Beta Geral: Quando a narrativa de superação pode prejudicar o jornalismo

Anderson Guerreiro
Redação Beta
Published in
7 min readDec 17, 2018
(Imagem: Fancycreve/Unsplash)

S e há 27 anos Gil Gomes se tornava um precursor dos programas policiais da TV brasileira, com o Aqui Agora, no SBT, hoje percebemos que esse formato se reproduziu e está presente, de maneira mais ou menos enfática, em diversas redações do país, dos mais variados tipos de veículos. O apreço pela publicação da violência alimenta uma audiência que se amedronta e vibra ao mesmo tempo, a depender das vítimas. O consumo de conteúdos que, como se diz, jorram sangue pela TV e pelas ondas do rádio, já é um hábito enraizado na cultura informativa brasileira a ponto de programas diários explorarem a temática à exaustão.

Além disso, a avalanche informativa que inunda a internet expõe ao cidadão um cenário desolador, mas aí não apenas na segurança. Ao se deparar com uma classe política que prima pela sua sobrevivência em detrimento da sociedade, ao saber que uma obra inacabada já deveria estar pronta há dez anos e ao saber que novos reajustes incidirão sobre serviços que utiliza, um cenário de desolação se impõe. E é isso que estará estampado nos jornais, nos programas de rádio e TV e na internet, de maneira majoritária. Para a mídia tradicional, a notícia a ser dada é essa. Na Beta Redação, a liberdade para dar um passo adiante existe. Sobre a forma como esta possibilidade é usada é que falaremos a partir de agora.

Que o jornalismo precisa ouvir “os dois lados” todos sabemos. Mesmo nas disciplinas introdutórias do curso essa regra se coloca. A dita imparcialidade também é algo que tentamos buscar nos primeiros passos do curso e do fazer jornalístico. Logo percebemos que ela está muito mais em teorias objetivas do século passado do que nas subjetividades de quem realmente faz o jornalismo existir. Na Beta, temos espaço para exercitar a prática jornalística na sua mais completa finalidade: informar.

Na editoria de Geral, nos deparamos com a necessidade de pautar aquilo que pode ser tudo e, a depender da abordagem, nada. Não é raro ouvir a piada de que geral é tudo o que não está nas outras editorias. Ela seria, portanto, um “cantão” onde cabe tudo o que os outros não quiseram. Não é verdade. Na Geral talvez caibam as pautas mais humanas, os assuntos que mais mexem na vida das pessoas de maneira direta: do transporte público ao buraco da rua, da vacinação à segurança pública.

Neste semestre, uma infinidade de assuntos foram pautados pelos cerca de 50 alunos das três turmas da editoria de Geral e não é possível estabelecer uma uniformidade dos conteúdos publicados. Um aspecto, porém, me chama atenção não apenas nesta editoria, mas nas demais e além, na mídia tradicional: o jornalismo de superação. Para mim, ele se coloca como um contraponto ao jornalismo das negatividades e policialesco comum aos grandes veículos na tentativa de se mostrar que há boas histórias a serem contadas.

Ao identificarmos ou procurarmos uma pauta, é comum que uma linda história de vida tenha cheiro de uma boa matéria. Tudo o que foge do comum poderia ser uma matéria. No entanto, as escolhas que fazemos para a construção do conteúdo sobre aquela linda história dirão muito sobre o tipo de jornalismo que estamos produzindo e que estamos dispostos a fazer. Na Beta Geral, algumas matérias pecam pelo peso excessivo de uma narrativa de superação que, em alguns momentos, se colide com princípios básicos da atividade jornalística informativa. A presença de aspectos eminentemente positivos e enfeitados, mesclados a uma linguagem que se coloca a serviço de um semi-endeusamento, colaboram, a meu ver, para que uma matéria deixe à margem o princípio da informação, que deve mover o jornalismo.

Não se trata de querer encontrar um problema ou um contraponto que invalide determinados comentários ou vivências, mas, sim, localizar brechas que permitam a uma narrativa entregar ao leitor mais que um ponto de vista, mais que uma história, que tragam contextualizações e, ao final, mais que uma sensação uníssona sobre aquela matéria. O jornalismo deve se permitir entregar ao leitor/ouvinte/telespectador mais que uma interpretação possível ou, ao menos, a possibilidade de pensar aquele conteúdo para além do que estritamente está sendo narrado como ponto principal da matéria.

Na reportagem A rotina de uma escola especial, por exemplo, ambientada em uma escola que só atende pessoas com deficiência em Porto Alegre, a narrativa trata de construir um espaço com adversidades mínimas, com problemas não abordados e que são inerentes a praticamente todos os espaços educacionais. O contato direto com as fontes, cara a cara, como quase sempre fazemos na universidade, por vezes nos coloca em um lugar desconfortável para escrever uma posterior matéria. Ora, se eu visualizei um belíssimo trabalho em uma escola que atende pessoas com as mais variadas deficiências, por que minha matéria deveria omitir do público a mesma sensação que tive visitando a escola? Pois exatamente não deve, mas também não deve renegar informações como onde moram os alunos, suas realidades sociais e um contexto mais amplo no qual essa escola está inserida.

