Nós contra eles: faz sentido duvidarmos dos direitos humanos?

No dia do aniversário de 71 anos da Declaração Universal, a Beta Redação recupera em reportagem especial os motivos que nos levaram a escrevê-la

Gustavo Bauer
Redação Beta
12 min readDec 4, 2019

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Com André Cardoso, Arthur Menezes, Fabrício Santos, Isabelle Castro, Letícia Guintani da Costa, Mateus Friedrich, Nagane Frey e Tamires Trescastro.

Direitos Humanos ainda dividem opiniões na sociedade contemporânea. (Ilustração: Dimitri Svetsikas)

Pense em uma atrocidade. Em algo realmente horrível, que dê um mal estar só de imaginar. Faça isso por alguns segundos, talvez de olhos fechados, para depois voltar a este texto. Sua imaginação deve ter sido capaz de criar algo realmente negativo. Mas, muito maior do que nossa habilidade para criar algo com o pensamento, é a capacidade humana de realizar atrocidades do tamanho em que consegue imaginar. Como todos sabemos, a barbárie não é exclusiva ao campo do imaginário. Ela se faz presente dia após dia e, por meio da comunicação, a sociedade passou a tomar conhecimento de todo o horror que o homem é capaz de produzir.

Foi justamente nesse contexto, de compreensão da capacidade de fazer o mal às pessoas (e, sobretudo, às pessoas organizadas em nações), que surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Em 10 de dezembro de 1948, portanto três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial — e em boa medida em resposta a ela — a DUDH foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Hoje, pouco mais de 70 anos após esse movimento por um ideal comum, os direitos humanos mínimos se veem atacados por muitas pessoas e defendidos por outras tantas, movendo discursos acalorados nas redes sociais. Com o tema cooptado por projetos político-partidários, eles tomam rumos distorcidos, sendo pautados frequentemente com base na desinformação e nas notícias falsas.

Curiosamente, os detratores dos direitos humanos assumem a premissa de que todos são iguais - já que não é incomum vermos alguém que se diz frontalmente contra a Declaração, iniciar o seu discurso partindo da igualdade entre as pessoas para contrapor às políticas públicas, por exemplo, que visam à igualdade de oportunidades ou à proteção dos grupos vulneráveis. Para ir além de seus detratores e/ou entusiastas, que porventura também banalizam discursos, é preciso que se recupere o conceito.

Primeiramente é importante entender a Declaração Universal dos Direitos Humanos à luz do contexto histórico em que foi concebida: tratou-se de um documento redigido pela mão humana, no período pós-guerra, sendo produto de vontades políticas e embates de ideias em um cenário de sucessivas devastações. Ou seja, não há porque vê-la sob uma aura sagrada e intocável, mas não se pode esquecer o que a motivou. Por isso a DUDH continua sendo absolutamente crucial na forma como vemos o mundo nas mais diversas culturas, da metade do século passado para cá, pois ela tornou-se fundamental para a manutenção da paz no mundo.

A Organização das Nações Unidas proclamou a declaração, nas próprias palavras do texto aprovado, “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição”.

Ou seja, a DUDH é uma indicação, não uma imposição. Logo, o documento não se trata de um conjunto de leis, mas de um norte para que também estas sejam instituídas. As balizas propostas no documento se desdobram em 30 artigos. São estabelecidas definições como: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. O texto completo da declaração pode ser conferido aqui.

A DUDH procura estabelecer o mínimo, o básico. Mas, mais de sete décadas após esta indicação, o que se pode verificar em países como o Brasil é um cenário ainda distante da busca pelo cumprimento dessas propostas. Há uma parcela considerável da sociedade brasileira que contesta os direitos humanos, sendo corroborada por dados que materializam as denúncias relacionadas aos casos de violação no país. Quando nos debruçamos sobre as transgressões aos mínimos direitos humanos, vemos que há alvos mais frequentes. Por isso o mapeamento da violência é feito com base em grupos específicos que sofrem agressões também específicas.

A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos publica um Balanço Anual do Disque Direitos Humanos apenas dos casos denunciados, o que já deixa de refletir a totalidade da violência real. As denúncias são agrupadas por grupo de violação. São eles: Criança e Adolescente; Juventude; Pessoa Idosa; Pessoa com Deficiência; População LGBT; Igualdade Racial e Comunidades tradicionais; entre outros.

Quem é contra as políticas afirmativas relacionadas à cor da pele e à etnia pode dizer que negros e brancos, afinal, têm as mesmas condições de passar numa prova. Essa frase pode estar correta sob certo ponto de vista, pois a etnia não define, de fato, a capacidade cognitiva de uma pessoa. No entanto, a afirmação também está incorreta se assumirmos o fato de que brancos e negros não tiveram as mesmas oportunidades quando se preparam para as provas, devido a conformação estrutural da sociedade, historicamente carregada de preconceitos e injustiças que se expressam em números: a violência contra os negros é, sim, maior no Brasil.

