Cidade Invisível: original Netflix lança um olhar maduro e sombrio sobre nossas lendas nacionais.

Crítica da Série para os fãs do Clássico Mundo das Trevas.

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão
5 min readFeb 7, 2021

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Apresentação sem spoilers

Crítica audiovisual não é o nosso foco aqui na Brasil in the Darkness, nos dedicamos a adaptar os elementos peculiares da cultura e da identidade brasileira e latino-americana ao universo cínico e sombrio dos jogos de RPG do clássico Mundo das Trevas, o que, por acaso, possui muito em comum com a proposta da mais nova série original da Netflix, Cidade Invisível, uma produção brasileira, com a assinatura do renomado diretor Carlos Saldanha. É graças a esta grande afinidade que julgamos valer a pena refletir sobre essa importante iniciativa de levar os personagens típicos de nosso legendário nacional ao grande público, dentro e fora do Brasil, uma vez que, a série estreia na mais popular plataforma de streaming do planeta, com dublagens disponíveis em inglês, francês, espanhol e italiano e legendas em todas estes idiomas, mais o alemão.

Carlos Saldanha — o homem por trás de grandes sucessos como: A Era do Gelo (2002), Robôs (2005), A Era do Gelo 2 (2006), A Era do Gelo 3 (2009), Rio (2011) e Rio 2 (2014) e Touro Ferdinando (2017) — é um diretor brasileiro com uma carreira consolidada em Hollywood no ramo das animações infantis. Neste projeto, ele estreia no live action com uma série voltada ao público acima dos 16 anos, com uma trama policial de mistério imersa em um clima sombrio e sensual que deve surpreender quem ainda insiste em associar personagens como a Cuca, o Saci e o Curupira às adaptações televisivas da obra de Monteiro Lobato. Uma opção que, diga-se de passagem, é muito mais fiel a origem de tais histórias, criadas para inspirar temor e reverência no público que as transmitiu por gerações pelos rincões do Brasil, trazendo-as para o ambiente urbano para discutir temas extremamente relevantes da atualidade, como identidade e meio ambiente. Assim, Cidade Invisível surge como fonte de inspiração para narrativas no Mundo das Trevas ambientadas no Brasil, sobretudo, aquelas focadas em Changeling: O Sonhar ou Lobisomem: O Apocalipse.

A partir deste ponto, análise com spoilers leves, siga por sua conta e risco. Você foi avisado.

Em tentativas anteriores de retratar o Brasil, Saldanha incorria em caricaturas que reforçam velhos estereótipos, vide Rio (2011) e Rio 2 (2014), insistindo em uma perspectiva eurocentrada e colonial, muito mais próxima dos preconceitos estrangeiros do que de um olhar genuinamente nativo, algo ainda presente em Cidade Invisível, sobretudo, no personagem Manaus, o boto da série, que nunca chega a ser desenvolvido de fato, apesar de sua importância central para a trama.

Um detalhe incômodo, para quem conhece as histórias sobre o boto em primeira mão, é a insistência recorrente na mídia em relacioná-la ao “boto rosa”, pois na Amazônia, o boto sedutor é o tucuxi, o boto cinza ou preto, já o “boto rosa”, mais conhecido pelos ribeirinhos nativos como “boto vermelho” é considerado um animal arisco e agressivo, contrastando com a expectativa do público que não convive com a espécie ou com a cultura ribeirinha amazônica.

Contudo, a série possui méritos relevantes ao apostar no legendário nacional, o que deve ser seu principal atrativo para o público brasileiro, além de investir em uma trama sagaz, que elege como principal antagonista a ganância humana e discute a importância do legado para a transmissão da cultura, mas também das mazelas, entre gerações. E ousa, ao escolher retratar sua Cuca a distanciando da figura caricata popularizada pelo Sítio do Pica-Pau Amarelo, do supremacista Monteiro Lobato, optando por mesclá-la a outras histórias nativas latino-americanas, como a lenda da mariposa-bruxa e o mito mexica de Itzpapalotl, a “mariposa de obsidiana”, divindade menor relacionada à morte no panteão asteca.

Esta escolha, potencialmente controversa para os mais “puristas”, nos parece um acerto a favor de Cidade Invisível, uma vez que confere a uma das personagens centrais da trama um ar cosmopolita, que faz falta a todo o restante do projeto, que parece intimidado com a própria ousadia ao se contentar com uma trama autocontida e provinciana. Ainda que repleta de reviravoltas interessantes e com um final surpreendente, mas que nunca extrapola os limites de uma única cidade, o Rio de Janeiro, e de uma única mitologia, aquela que o senso comum preconceituosamente identifica como o “folclore nacional”, desperdiçando uma chance de criar um universo muito mais vasto, ambicioso e abrangente. O que chega a ser irônico, diante do fato de que mitos que possuem um papel de destaque na história, como a própria Cuca, o Vira-porco e o Corpo-Seco, possuírem suas raízes em tradições ibéricas, presentes não apenas na Europa, mas em diversos outros países latino-americanos.

Outro elemento a se considerar, em especial em uma série que se vende como preocupada com a identidade e a representação da cultura nacional, é a falta de uma maior representatividade das culturas indígenas e afro-brasileiras. Em um elenco hegemonicamente branco, restam aos atores negros o papel de coadjuvantes, como capangas ou entraves ao protagonista, sem que a cultura afro-brasileira seja abordada para além de uma rápida menção à escravidão transatlântica ou recaindo no velho tropo da mulher negra sensual e manipuladora. Aos indígenas, nem mesmo isso, sendo retratados como meros figurantes, sem nomes ou falas.

Nos aspectos técnicos se destacam o roteiro, perspicaz e bem amarrado, e o valor de produção, acima do padrão que se esperaria de uma produção nacional, embora bem na média do que se espera de uma série “padrão Netflix”. Fotografia e direção não chegam a ser especialmente inspiradas, mas cumprem bem sua missão. O elenco em geral está bem, mas os destaques ficam por conta da veterana Alessandra Negrini, que nos oferece uma Cuca imponente e misteriosa que transita da ternura à ameaça com desenvoltura, e do novato, Wesley Guimarães, que rouba a cena com a malemolência e sagacidade de seu Saci. Os efeitos especiais no geral são bem executados, ainda que a representação do curupira, aqui retratado em uma versão com labaredas no lugar do cabelo, deixe bastante a desejar.

No fim das contas, a Cidade Invisível superou as expectativas e nos parece um bom ponto de partida para demonstrar ao grande público o potencial de nosso legendário nacional, que vai muito além das histórias infantis. Torceremos pelo seu sucesso para que vejamos novas investidas que apostem de maneira ainda mais ousada na riqueza e peculiaridade de nossa cultura, em uma representatividade real na frente e atrás das câmeras e que possam inspirar o mesmo em outras mídias, como o nosso bom e velho RPG de mesa. Oremos a Guaraci, Jaci, os Orixás e todos os nossos demais Grandes Espíritos Ancestrais.

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Ewarë, o “Reino” Encantado da Amazônia.

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Porakê Munduruku
Brasil na escuridão

Mombeu’sara, griô amazônida e escritor. Administrador da Página Brasil in the Darkness e integrante da Kabiadip-Articulação Munduruku no Contexto Urbano.