Do que trata Changeling: O Sonhar?

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
7 min readApr 24, 2020

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Por Porakê Martins

Os sonhos, a imaginação e a criatividade, o desejo de aspirar por mais do que a dura realidade e a capacidade de se fascinar com o novo e o surpreendente, sempre foram a mola propulsora dos avanços da humanidade, uma força poderosa capaz de nos elevar acima das cavernas lúgubres do passado até um ponto onde aqueles que vieram antes de nós jamais poderiam nem sequer especular. Mas tudo isso também sempre foi ameaçado pelo medo, a apatia e o conformismo. É sobre esse embate épico do espírito humano que Changeling: O Sonhar trata, uma queda de braço que o jogo representa por meio da dicotomia entre o Glamour e a Banalidade, mas também entre sonhos e pesadelos, esperança e medo.

Neste jogo somos convidados a interpretar um Changeling, uma alma feérica envolta em uma casca mortal, uma amálgama de carne e sonhos. Em sua origem os Changeling foram criaturas de puro sonho, frutos da criatividade e das aspirações humanas eles adquiriam vida e consciência próprias, retirando poder da essência mística destilada a partir das emoções humanas, que eles chamam de Glamour. Eventualmente, essas criaturas feéricas primordiais, conhecidas como “Fadas Verdadeiras”, viram suas fontes de poder minguarem com o avanço da descrença, da apatia, do cinismo, da racionalidade e da desilusão humanas, sintetizadas em uma força corrosiva e oposta ao Glamour, que os Changeling chamam de Banalidade. O avanço da Banalidade obrigou as criaturas do Sonhar a se refugiarem em seu próprio mundo, Arcádia, deixando algumas criaturas feéricas para trás, esses exilados acabaram encontrando uma forma de sobreviver no “Mundo dos Homens”, chamados por eles de “Mundo do Outono”, imbuindo sua essência feérica em corpos mortais, dando origem aos Changelings, criaturas metade sonho, metade carne.

A alma feérica une-se a uma criança mortal mesmo antes de seu nascimento e permanece adormecida até que um evento especifico, normalmente antes ou durante a puberdade, a induza à crisálida, o despertar mágico de sua alma feérica. É a partir de então, que o Changeling passa a existir simultaneamente em dois mundos, a realidade mundana e a realidade feérica, onde a criatividade e a imaginação adquirem substância, sendo capaz de perceber e interagir com pessoas e objetos que as pessoas comuns não são capazes de notar.

Cada Changeling é capaz de expressar aspectos Seelie e Unseelie, um dos quais domina sua personalidade. Esses aspectos não podem ser facilmente enquadrados nos conceitos humanos de bem e mal, mas representam uma série de filosofias — luz e sombra, lei e liberdade, dever e paixão, respectivamente, e eles costumam servir de parâmetro para dividir toda a sociedade changeling entre Cortes Sellie e Unseelie. Além disso, cada Changeling também é membro de um kith, algo como diferentes espécies de fadas. O kith de um Changeling indica o tipo de sonhos que deu origem à sua alma feérica. Os kiths são baseados em arquétipos de fadas do folclore e da cultura de diferentes povos. Há um número potencialmente infinito de kiths Changelings, quase tão diversos quanto a criatividades dos povos que lhes deram origem.

Kiths de Changeling: O Sonhar, na Edição comemorativa de 20 anos do jogo.

Os Changelings originados das lendas e folclore europeu referem-se a si mesmos como Kithain, eles dominam a sociedade Changeling ocidental e adotam uma forma de organização social baseada nos conceitos de servidão e nobreza da Europa medieval. De uma forma geral, Changelings oriundos de outras culturas e tradições, como os povos nativos americanos e orientais, são chamados por esses, de Gallain, “os estranhos”, e costumam ser marginalizados em relação a sociedade Kithain. Há, ainda, seres feéricos similares aos Changelings, mas que não possuem qualquer faceta Seelie, eles encarnam em sua contraparte feérica apenas os pesadelos mais selvagens e instintivos da humanidade, essas criaturas pavorosas são chamadas de Thallain. Estas, porém, são apenas mostras da incrível diversidade de criaturas baseadas no poder bruto da criatividade humana.

Como criaturas duais, os Changeling possuem tanto um aspecto mortal como um semblante feérico. O Aspecto Mortal de um changeling é a aparência mundana que esconde sua alma feérica. Escondido sob o corpo mortal do Changeling está sua verdadeira natureza, ou Semblante feérico, qualquer um que possa ver através de sua aparência mortal vislumbrará um filho imortal do Sonhar, uma alma feérica que perdura ao longo dos séculos, reencarnando em corpos mortais. Changelings e outros habitantes do Sonhar sempre podem reconhecer uns aos outros pelo que realmente são.

