Banu Haqim: A subestimada influência islâmica nas raízes do Brasil.

Trazendo os Clãs do V5 para um cenário nacional.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
8 min readMay 29, 2020

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Por Alex Pina & Porakê Martins

Imagem ilustrativa de um Ancião Banu Haqim brasileiro, segundo nossa perspectiva.

Num primeiro momento, os Filhos de Haqim podem parecer deslocados em maio a imagem descontraída, paradisíaca e tropical que o Brasil tenta projetar para o mundo, mas o fato é que há uma longa, pouco conhecida e quase sempre subestimada relação entre a história de nosso país e a cultura islâmica, codificada para o universo de Vampiro A Máscara através do antigo Clã Assamita, renomado nesta mais recente edição do jogo como Banu Haqim, um nome bem mais apropriado em nossa opinião, que reflete a preocupação do V5 em adaptar de forma mais fidedigna e respeitosa as culturas de fora do eixo EUA-Europa.

O nome anterior do clã era uma adaptação do termo persa hassassin, que designava uma seita iraniana real tão infame que deu origem a palavra “assassino” em português. O novo nome é uma referencia mais direta a própria Lore do clã e nos parece muito mais verossímil como algo que o Clã usaria para se referir a si mesmos. Agora, mais do que nunca, pela Lore oficial de Vampiro, Assamita foi apenas uma forma preconceituosa como os Membros ocidentais ignorantes costumavam se referir ao Clã. Porém, agora, com a incorporação do Clã pela Camarilla, os Banu Haqim finalmente passam a ser amplamente reconhecidos pelo nome pelo qual sempre se referiram a si mesmos.

Na Quinta Edição de Vampiro: A Máscara, essa entrada dos Banu Haqim na Camarilla é descrita nos seguintes termos:

“O feiticeiro conhecido como Ur-Shulgi, de volta a Alamut, iniciou um expurgo de todos os Filhos de Haqim que sua mente desumana considerava indignos. Esse julgamento se estendeu a qualquer um que abandonasse Haqim em favor de Allah. Alguns dizem que em sua recusa em negar o livro da paz destruiu Jamal, que detinha o título de Ancião na época, mas não podemos provar isso.

Como você poderia imaginar, muitas das crias de Haqim recusaram a idéia de abandonar a fé. Eles fugiram, caindo à mercê da Camarilla. Esses vampiros — toda a Casta Vizir e muitos dos Guerreiros, pelo que entendi — se comprometeram a servir a seita onde os Brujah e Gangrel falharam, tendo feito várias pedições com este objetivo nas últimas duas décadas. As bases já estavam estabelecidas, como você vê. O obstáculo sempre foi a inimizade mútua do clã com os Tremere.

Três coisas aconteceram para tornar sua admissão uma possibilidade: a primeira foi a partida dos Brujah; o segundo foi a perda dos Tremere em Viena; o terceiro foi a Cruzada da Gehenna do Sabá, que nos deu um inimigo comum nos campos de batalha de nossas pátrias. Quando muitos de nossos irmãos infiéis pareciam se juntar, ou pelo menos ajudar, aos Cainitas incrédulos, nossa dedicação a esse pacto ficou mais dura do que o aço de Damasco.” (Camarilla, V5, pág. 160).

Novo símbolo oficial para o Clã Banu Haqim no V5

Ao longo das Edições de Vampiro: A Máscara, a presença Assamita/Banu Haqim na América do Sul em geral e no Brasil em Particular, sempre foi bastante subestimada. Apesar de acertadamente reconhecer um vínculo do Clã com a cultura afro-brasileira, ao descrever como praticantes de capoeira quando apresenta o cenário oficial do jogo no Rio de Janeiro, ainda na Segunda edição no suplemento A World of Darkness, onde a presença dos Filhos de Haqim na América do Sul chega a ser descrita nos seguintes termos:

“Os Assamitas encontram pouco interesse na região. Mas eles buscam qualquer vampiro que precise de seus serviços, isso é suficiente. ” (A World of Darkness, Segunda Edição, pág. 28).

Mesmo na Terceira Edição, no Livro Revisado do Clã, os autores optaram por manter a tônica de uma presença pouco relevante no “Novo Mundo”, mas, de maneira que nos parece bastante inusitada, passaram a estabelecer uma relação entre os membros do Clã e as culturas nativas da América Central e do Sul.

