A avalanche de ações trabalhistas movidas contra os times de futebol no RS

Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação revelam que uma ação é impetrada no Tribunal Regional do Trabalho a cada 2,5 dias

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Redação Beta
11 min readDec 10, 2020

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O número de processos envolvendo clubes de futebol no Rio Grande do Sul é alto, afirma especialista. (Foto: Gustavo Machado)

Por César Weiler, Emerson Santos, Frederico Wichrowski, Gustavo Machado e Kévin Sganzerla.

Os números são de ações envolvendo clubes de futebol e futsal protocoladas nos últimos quatro anos no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4). No total, 657. O levantamento obtido pela reportagem via LAI revela uma face pouco conhecida pelos torcedores, que são as contendas entre os jogadores — ou trabalhadores do esporte — e seus clubes ou patrões. Os termos da ação variam, assim como os salários deles. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) fez um levantamento em 2016 sobre a situação salarial dos 28.203 jogadores que atuaram em times naquele ano. Na época, 82,4% dos atletas (23.238 jogadores) ganhavam até R$ 1 mil mensais. Menos de um porcento (0,8%) tinham salários acima de de R$ 50 mil. Estar trabalhando na pandemia, também virou privilégio. Segundo o Sindicato dos Atletas Profissionais do Rio Grande do Sul (Siapergs) antes da Covid-19, havia cerca de 800 jogadores de futebol em atividade no Rio Grande do Sul. Após o início da pandemia, o número baixou para 225, aproximadamente. Entender as relações trabalhistas que envolvem os atletas e os seus clubes foi o desafio desta reportagem produzida nos últimos três meses.

Entre os 10 clubes mais acionados judicialmente no período pesquisado (janeiro de 2016 a outubro de 2020), quatro são da Divisão de Acesso do futebol gaúcho, nível que emprega menos e oferece os menores salários. De acordo com ex-presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do RS (Siapergs), nesta matéria, no acesso, o salário médio dos jogadores é de R$ 2,5 mil. Os atletas da elite do futebol estadual recebem em torno de R$ 7 mil — excluindo os jogadores da Dupla Grenal — enquanto os jogadores que disputam o terceiro nível do futebol gaúcho recebem praticamente um salário mínimo. Na lista dos mais acionados desde 2016, Guarany de Bagé e Internacional foram ranqueados. Um foi postulante ao acesso em 2020 e disputou a competição com 23 atletas, outro é um dos principais clubes do país e conta, hoje, com 34 atletas. A folha salarial do Inter é de aproximadamente R$ 6,3 milhões, 46.5 por cento superior ao do rival, Grêmio, R$ 4,3 milhões.

Veja aqui como está estruturado o futebol gaúcho e conheça a realidade financeira de cada nível do esporte no estado

Para o advogado especialista em Direito Desportivo Carlos Eduardo Licks Flores, a principal justificativa para o elevado número de processos pode ter relação com a falta de planejamento financeiro dos clubes. “Contratam um plantel de jogadores sem saber se conseguirão suportar a folha. Isso é irresponsabilidade de gestão”, aponta. Os 657 processos protocolados no período significam que uma ação dessa natureza é aberta a cada 2,5 dias no Estado. “É um absurdo”, completa o advogado, sinalizando que o número é considerado muito alto pelos especialistas.

A reportagem tentou contato com o Sport Club Internacional, de Porto Alegre, do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e do Guarany Futebol Clube, de Bagé, clubes que estão na lista dos mais acionados no TRT-4. Os dirigentes, entretanto, não retornaram as ligações ou optaram por não se pronunciar.

Apesar de predominância gaúcha entre os clubes mais acionados, também há registros contra clubes de outros estados. A Associação Chapecoense de Futebol, de Chapecó (SC), é o clube de fora do RS mais acionado no período. Foram 11 ações contra o clube catarinense. Além disso, clubes de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Rio Grande do Norte, Goiás, Paraíba, Tocantins, Pernambuco, Pará, Rondônia, Mato Grosso do Sul e até o Futebol Clube do Porto, de Portugal, foram processados por atletas no Rio Grande do Sul.