Não há dúvida sobre a importância de se retratar uma escola pública que atende pessoas com deficiência, mas quantas são em Porto Alegre? E no Rio Grande do Sul? As dificuldades financeiras, de pessoal e de estrutura enfrentadas pelas escolas regulares também estão presentes nas especiais? Pontos como esses poderiam dar à narrativa um tom mais informativo em meio às descrições sobre a rotina daquela escola. O fato de o repórter ter acompanhado parte das atividades da Recanto da Alegria em uma manhã fez com que a matéria tivesse essa ambientação como ponto central e isso é positivo, mas não basta.

Já na matéria Voluntariado repleto de conquistas, são exaltadas as milionárias doações feitas pela Oktoberfest de Igrejinha a entidades e órgãos do Vale do Paranhana. O Hospital Bom Pastor, da própria Igrejinha, é um dos maiores beneficiados. Num contexto de atrasos sistemáticos nos repasses de verbas a hospitais filantrópicos e santas casas pelo Governo do Estado, é provável que essas doações deem uma sobrevida à instituição. É exatamente sobre esse ponto que a matéria poderia ter um ganho informativo significativo. Qual seria a realidade deste hospital não fossem as doações da Oktoberfest? Na comparação com outros hospitais de mesmo porte, é possível dimensionar o status de elevação que o Bom Pastor tem com esses repasses?

A professora Cybeli Moraes, uma das editoras da Beta Geral na Unisinos São Leopoldo, entende que estão poucos presentes, na mídia tradicional, as pautas pró-ativas, educacionais e com viés solidário e que, também por isso, os alunos sentem a necessidade de “escoar essa produção”, mas não é por isso, na sua avaliação, que algumas matérias se apresentam com um caráter eminentemente positivo. “Esse viés positivo tem muito a ver, também, com uma pauta que deixa de problematizar as questões. É um outro problema que se trata de uma angulação não tão saudável do ponto de vista jornalístico, mas também é reflexo de uma imprensa que não problematiza. Acabamos fazendo pautas que deixam de ter um viés mais problematizador em função também do que vemos a imprensa realizar”, comenta Cybeli.

O professor Micael Behs destaca que há, na Beta Geral, espaço para uma diversidade de temas a serem abordados, inclusive histórias de superação que não estão no foco da mídia tradicional. Pontua que as problematizações do texto jornalístico são ponto central da atividade. “Sempre incentivamos o contraponto, o olhar para os diferentes ângulos e pontos de vistas. Todo texto é uma prática tentativa, que pode cumprir com maior ou menor precisão essa exigência. Isso se reflete, como em qualquer veículo, também nas matérias produzidas no contexto da Beta”, destaca o professor que é editor da Beta Geral.

Outras matérias publicadas na Beta Geral deste semestre, das três turmas, também poderiam se encaixar, na minha visão, neste jornalismo que procura destacar o viés positivo das histórias em detrimento de abordagens que pudessem, talvez, diminuir a beleza da pauta. “ A gente acaba colocando três fontes e, às vezes, não para pra pensar se essas fontes cobrem e deixam transparecer um viés problematizante”, pontua a professora Cybeli. Contudo, a maioria dos leitores que opinou sobre as matérias de Geral do semestre aprovaram os conteúdos. Cada aluno precisou selecionar uma pessoa para ler e comentários matérias da Beta.

É possível que ler a Beta tenha sido um exercício válido para sair da avalanche de informações negativas às quais fiz referência no começo deste texto. Ler que um padre de Novo Hamburgo ajuda as pessoas com plantas e chás, que um lar de idosos em São Luiz Gonzaga sobrevive há 75 anos, que em Taquara a decoração de Natal foi toda feita por voluntários a partir de materiais recicláveis e que é possível voltar a estudar mesmo depois de anos fora da escola acaba sendo um alento em meio às negatividades que chegam até nós diariamente mesmo que não procuremos muito. O ponto a se trabalhar é exatamente estabelecer conexões dessas pautas com questões mais amplas. “Falta conectar esse factual com uma realidade maior, com a processualidade, a questão global da informação. Mas acho que isso não se deve somente à Beta Redação. É um problema que estamos sofrendo no noticiário informativo”, finaliza Cybeli.

O papel do jornalista neste cenário precisa ser o da busca pela informação e pela oferta ao leitor de algo além. É sabido, porém, que muitas pautas acabam não tendo determinadas apurações e contextualizações pelo tempo exíguo existente, em muitos casos, entre a definição de como a matéria será feita e a sua entrega. À Beta Redação cabe, nos próximos semestres, talvez repensar, pelo menos em alguns períodos, este modelo frenético de entregas e, a partir disso, exercitar a prática jornalística num campo mais complexo, que inclui, na minha avaliação, o olhar malicioso e desconfiado sobre as fontes, fatos, lugares e falas. Sem dúvida, o veículo Beta teria ganho por se diferenciar da mídia tradicional não apenas no aspecto laboratorial, que lhe é característico, mas nas abordagens e construções narrativas que irão dar preferência a conteúdos diversificados e diferenciados e não apenas ao número de matérias publicadas e um fluxo de informação no meio digital que, em tese, precisaria ser cumprido. Aos colegas, fica a missão de problematizar a pauta nas reuniões, pensar em diferentes vieses de abordagem, jogar um olhar desconfiado sobre determinados aspectos e sempre ampliar o leque de fontes para além do óbvio, ainda que seja mais complicado, mais trabalhoso e mais difícil.

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