Brujah: rebeldes em meio a um barril de pólvora nos trópicos.

Trazendo os Clãs do V5 para um cenário nacional.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
9 min readJun 7, 2020

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Por Alex Pina & Porakê Martins

Neófito Brujah arquetípico.

Embora o cânone de Vampiro estabeleça Toreadores e Lasombras como os Clãs mais poderosos e influentes na América do Sul, em uma região com uma história tão conturbada e repleta de guerras, insurreições, revoltas, levantes e revoluções, não deveria causar espanto a marcante presença do Clã Brujah, que no contexto do jogo representa a rebeldia e a paixão pelo confronto, tanto no campo físico como intelectual. Vejamos como seus Membros são apresentados na mais recente edição de Vampiro: A Máscara:

“O Clã Brujah sempre escolheu candidatos para o Abraço oriundos de grupos simpáticos aos ideais de contracultura e revolução. Eles buscam por aliados que questionam ideias normativas, e reconhecendo a causa dos oprimidos, eles buscam pelos destituídos.

Os Brujah podem ser lutadores apaixonados ou pensadores esclarecidos; os ativistas do Clã costumam diferir bastante dos teóricos. Não raro, os intelectuais do clã vieram das fileiras dos estudiosos de gênero ou estudantes de sociologia, bem como pessoas que tiveram experiências de quase-morte e aquelas que sofreram e suportaram grandes perdas. Os Brujah de linha mais filosófica, conhecidos como Helenos, acreditam que o melhor método para desmantelar o status quo se dá pela compreensão dos sistemas sociais e culturais que permitem a sua existência e manutenção”. (Vampire The Masquerade, Quinta Edição, Corebook, pág. 65)

Chega a ser irônica a ênfase que se costuma dar ao Brasil como um país pacífico e festivo, cujo povo parece conformado com a própria miséria e disposto a esquecer os dessabores de sua existência banal com a catarse cíclica do carnaval, tal imagem projetada pelo país ao mundo provavelmente foi a inspiração para o “Carnaval Carioca”, a trégua entre as seitas no cenário oficial do jogo para o Rio de Janeiro, e poderia sugerir que os instáveis e inconformistas Brujah não estariam em casa por aqui. Felizmente, ou infelizmente, nada poderia estar mais longe da realidade.

A verdade é que o Brasil, como parte do contexto Latino Americano, é um território marcado por conflitos quase ininterruptos, pelo menos desde a Era Colonial. Guerras entre colonizadores europeus e povos nativos pelas terras e riquezas da região, revoltas e rebeliões de pessoas escravizadas contra Senhores inescrupulosos, incontáveis conflitos contra o domínio colonial e disputas territoriais sangrentas, como a Guerra do Paraguai, protagonizada pelo Brasil e onde pereceram quase meio milhão de mortais.

Mesmo hoje, sob uma paz formal patrocinada por um suposto Estado de Direito, onde nem sequer 10% dos crimes de homicídio chegam a ser solucionados, o Brasil segue como um dos países mais violentos do mundo, na verdade, o segundo do ranking de países com o maior número de mortes violentas fora de zonas de guerra declarada, perdendo apenas para o México, e chegando até mesmo a estar a frente de países onde guerras civis foram formalmente declaradas, como a Síria.

Novo símbolo oficial para o Clã Brujah no V5

Tal cenário de caos e violência não poderia ser mais apropriado aos Brujah, como já reconhecia a Lore de Vampiro em edições muito anteriores do jogo, ao se referir à presença dos membros da “Ralé” cainita nas Américas Central e do Sul e curiosamente estabelecer alguma relação entre membros específicos do clã e a cultura mística nativa da região:

“Os Brujah infestam as ‘repúblicas’ devastadas pela guerrilha na América Latina, tendo imigrado durante as noites de conquista e multiplicado-se desde então. Muitos Brujah veem a região como um lugar ideal para erigir outra Cartago ainda que com a lâmina do facão. Revoluções, opressão e golpes de estado são ímãs para vampiros Brujah. Os Brujah acham a política tumultuada dos mortais tão inebriante quanto seu sangue. Não é que o clã possa concordar com qualquer princípio específico, é claro. Para cada Brujah que se liga com um aspirante à presidente, outro luta ao lado dos rebeldes. Alguns Brujah também são ativos nos cultos de Santeria da região, vivendo o significado alternativo do nome do clã, “bruxa”. Rumores de um coven secreto de feiticeiros Brujah de sangue indígena — com seus próprios caminhos e rituais — perturbam os Tremere da região”. (A World of Darkness Second Edition, pág. 26–27).