A realidade enfrentada pelo jogador de futebol no país e o que motiva os processos contra os clubes de futebol

Os dados disponibilizados pelo TRT-4, com os números de processos em que cada clube foi envolvido podem ser conferidos na íntegra aqui. Nos últimos cinco anos, as ações protocoladas no TRT-4 contra os clubes apresentaram 3.748 motivações.

Foram 159 tipos diferentes de motivações mapeados a partir de relatório também disponibilizado pelo TRT-4 (aqui) onde é possível visualizar as causas de cada processo. As duas mais comuns fazem referência aos artigos nº 477 e nº 467 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Juntos, os dois artigos mais citados somam 589 pedidos nas ações.

O artigo de número 477 se refere ao não pagamento da multa rescisória, o não cumprimento de prazo para realizar o pagamento dela, ou ainda quando o clube deixa de pagar as verbas rescisórias corretamente. Segundo o advogado Flores, quando o atleta aciona a Justiça para o acerto de valores, o pedido corresponde a um mês de salário do atleta.

Da mesma forma, o artigo número 467 também corresponde a uma impontualidade no pagamento das verbas rescisórias, como explica Carlos Flores. “Na primeira oportunidade de comparecimento na Justiça do Trabalho, quando se faz esse pedido, o clube deve pagar a parte indiscutível das verbas trabalhistas. Se o clube não se dispor a fazer isso, é acrescida uma multa de 50% sobre o montante”, pontua.

Quando a Justiça se torna o último recurso, mais de uma vez

Alfredo (nome fictício), 38 anos, é ex-zagueiro de diversos clubes de futebol no Brasil e no exterior, com destaque para o Rio Grande do Sul, onde foi campeão estadual em 2017 pelo Esporte Clube Novo Hamburgo. Ele é autor de algumas das ações protocoladas no TRT-4, nos últimos cinco anos.

Em solo gaúcho, além do Novo Hamburgo, Alfredo teve passagens por sete clubes de futebol. Destes, somente o Passo Fundo, o São José e o Ypiranga teriam cumprido com todos os valores acordados, afirma o ex-jogador. Nos demais, precisou do auxílio da Justiça para receber.

Estádio Colosso da Lagoa, em Erechim, onde recebe seus jogos o Ypiranga, um dos únicos clubes que cumpriu as cláusulas contratuais com Alfredo. (Foto: Kevin Sganzerla)

Entre os clubes acionados judicialmente por Alfredo, dois estão entre os 10 que mais foram envolvidos em ações trabalhistas no período, segundo o relatório da LAI obtido pela reportagem. São eles Novo Hamburgo (24 ações), e Cruzeiro (16).

Em Lajeado, denúncia de cheques sem fundo

Em 2014, Alfredo disputou a Série D do Campeonato Brasileiro defendendo a camisa do Clube Esportivo Lajeadense. O jogador conta que após o término da competição, o clube encaminhou ao atleta quatro cheques, de valores não revelados, pelos meses em que havia trabalhado. Ele disse que o pagamento, à época, estava em atraso, já que o campeonato tinha chegado ao fim. Ao depositar os cheques, contou que não tinham fundo. No mesmo ano, o ex-jogador ingressou na Justiça. O caso, apesar de ganho, ainda não teve desfecho. “Tenho causa ganha. Creio que até o final deste ano ou, quem sabe, em 2021, eu receba”, estima.

A reportagem também tentou contato com os dirigentes do Clube Esportivo Lajeadense, para obter a versão do clube sobre o caso, mas não obteve retorno.

Lajeadense, clube acionado na Justiça por Alfredo, manda seus jogos na Arena Alviazul. (Foto: Kevin Sganzerla)

Em Novo Hamburgo, do título estadual à Justiça

Outro momento em que Alfredo diz ter precisado ingressar na Justiça foi no seu retorno ao Novo Hamburgo, em 2018, um ano após ter sido campeão gaúcho com o clube. Sob contrato até outubro daquele ano, ele foi afastado por opção do novo treinador, apresentado após a campanha ruim no campeonato estadual, e foi comunicado que não seria mais utilizado pelo clube. Diante da situação, ele explica que foi lhe proposto um acerto salarial, que não chegava nem a metade do valor que ele tinha para receber até o final do seu contrato. O acordo não foi aceito e o jogador disse que foi atrás dos seus direitos na Justiça.