“ O Novo Mundo não tinha nenhum atrativo especial para nós, mas alguns de nossos guerreiros partiram para terras estrangeiras em busca de uma cura para a maldição ou uma oportunidade de deixar para trás sua desgraça. Como as colônias norte-americanas eram muito inóspitas para a maioria de nós, exceto para os não-conquistados que se encontravam nas costas americanas. No entanto, os povos nativos de Aztlan eram um assunto diferente. Os membros das três castas se estabelecem em cidades na selva, saturando-se com animais selvagens e maravilhados com as fascinantes realizações dessas culturas. Alguns desses pioneiros, ou seus descendentes, ainda permanecem nas grandes cidades do México e do Brasil e em imponentes ruínas nos Andes ”. (Clanbook Assamite 3ª Edição, págs. 26–27)

Em nossa opinião essa perspectiva da quase completa irrelevância da presença do Clã em territórios brasileiros nos parece equivocada e fruto de um profundo desconhecimento sobre nossa história. Senão vejamos.

Sim, é verdade que a ampla maioria da população brasileira, desde sempre, diz professar a fé cristã e mantém os olhos fixos na Europa como exemplo almejado de civilização. Segundo dados demográficos mais recentes disponíveis, juntos, católicos, protestantes e espíritas somam mais de 88% da população do país, enquanto muçulmanos residentes não são mais do que 0,02%, cerca de 35.167. Porém, o que esses números escondem, parecendo corroborar a perspectiva corrente na Lore do jogo, é o impacto decisivo da cultura muçulmana ao longo de toda a nossa história e, mesmo antes disso, sua influência sobre a cultura portuguesa, da qual somos herdeiros.

Por quase oito séculos, entre 711 e 1492 d.C. (um período bem maior do que, por exemplo, os meros três séculos de domínio colonial português sobre o Brasil), a península ibérica esteve sob controle islâmico, após o general berbere Tárique ibn Zyade cruzar com suas tropas, oriundas do Norte da África, o estreito de Gibraltar para por fim ao Reino Visigótico que havia se instalado na região após a queda do Império Romano do Ocidente, anexando seus territórios ao Califado Omíada, que rebatizou toda a península como Al-Andaluz, nome pelo qual passaria a ser conhecida pelos conquistadores islâmicos ao longo de toda a longa ocupação que se seguiu.

General Tárique ibn Zyade

A maior parte do atual território de Portugal constituía, durante tal ocupação, a região de Al-Garbe Al-Andalus, parte mais ocidental dos domínios peninsulares islâmicos. Apenas uma pequena comunidade cristã foi capaz de resistir a ocupação se refugiando-se nas Astúrias por pelo menos dois séculos, até que o lento processo de reconquista permitisse a fundação dos Reinos Cristãos de Castela (830–1230 d.C.), Leão (910–1230 d.C.) e Portugal (1139 a 1910 d.C.).

Um lista de cidades erguidas pelos conquistadores islâmicos em pontos estratégicos do território português, sobre antigas ruínas romanas, ajuda a dar uma ideia do quão decisiva foi a fusão entre as culturas islâmica e cristã na região: Al-Uśbuna (Lisboa), Santarin (Santarém), Kulūmriyya (Coimbra), Mārtula (Mértola) ou Silb (Silves). Foi na Península Ibérica, e através da interação entre a cultura islâmica e cristã, alias, que foi possível recuperar na Europa muito do conhecimento técnico e científico perdido após a queda do Império Romano do Ocidente, a partir de cópias e traduções de textos clássicos da antiguidade preservados por estudiosos islâmicos e que viriam inclusive inspirar a “Renascença”.

Tal entrelaçamento entre a história e cultura portuguesa e islâmica, por si só, já deixaria margens para narradores e jogadores dedicados explorarem os Assamitas /Banu Haqim como protagonistas ou antagonistas privilegiados em crônicas dispostas a atravessar os séculos, desde os conflitos entre as tropas de ocupação islâmicas e a resistência cristã em cidades e rincões de Al-Andalus, passando pela Era das Grandes Navegações, a Era Colonial no Brasil e, quem sabe, chegando até as noites modernas. Alianças escusas entre Lasombra cristãos e Banu Haquim islâmicos, traições, agentes duplos e velhas rivalidades capazes de atravessar as eras. Tudo que sua imaginação permitir inspirada por nossa rica história.

