolvedora atribuíram uma imagem ruim ao sistema;
→ Divulgações e comerciais errôneos;
→ Biblioteca limitada aos títulos de lançamento, em sua maioria desinteressantes;
→ Baixa qualidade de reprodução de vídeo e de câmera;
→ Imperfeições físicas (carcaça que se deteriorava e derretia facilmente);
→ Comercialização mal planejada.

Cenário do acidente envolvendo Stefan Eriksson e sua Ferrari 360 Moderna GTC.

Curiosidade: Em 2007, Carl Freer apresentou intenções de desenvolvimento de um sucessor do Gizmondo e disse que 35 jogos já estavam planejados, juntamente de uma fábrica na China. Supostamente, o aparelho custaria 100 dólares e seria baseado em Android, mas foi adiado diversas vezes e efetivamente cancelado depois da aparição de novos escândalos relacionados a envolvidos no processo de desenvolvimento.

No próximo texto do Cemitério de Consoles vamos conferir a história do PlayStation Vita, sucessor do PlayStation Portable que apesar de não ser considerado um fracasso comercial, foi silenciosamente abandonado pela Sony e só foi propriamente “encerrado” há pouco tempo. Acompanhe o Aventurine e não perca a próxima edição da série!

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Rafael Smeers
Aventurine Brasil

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