Faz um ano e meio que, por decisão da Justiça, o Novo Hamburgo paga Alfredo, que conta que ainda falta mais um ano para que toda a dívida seja quitada. O valor, também não revelado, se transformou em quatro vezes mais em relação ao que ele tinha direito pelo contrato com o clube. “O clube só perde com essas situações, na medida que a dívida se estende para os próximos gestores, que muitas vezes assumem o cargo com altos prejuízos deixados pela diretoria anterior”, opina.

O Esporte Clube Novo Hamburgo foi procurado pela reportagem, mas não quis comentar o caso.

O ex-jogador descreve que havia feito planejamento financeiro até o final de outubro, período que em que encerraria o seu contrato com o Novo Hamburgo. Os pagamentos caíram na conta somente até março, mês em que diz ter recebido metade do valor acordado. A partir de abril não houve mais nenhum pagamento por parte do time. “Fiquei praticamente um ano sem receber. Se eu não tivesse uma vida programada e guardado dinheiro, como seriam esses meses sem salário?”, questiona.

Alfredo conta que para quem atua em clubes do interior, a situação é mais complicada em relação ao salário, já que, normalmente, são times que jogam apenas o Campeonato Gaúcho, com poucas exceções. Nesses casos, ele descreve que é firmado contrato de quatro a cinco meses, no qual o atleta trabalha dois e recebe apenas um mês de serviço prestado. “Começamos a preparação para o estadual em dezembro e somos pagos no final de janeiro e assim sucessivamente”, declara.

Estádio do Vale, onde manda seus jogos o Esporte Clube Novo Hamburgo, um dos clubes mais acionados na Justiça do Estado. (Foto: Kevin Sganzerla)

A duração do clube no campeonato vai depender da sua campanha. Segundo o ex-atleta, que se retirou dos gramados em 2019, ao término da competição o clube busca fazer acordos com os jogadores em relação ao que já foi trabalhado e ao que o atleta ainda tem para receber. Segundo Alfredo, isso é uma prática comum dos clubes a fim de que se diminuam os custos com os jogadores. “Você vai para os clubes com contrato de quatro a cinco meses e recebe três ou quatro. Quando recebe tudo, é uma glória”, destaca.

Em Caxias do Sul, mais cheques com problemas

O SER Caxias, clube da Serra gaúcha, também proporcionou à Alfredo situação semelhante às que viveu em Lajeado e Novo Hamburgo. À época, a competição era a Série C do Campeonato Brasileiro. Quando o campeonato chegou ao fim, o ex-jogador reclama que tinha um mês e mais alguns dias até o final do contrato para receber. O pagamento teria sido enviado pelo clube em forma de dois cheques, que também apresentaram problemas na compensação. O caso foi resolvido na Justiça em 2017 e hoje o Caxias não deve mais nada para o ex-zagueiro.

SER Caxias, outro clube acionado por Alfredo, manda suas partidas no Estádio Centenário. (Foto: Kevin Sganzerla)

Casos semelhantes e mesma conclusão

Anselmo (nome fictício), de 37 anos, é lateral-direito e conta com passagens por inúmeros clubes do interior gaúcho. Ele conta que, em duas ocasiões recentes, precisou entrar na Justiça para ter garantidos seus direitos trabalhistas.

Em 2017, o atleta colocou na Justiça o Esporte Clube São José, conhecido como Zequinha. O experiente jogador contava com mais um ano de contrato junto ao clube, porém diz ter sido foi dispensado pela equipe porto-alegrense. Quando liberado, o clube não teria pago o restante do montante acordado. “Coloquei na Justiça cobrando o contrato ou, ao menos, um acordo, mas não teve nada disso”, pondera.