Aliás, para a maioria dos jogadores de Vampiro até mesmo a ideia de capoeiristas Filhos de Haqim, indicada em fontes canônicas, pode soar completamente absurda. Mas com um pouco de conhecimento sobre história, é possível compreender a fonte de inspiração dos autores, uma realidade que pode muitas vezes parecer ainda mais surpreendente que a maioria das ficções por aí.

A relação entre o Oriente Médio e o Norte da África é muito antiga e remonta ao período pré-colonial, muito antes das “Grandes Navegações”. Pelo menos desde o VII, o Mundo Árabe empreendia sua expansão em direção ao Magreb (noroeste africano que abarca os territórios do Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia). Enquanto a Europa ainda mergulhava em sua Idade das Trevas, caravanas mercantes estabeleciam, por terra, o comércio entre a África e o Oriente Médio, mesclando povos e culturas ao longo de séculos. A pujança da cultura islâmica e seu vinculo antigo com o continente africano foi um dos fatores que impulsionaram a constituição de grandes, poderosos e avançados impérios africanos, comparáveis aos mais desenvolvidos da Europa, como os impérios: do Gana, de Axum, do Mali, do Congo, de Songai, do Zimbábue, de Oyo e o Reino de Benin.

Também essa influência secular da cultura árabe sobre a África foi transportada para o Brasil através de africanos escravizados, em especial os escravos islamizados, conhecidos no Brasil como “Malês”. Uma influência tão marcante que pode ser vista ainda hoje, e de forma bastante óbvia, no uso de turbantes e em elementos presentes na religiosidade e na cultura afro-brasileira, como o estabelecimento de sexta-feira como dia sagrado, consagrado a Oxalá (em contraposição ao sábado dos judeus e ao domingo dos católicos). Todo esse legado histórico e cultural, certamente também se refletiria nos Membros Brasileiros do Clã Banu Haqim.

Nos parece que muito provavelmente a maioria dos Banu Haqim residentes em território brasileiro traçaria sua origem a essa influência “Malê” e estaria fortemente relacionada à cultura afro-brasileira, como praticantes de Capoeira, como o próprio material oficial sugere, ou associados às religiões de matriz africana. E ainda que no V5 os Banu Haqim estejam associados à Camarilla, acreditamos que tal afirmativa seria válida apenas para o ramo principal do Clã e não abarcaria a maioria dos membros do Clã no Brasil, em especial estes que estariam associados a tal herança Malê.

Personagem Zulema Zahir da série espanhola Vis-a-Vis, fonte de inspiração para uma Banu Haqim ardilosa e mortal que pertença ao ramo principal do clã.

Em termos do V5, tais peculiaridades poderiam se refletir em uma Loresheet, nas edições anteriores se refletiria em uma linhagem que estaria mais relacionada ao Legado Laibon dos Obayifo do que ao ramo principal do Clã. Em qualquer dos casos, para o nome deste ramo específico de Banu Haqim brasileiros, propomos o nome de Oluko, que significa professor em iorubá, em referencia ao falo de que os Malês eram conhecidos e valorizados por serem negros instruídos, alfabetizados e supostamente versados em Magia.

Mesmo o vínculo sugerido com os povos indígenas pré-colombianos, embora muito mais recente na história do Clã, ainda faz algum sentido se consideramos como essas culturas valorizavam a prática de sacrifícios rituais e ofertas de sangue aos seus deuses. No contexto do jogo é mais do que possível relacionar tais práticas com a magia de sangue, que tanto interessa aos Filhos de Haquim. O que abre margem para explorar o exotismo e os mistérios pouco conhecidos das culturas pré-colombianas em suas crônicas, renovando a sensação do inesperado mesmo entre os grupos mais experientes de jogadores e novamente poderia ser transportando para o V5 como uma Loresheet.

Banu Haqim (Assamitas) | Brujah | Gangrel | Hecata (Giovanni) | Lasombra | Malkavianos | Nosferatu | Ministério (Seguidores de Set) | Toreador | Tremere | Tzimisce | Ventrue | Sangues Fracos | Laibon | Legados Afogados

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