Somente em locais infundidos com Glamour é que o semblante feérico de um Changeling é revelado a qualquer pessoa. Encantar um mortal, infundindo-o com a magia do Sonhar é outra forma de permitir que ele possa vislumbrar a verdadeira natureza de um Changeling e as outras maravilhas feéricas. Em algumas situações desesperadas o Changeling pode canalizar a magia do sonhar para manifestar sua verdadeira forma no mundo mortal, tornando-a temporariamente real para todos os efeitos, isso é chamado de “Apelar ao Fado”. O semblante feérico está sempre presente, apenas oculto sob a superfície, pronto para ser visto por qualquer outro Changeling ou habitante do Sonhar a menos que seja ativamente oculto, mas este é um convite ao toque frio da Banalidade.

Muitos desafios esperam pelos Changelings em suas aventuras: sobreviver às intrigas políticas entre as cortes; equilibrar suas vidas mundana e feérica; enfrentar quimeras malignas, nobres despóticos, Thallain ameaçadores e a resistência dos Gallain em se juntarem à sociedade Kithain. Mas também, lutar para manter viva a chama da esperança e da imaginação em um mundo que parece cada vez mais dominado pela apatia e a opressão. Evitar que as frustrações cotidianas e as exigências de uma rotina maçante e insípida drenem suas energias e criatividade. Fugir da banalidade em meio a uma realidade decadente e desoladora. Eis o maior desafio proposto por Changeling: O Sonhar.

Originalmente, o jogo foi publicado nos EUA em 1º de junho de 1995, sendo o quinto e último título a compor o universo clássico do Mundo das Trevas. Recebeu uma segunda edição lançada em 1º de agosto de 1997, mas a teve sua própria linha de suplementos cancelada abruptamente pela editora em 2001, em razão de não atingir, entre o público, o mesmo sucesso das outras linhas de jogos de seu universo, talvez pelo clima otimista próprio do jogo claramente destoar da tônica dos demais títulos que compõem esse universo. Porém, em 5 de março de 2015, a Onyx Path Publishing anunciou que uma edição comemorativa de aniversário de 20 anos de Changeling: The Dreaming estava em produção, como parte de uma leva de campanhas de financiamento coletivo via internet que marcaram o ressurgimento dos títulos originais do universo do clássico Mundo das Trevas. A campanha de financiamento de Changeling arrecadou mais de 380 mil dólares, sendo extremamente bem-sucedida. Essa nova edição foi publicada no início de 2017.

Não deixa de soar irônico que Changeling ainda seja, muito provavelmente, o título clássico de World of Darkness que mais sofre com o preconceito dos fãs desse universo, sob a alegação de ser “infantil e colorido demais”. Afinal, o amadurecimento e o contraste entre as cores e a escuridão são dois dos temas centrais do jogo. Será mesmo que amadurecer significa estar disposto a abrir mãos dos sonhos para aceitar o pragmatismo da realidade? Não seriam as cores capazes de ressaltar a escuridão (e vice-versa)?

A Edição Comemorativa de Aniversário de 20 anos de Changeling: O Sonhar, mantém a mesma estrutura base da segunda edição, contudo, Artes e Alçadas foram ligeiramente modificados para melhorar a mecânica dos Truques, a magia feérica, sendo a mudança mais drástica a incorporação de um novo conceito, extraído diretamente da mecânica de Dark Ages: Fae, chamado “Unleashing”, que potencializa e torna mais imprevisível e dramática, além de menos limitada pelas Alçadas, a magia feérica Changeling. Além disso, a nova edição demonstra uma maior preocupação em detalhar o sistema de Banalidade, expande e dá maior importância aos Thallain no cenário do jogo, reformula completamente os Dautain e traz uma nova roupagem para os Sidhe, os governantes de direito da sociedade Kithain, dividindo-os em Sidhe Arcadianos (que se auto-exilaram em Arcádia retornando só após acontecimentos recentes) e Sidhe Outonais (que por alguma razão permaneceram no Mundo Outonal ao lado dos plebeus sem terem passado pelo exílio em Arcádia).

Embora ainda bastante centrado no folclore europeu, a edição de 20 anos de Changeling busca ampliar o espaço para os Gallain no cenário de jogo e reafirma a posição de Changeling como um título capaz de trazer uma brisa fresca de otimismo, cor e esperança ao sombrio e decadente universo de World of Darkness. Afinal, tudo que é preciso para um sonho ser realizado é que alguém realmente acredite nele.

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