De acordo com o Atlas da Violência, entre 2016 e 2017, o número de pessoas assassinadas com armas de fogo cresceu 6,8%. O ano de 2017 bateu a marca inédita de 65.602 mil pessoas sendo mortas, e 72,4% (47.510 mil) por tiros. As vítimas principais desta violência são da população jovem, com 59,1% do total de óbitos de homens entre 15 a 19 anos de idade.

Este número já é calculado sobre um recorte populacional que ajuda a excluir a ideia de que "morrem mais negros pois eles são mais numerosos no país". A taxa de homicídios de negros (pretos e pardos) por grupo de 100 mil habitantes foi de 43,1, ao passo que a de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, no Brasil, a população negra é vítima de um extermínio, e sua juventude é o maior alvo de violência.

Mas, voltando ao caso dos argumentos contrários às políticas afirmativas, poderíamos referir as dúvidas quanto à motivação, por exemplo, pois “alguma coisa eles fizeram para merecer isso, não?”. Então, vamos seguir por um recorte que escancara um dos motivadores deste extermínio.

Não tolerar as religiões de matriz africana

A rigor, não há motivo para agredir a manifestação de fé de outra pessoa se não a exclusiva incapacidade de respeitar a alteridade, certo? Mas esta não foi a premissa seguida pelo regime nazista, por exemplo, que hoje é visto de maneira simplificada como a "expressão do grande mal de um grupo específico de ditadores".

O nazismo, esse bicho-papão comumente eleito como o que há de mais execrável entre os regimes, está calcado na visão de que o outro (no caso, o povo judeu) não merece o mínimo. Ou seja, o nazismo foi resultado de mobilizações políticas apoiadas, na época, por parte de todos os estratos da sociedade alemã, entre ricos e pobres, intelectuais e artistas. Aproximando aquelas visões distorcidas da realidade brasileira, seria o equivalente a dizer que não importa, ou até que seria certo, atacar um terreiro ou espancar um pai de santo por ele não acreditar no Deus da maioria da população, ou não seguir os rituais que a maioria segue.

Com esse pano de fundo, a intolerância religiosa no Brasil aumenta a cada ano, principalmente contra as chamadas religiões de matriz africana. São centenas de casos, inclusive homicídios, em quase todos os estados do Brasil. Levantamento feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) mostra que o número de denúncias de discriminação religiosa contra terreiros e adeptos de religiões de matriz africana como umbanda e candomblé (as que tem maior número de adeptos no país) aumentou 5,5% em 2018 em relação a 2017 no Brasil.

Outro fato: o relatório Direitos Humanos no Brasil em 2019, que foi apresentado em setembro deste ano na 42ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça, aponta de forma detalhada números e exemplos que mostram a falta de compromisso do atual governo brasileiro com os direitos humanos, que não vem cumprindo orientações dos organismos internacionais com os quais tem acordos. O objetivo do documento evidencia “o quadro extremamente crítico dos direitos humanos no Brasil para que, ao lado de autoridades do sistema ONU e da comunidade das nações possamos encontrar soluções a esses desafios”.

Marcos Daniel Carrasquel, advogado venezuelano, narra a sua vida e materializa um caso flagrante de como o desrespeito aos direitos humanos pode mudar dramaticamente a vida de uma pessoa. No país vizinho, Marcos era advogado e fez carreira trabalhando para o governo.

“No início, eu trabalhava para o presidente Chavéz como fiscal de renda para uma ‘alcaldía’, que é um organismo do Estado como a prefeitura daqui. Cada município tem uma. Depois, fui promovido como assessor jurídico da Missão Vivenda, que é um programa na Venezuela parecido com o ‘Minha Casa, Minha Vida’. É um programa de substituição de uma casa em estado ruim por uma casa boa. Tive que sair do país após um caso de corrupção que presenciei e tentei denunciar. Se tivesse ficado lá, estaria morto. Quem enfrentava a pessoa que tentei enfrentar não contava com uma boa sorte. Ele mandava matar”, conta com pesar.

Em meio a uma situação limite como essa, Marcos se viu na necessidade de fugir do país. Foi uma mudança de vida que lhe fez perder muito, mais foi o preço pago para manter-se vivo. “Minha vida na Venezuela era muito confortável, tinha dinheiro no banco, uma firma comercial. Eu trabalhava para o governo, mas também para particulares. Fui um advogado de muito sucesso”, orgulha-se.

A boa vida foi deixada quando “o presidente Maduro ficou sabendo da situação e me chamou, e disse para assumir toda a responsabilidade. Falei que não, porque não me envolvi no negócio. Eles brigaram comigo e tive que ir embora. Uma pessoa me falou que o governador já havia pago para me assassinar. Recomendaram que eu saísse do país. Contei tudo à Polícia Federal e pedi para o Governo da Venezuela uma documentação que comprovasse que a gente não tem ficha na Venezuela”, narra Marcos como se contasse um filme policial.