Outro trecho, mais adiante no mesmo suplemento, relata o envolvimento Brujah com africanos e seus descendentes escravizados no Brasil:

“Vampiros de todas as estirpes passam pelos caminhos tórridos do Rio, mas certos clãs são predominantes. Os Lassombra e Toreadores ainda dominam o Rio, conduzindo os assuntos da cidade (ou simplesmente existentes) com um estilo e elegância desconhecido para regiões mais estáveis. Brujah também andam aqui em abundância; alguns são descendentes de escravos ou escravos das noites de revolução, enquanto outros são atraídos pelos ritos de Santeria do Rio e pelos cultos de sangue subversivos.” (A World of Darkness Second Edition, pág. 39).

É curioso notar o vinculo que estes trechos estabelecem entre os Brujah e, não apenas o turbulento cenário político da região, mas também seus nativos e sua Magia de Sangue, através de cultos afro-americanos, que mesclam elementos indígenas, africanos e católicos, que nós aqui no Brasil costumamos reconhecer como a Umbanda, o Candomblé e suas variantes. O livro revisado do Clã, já na terceira edição, insiste nesses elementos peculiares:

“Ao contrário do Velho Mundo, os Brujah nos primórdios das Américas se centralizaram. Isso ocorreu não tanto por camaradagem, mas pela prática do Abraço — confrontados com recursos significativos no que diz respeito ao sustento e sem príncipes fortes para impedi-los, muitos Brujah pisaram em terra firme e imediatamente Abraçaram novas crias. Rabble que seguiu Cortez às grandes cidades astecas instalou-se entre feiticeiros da morte e deuses mitológicos. Alguns se estabeleceram com os Incas e se banquetearam com o sangue dos fazendeiros de quinoa. Outros ainda se mudaram para o sul… e nunca mais foram vistos, o que faz com que muitos especulem que algo os destruiu ou eles aproveitaram a oportunidade para se afastarem da política mesquinha da sociedade vampírica. Alguns seguiram os portugueses para o que viria a ser o Brasil, mas mesmo essas especulações dos modernos Membros sul-americanos não sabem nada do que aconteceu com os Brujah que viajaram no rastro de Pizarro”. (Clanbook Brujah 3º Edition, pág. 25)

Estes elementos relacionando nosso cenário nacional aos Brujah foi ainda mais aprofundado, e adquiriu uma maior relevância, com a introdução de uma personagem do metaplot do V20, a nova Justicar Brujah, Manuela Cardoso Pinto, uma Cainita negra e de origem brasileira, descrita como a antiga Xerife da Camarilla em Natal, no nordeste brasileiro, e membro dos Josianos, um tipo de Arconte empenhado especificamente no combate à cultos demoníacos no interior da Camarilla e que, em algumas situações, podem ter atuado até mesmo em colaboração com a Inquisição Sabá. Essa personagem fascinante, descrita no derradeiro suplemento para o V20, Beckett’s Jyhad Diary (pág. 232), e no Dread Names (pág. 53–55), explora ainda um aspecto pouco lembrado de nossa história, a pirataria que assolou a costa brasileira durante a Era Colonial.

Cardoso Pinto, aliás, de muitas formas nos ajuda a sintetizar e entender como os Brujah podem ser abordados em um cenário nacional. Afinal, segundo a Lore do jogo, no Brasil, a Camarilla jamais chegou a ser a força dominante. Em um cenário assim, considerando o vinculo entre os Brujah e as convulsões políticas e sociais na região, seria esperado que o Clã estivesse, mesmo antes da mudança no status quo estabelecida pelo V5, muito mais vinculado aos Anarquistas do que propriamente à Torre de Marfim. A busca por controlar essa força política e potencialmente desestabilizadora em uma região que teria tudo para se consolidar como um domínio inquestionável do Sabá, talvez tenha sido a razão para alçar uma Brujah brasileira a uma posição tão elevada na Camarilla.

Seja como for, isso agora não importa, os Brujah se tornaram formalmente o eixo de sustentação dos Anarquistas, e, mesmo fora da Camarilla, na atualidade isso não deve ter mudado muito a posição privilegiada de influência e relevância do Clã por aqui, como referência e liderança da sociedade local de Membros.

E ainda assim, o fato de uma representante que foi, ou talvez ainda seja, tão influente como Cardoso Pinto, ser descrita como uma dedicada caçadora de “infernalistas” e hereges nos parece em flagrante conflito com os vínculos que pelo menos parte do Clã mantém com cultos pagãos nativos ou afro-brasileiros, o que oferece uma dica sobre o quanto a estrutura do clã por aqui pode ser especialmente complexa, fragmentada e repleta de conflitos internos.

Forte candidato ao Abraço Brujah em uma fotografia histórica do grande Sebastião Salgado.