O jogador relata que, posteriormente, quando o presidente da nova gestão o chamou para voltar ao clube, não tinha conhecimento do processo. “Ele me chamou um ano depois para retornar, e ele achou que eu havia pedido para sair. O presidente nem sabia que eu estava cobrando um ano de contrato. Quando ficou sabendo, ele conversou com a advogada e me pagou. Fizemos um acordo e ele fez o pagamento”, detalha.

Em 2019, Anselmo disse ter entrado na Justiça contra o Avenida, de Santa Cruz do Sul, e ainda aguarda a audiência do caso. A situação foi muito semelhante. Ao término do ano, o Avenida havia sido eliminado da “Copinha” (competição estadual do segundo semestre) e dispensou o elenco ao final da temporada. No entanto, o contrato do experiente atleta se estendia até julho. “Eram oito ou nove meses pela frente, e o clube também não pagou. O presidente disse que não ia pagar. Dispensou os atletas e disse que para ele estava tudo certo e que não pagaria o restante dos meses. Então coloquei na Justiça o clube”, explica o jogador.

Estádio dos Eucaliptos, em Santa Cruz, casa do Avenida, clube acionado na Justiça por Ancelmo. (Foto: Kevin Sganzerla)

Tais situações, segundo o atleta, causam instabilidade financeira em sua família. “A gente se programa e eles acabam decidindo por mandar os atletas embora e simplesmente não pagam. Um absurdo. Simplesmente mandam os atletas procurar os seus direitos”, salienta.

O outro lado: "parece que existe a indústria da ação trabalhista"

Dirceu Castro foi eleito presidente do Cruzeiro para o biênio 2020/2021. (Foto: Raquel Lopes/O Repórter)

O presidente do Esporte Clube Cruzeiro, de Cachoeirinha, Dirceu Castro, cita a ganância por parte dos jogadores como um dos motivos que os levam a ingressar com as ações trabalhistas. “O jogador sente que não tem mais condição de ganhar dinheiro no futebol e recorre ao penúltimo ou ao último contrato para entrar com uma ação. Ele sabe que ganhará alguma coisa”, aponta.

“Por incrível que pareça, existe a indústria da ação trabalhista”, afirma Dirceu Castro. O Cruzeiro, fundado em 1913 em Porto Alegre, hoje disputa a Divisão de Acesso do futebol gaúcho e é, desde 2016, um dos clubes mais acionados no Tribunal do Trabalho, com 16 ações.

Presidente do Cruzeiro de Cachoeirinha explica os motivos que colocam o clube entre os mais acionados na Justiça do Estado. (Foto: Kevin Sganzerla)

Castro menciona que um jogador, de nome não revelado por ele, ingressou na Justiça contra o Cruzeiro em 2019, após ter recebido tudo o que estava acordado entre as partes, por entender que o clube deveria lhe pagar um “bicho”, que é uma premiação extra, não obrigatória, paga, normalmente, em caso de alguma vitória importante para a instituição de futebol. “Nós temos ações que são ridículas. Quando lemos, ficamos enlouquecidos pela falta de escrúpulo deles em pedir mais dinheiro”, classifica. Segundo o presidente do clube, o atleta em questão ganhou a ação.

“Já ouvi de alguns jogadores que o dinheiro não é do presidente, tampouco do vice, então quanto mais eles tirarem, melhor”, revela Dirceu Castro.

Em contrapartida, Castro também reconhece a parcela de culpa do clube, que muitas vezes não paga o salário em dia. Contudo, ele critica a postura do atleta, que não propõe uma negociação e vai direto para a Justiça, e dos advogados, que também não orientam o jogador a tentar uma conversa com o clube antes do ingresso da ação. “Tem muitos advogados aqui no RS que nós sabemos que são os legítimos “urubus” de jogador de futebol. Quando eles são procurados pelos jogadores, ao invés de falarem para eles fazerem um acordo com o clube e que isso é o melhor para todos, não, entram na Justiça reivindicando um monte de coisa”, declara.

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.