Carrasquel escolheu o Brasil como destino por uma questão geográfica. O país, que faz fronteira com a Venezuela, recebeu muitos dos refugiados em meio à crise humanitária que se instalou no país. Por isso, noticiaram-se na imprensa recepções das mais diversas aos venezuelanos. “Quando cheguei ao Brasil, saí fugido da Venezuela. Vim para o Brasil porque era o país que ficava mais perto da minha cidade. A gente morava no Estado Bolívar e ele faz divisa com o Brasil. A verdade é que o acolhimento aqui no país foi, e segue sendo, o melhor. Estou sendo muito abençoado pelo povo do Brasil”, garante, colocando-se entre os que foram bem recebidos pelo país.

Com largo histórico de receptividade, o Brasil contou com o apoio da ONU, entre outros órgãos internacionais, para que pudesse acomodar de maneira digna as pessoas que aqui chegavam. Diferentemente de outros imigrantes, o caso dos venezuelanos trouxe particularidades, pois eles chegaram em grande número. Ainda que essa forma tenha representado desafios, pode-se dizer que o Brasil conseguiu acolher os seus vizinhos.

“Eu falo todo tempo com o pessoal do estrangeiro, Peru, Bolívia, Equador… Falo com imigrantes venezuelanos que estão em todas as partes do mundo e a verdade é que o Brasil está fazendo história, em conjunto com a ONU. O trabalho está sendo feito com muito sucesso. Temos muito a agradecer ao Exército, porque quando morávamos em Roraima, eram eles que organizavam tudo, desde a nossa alimentação. Não temos como pagar nesta nem em outra vida tudo o que foi feito por todos nós. A ONU, em conjunto com o Governo Federal [na época, chefiado por Michel Temer], estava fazendo um trabalho de “interiorização” dos venezuelanos. Eles estavam sendo levados para outros estados para descongestionar Roraima, porque estava lotado com muitos venezuelanos na rua”, recorda Marcos.

Marcos Carrasquel saiu fugido da Venezuela e elogia o trabalho brasileiro na recepção e auxílio aos refugiados. (Foto: Mescla/Divulgação).

Se, por um lado, a partida de sua terra natal se deu pela violência e pela negação aos direitos humanos, foi justamente pela valorização dos mesmos princípios que se deu o acolhimento realizado em nossas terras. “O povo de Esteio nos recebeu com roupas, calçados. A Igreja Batista do Brasil fez a primeira janta para todos nós, nos deram tudo. Ali começou uma nova história para todos nós, porque conseguimos dormir depois de tanto tempo em uma cama digna, até com ar condicionado… Estávamos com muita comida. A população de Esteio chegava na frente do abrigo com comida, roupa, tudo. Esta turma não tem nada para falar contra o povo do Brasil, ao contrário, só tem a agradecer”, afirma.

Depois de garantir o básico, a Prefeitura, através da Secretaria de Desenvolvimento Social e Emprego, começou a auxiliar na busca de trabalho para os venezuelanos. A maioria dos beneficiados pelo projeto conseguiu trabalhar e ter o seu próprio sustento. Outros conseguiram, a partir de um programa da ONU, reunir as suas famílias. “A gente hoje tem tudo, já estou incorporado à sociedade de Dois Irmãos. Ano que vem, na segunda semana de janeiro, vou trazer minha mãe. Não tenho nada a falar do povo do Brasil. Aqui fui muito abençoado. Nunca sofri nenhum tipo de preconceito, ao contrário, as pessoas ficam envolvidas com a nossa história e até choram ao nos ouvir”, comemora, emocionado.

Apesar da aparente acolhida da população e das forças armadas aos refugiados, ocorrida durante o ano de 2017, o primeiro anúncio do presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de 2018 foi comunicar a ONU a saída do Brasil do Pacto Global para a Migração, acordo que o país tinha aderido no mês anterior à posse. No Twitter, o líder do Executivo afirmou que a "imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a soberania de cada país", ecoando falas de outros líderes como o presidente dos EUA, Donald Trump e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

O Pacto Global para migração segura, ordenada e regular assegura que o migrante estaria mais protegido de situações como o trabalho escravo, o tráfico internacional de pessoas e a violação de direitos humanos em países signatários. O documento, assim como a DUDH, possui um caráter recomendatório, de boas práticas a serem seguidas voluntariamente pelos países, que podem criar suas próprias políticas. Curiosamente, o Pacto ganhou impulso após a crise migratória que marcou o maior influxo de refugiados e migrantes no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

Se você chegou até aqui e está se perguntando sobre algumas coisas que lê nas redes sociais ou costuma escutar nos almoços de família, e que parecem desrespeitar de alguma forma os direitos de outro ser humano, continue lendo as próximas matérias deste especial.

Em uma pesquisa nas redes sociais, coletamos as cinco frases que mais lemos ou compartilhamos de forma generalizada no cotidiano do Facebook, do Twitter e do Whatsapp: “Bandido bom é bandido morto”, “Só vagabundo é torturado”, “Refugiados só vem roubar nosso emprego”, “Chuta que é macumba” e “Não sou preconceituoso, mas…”. Convidamos você a acompanhar cada uma das matérias e refletir sobre cada um destes assuntos.

Quer indicar esta matéria para alguém ouvir? Acompanhe o podcast sobre Direitos Humanos e discurso de ódio. Nele você encontrará dados sobre o tema no país, além de falas de vítimas e especialistas. Confira:

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