Possíveis dissidências Brujah em um cenário nacional…

Em relação ao vínculo Brujah com os povos nativos da América do Sul, um marco importante a se considerar é a visita do renomado Matusalém Brujah, Menelau, à região, descrita na página 63 do suplemento Chicago by Night de 1993. Segundo a Lore do jogo, este poderoso Matusalém teria vindo parar por aqui a partir de antigos conhecimentos fenícios sobre navegação e teria conduzido a ascensão do Império Inca, mais de meio século antes de Colombo desembarcar no Novo Mundo. Tal afirmação nos parece extremamente presunçosa, considerando outros poderes sobrenaturais estabelecidos na região como Metamorfos, Capacochas (Múmias Sulamericanas), Vampiros da Linhagem Tlacique e Membros dos exóticos e misteriosos Legados Afogados.

Seria mais verossímil supor que o papel de Menelau no ascenso inca foi superestimado, embora ele de fato tenha visitado a região e Abraçado novas crias entre os nativos, que foram deixadas para trás quando ele decidiu (ou foi forçado) a seguir sua jornada em direção ao norte do continente, entrando em contato com Maias e Astecas até finalmente encontrar repouso, e velhos desafetos, em Chicago, nos EUA.

Tais descendentes teriam fornecido as bases para uma rara e peculiar Linhagem Brujah, cuja origem remonta ao período pré-colonial e que forneceria a matéria prima para os rumores sobre os tais Brujah feiticeiros que conviveram entre os povos andinos. E a relação histórica entre tais povos e o sudeste do Brasil serviria para inserir no cenário brasileiro tais exóticos representantes do Clã, uma vez que antigas trilhas indígenas, chamadas Peabirus, ligavam os domínios do antigo império inca ao litoral de São Paulo e Rio de Janeiro, antes da colonização portuguesa, e influenciaram decisivamente o povoamento dessa região durante a Era Colonial.

Essa Linhagem Brujah especifica poderia ser conhecida como Mitma, termo quéchua para estrangeiro, e como crias de dois mundos, do Sangue Brujah trazido por Menelau da Europa e da cultura nativa ancestral, teriam que lidar com a desconfiança tanto por parte do ramo principal do Clã e como com a desconfianças de poderes nativos ainda mais antigos, mas também ofereceriam uma ponto entre a cultura cainita padrão, eurocentrada e os segredos e mistérios quase esquecidos nas brumas do passado e nos recônditos das regiões selvagens da América do Sul.

No contexto do V5, as peculiaridades da Linhagem Mitma poderiam ser adaptadas por meio de um Loresheet e ofereceria a possibilidade de personagens Brujah acessarem os conhecimentos de uma antiga forma de feitiçaria de sangue baseada na cultura dos povos nativos e conhecimentos sobre os perigos quase desconhecidos que rondam as noites da América do Sul, como as Capacochas e Teomallki e os Legados Afogados. Além disso, com a importância que o Brasil já teve ao ser o lugar de origem da última Justicar Brujah na Camarilla, esses peculiares representantes nativos do Clã talvez até mesmo possam ter desempenhado um papel decisivo para articular a aliança entre os Brujah e o Ministério (antigo Clã dos Seguidores de Set), no renovado Movimento Anarquista da atualidade, afinal, além de dividirem o interesse pela Magia de Sangue, eles certamente possuiriam laços antigos com pelo menos uma das facções do Ministério, os Tlacique.

Já em relação ao vinculo Brujah com os africanos escravizados e seus descendentes, ela poderia se refletir em um cenário nacional através da presença antiga e marcante de outro ramo exótico do Clã, uma linhagem de vampiros afro-brasileiros mais ligados ao Legado Laibon Osebo do que ao ramo principal do Clã. Tal Linhagem se chamaria Alagbato, termo iorubá que significa “guardião”. Como os Osebo eles possuiriam Auspícios no lugar de Presença como disciplina do clã, o que lhes conferiria um ar mais místico e introspectivo, porém, diferente dos Osebo, cujo papel na sociedade Laibon quase sempre se resume a servir e não liderar, seus descendentes no Brasil seriam figuras de liderança a frente de setores do movimento negro e de adeptos de religiões de matriz africana, que para buscar dominar a própria Besta teriam eleito, no lugar da lealdade e um determinado Magaji (líder local), a causa dos exilados pela diáspora africana no Brasil, clamando para si o papel de guardiões de seu povo e de suas tradições. Peculiaridades que novamente seriam transpostas por Narradores habilidosos para o V5 através de Loresheet.

Banu Haqim (Assamitas) | Brujah | Gangrel | Hecata (Giovanni) | Lasombra | Malkavianos | Nosferatu | Ministério (Seguidores de Set) | Toreador | Tremere | Tzimisce | Ventrue | Sangues Fracos | Laibon | Legados Afogados

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Fanpage brasileira do universo clássico de RPG de Mesa, Mundo das Trevas (World of Darkness).