Como explorar o Brasil como cenário em Lobisomem, O Apocalipse?

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão
9 min readApr 24, 2019
Uma proposta de arquetipos brasileiros para as tribos Garou, pelo traço de Alyne Leonel.

Ao propor o Brasil como cenário para crônicas de Lobisomem: O Apocalipse, para além do interesse internacional sobre a riqueza e biodiversidade amazônica, que tem sido desde o início a única razão para o país ser lembrado nos materiais oficiais de Lobisomem, abre-se a possibilidade de explorar diversas formas as contradições que permeiam a realidade do país e outras culturas, biomas e regiões invizibilizadas pela generalização de florestas, samba e carnaval que costuma estar associada ao país no imaginário estrangeiro.

A dualidade entre Garou nativos e estrangeiros; entre a preservação dos valores e das culturas nacionais; e a influência estrangeira, seja na cultura, na política ou na economia que tende a ser um tema recorrente na história de países de origem colonial. Temas que estão muito longe de serem simples ou triviais. E a partir desse ponto de partida, também é possível explorar um amplo espectro de tons de cinza, como é próprio da proposta dos jogos da linha World of Darkness.

Afinal, o que teriam os Garou nascidos no Brasil a dizer sobre o fato de que a liderança inquestionável na Guerra na Amazônia é um Cria de Fenris estrangeiro? Que conflitos a migração massiva de lobisomens para a região, em decorrência da “Guerra na Amazônia” teria sobre a marginal comunidade Garou nativa do Brasil? O quanto isso poderia tencionar as relações com as outras raças metamórficas?

Entre a ânsia cosmopolita e a completa submissão aos interesses estrangeiros, entre o nacionalismo e a xenofobia, há toda uma gama de infinitas possibilidades que oferecem aos narradores e jogadores grandes possibilidades de drama, histórias épicas e reflexões filosóficas que, segundo a proposta de lobisomem, deveriam ser tão comuns ao jogo quanto a carnificina e as oportunidades de se chutar o traseiro dos servos da Wyrm. O que, aliás, também está longe de ser raro por essas bandas.

Sob um determinado ponto de vista, os Garou são todos estrangeiros nessa terra dominada por raças metamórficas hostis e ressentidas por uma Guerra da Fúria que jamais teve seu fim formalmente declarado. Sob este ponto de vista, quem dentre os brasileiros poderia ser considerado de fato um nativo? Quem estaria a salvo da ira daqueles que veem a colonização europeia como um processo de invasão e massacre dos povos, das terras e dos espíritos nativos? Quantas visões diferentes e contradições poderiam ser exploradas apenas em relação a este aspecto?

No Brasil, assim como em toda a América Latina e diferentemente do que ocorreu na Europa e América do Norte, não seria exagero imaginar que a Guerra da Fúria jamais foi vencida pelos Garou. Na maior parte desse território, os Fera mantêm seu domínio por incontáveis eras e só muito recentemente vem dando sinais de alguma disposição em negociar. O W20 descreve assim, a situação:

“Embora as Tribos Puras tenham viajado para a América do Sul, apenas os Uktena se instalaram em números relevantes. Contudo, a região foi o lar de alguns Garou até a colonização européia, mas mesmo assim os lobisomens são poucos e esparsos, com apenas os Roedores de Ossos sendo uma moderna exceção. Na maior parte, essas terras tradicionalmente pertencem aos Fera — os outros metamorfos assolados pelos Garou na Guerra da Fúria. Os Fera permaneceram, mesmo após os sangrentos conflitos com os lobisomens invasores (como os Senhores da Sombra que acompanharam os espanhóis). Eles até vêm se infiltrando nas populações de Parentes Garou, causando uma grande surpresa quando uma Primeira Mudança resulta em um jaguar metamorfo em vez de um lobisomem.

Uma das razões pelas quais o continente ainda continua a ser um mistério para a maioria dos lobisomens é a relativa falta de acesso da ponte da lua aos seus Caerns. Muitas vezes, eles são intencionalmente fechados pelas Seitas nativas, para evitar o assédio de Garou estrangeiros, porém, muitas dessas seitas desapareceram. Há alguns caerns, na profundeza das selvas e esquecidos por todas as lendas, quase perdidos, esperando por intrépidos Garou ou Fera para procurá-los e recuperá-los… antes que a Wyrm os encontre.

Da mesma forma, muitas linhagens de Parentes foram perdidas, buscas espirituais não foram capazes de rastreá-las. Os raros Garou que nascem aqui, ignorados por seu povo, são ameaçados pelos servos de Wyrm, que os procuram para convertê-los antes que eles se conheçam melhor.” (W20 — Página 61).

Como vemos, o material oficial mais recente traça um quadro desolador para a presença Garou na América do Sul. Em consequência, no Brasil, embora a situação tenha melhorado a partir da instauração da Guerra na Amazônia, plot vigente desde a primeira edição, a partir do infame suplemento de 1993, Rage Across The Amazon. Essa guerra que é apontada como causa do aumento significativo da presença Garou na América do Sul, desde que a Lenda Viva dos Crias de Fenris, Golgol “Presas-Primeiro”, em 1987, despertou o Caern do Coração Oco nas proximidades do Rio Negro para instalar em território brasileiro o quartel general da guerra. Este período recente é descrito e atualizado assim pelo olhar do W20:

“Durante as últimas décadas do século XX, a floresta amazônica foi alvo de um dos maiores esforços concentrados da Nação Garou contra o Wyrm. A Guerra da Amazônia causou vítimas incontáveis de ambos os lados e continua sem um vencedor definitivo, embora o conflito tenha esfriado de forma intensa à medida que a expansão das companhias de petróleo está paralisada. Não importa — a Pentex mudou suas operações de petróleo para outras regiões, como testemunharam os vazamentos de petróleo da plataforma de perfuração no Mar Negro e no Golfo do México. Existem poucos lobisomens para proteger os mares e os oceanos”. (W20 — Página 61).

O suplemento para o W20, Rage Across The World, tem pouco a adicionar a esse quadro geral. O rumo apontado no material oficial parece bastante limitador para os interessados em um cenário brasileiro para lobisomem, pois reduz a presença Garou na região a algo vestigial durante a maior parte da história do país, vindo a torná-la relevante só a partir das últimas duas décadas do século passado e, ainda assim, na atualização, indica que o interesse Garou no país tem diminuído, além de se limitar à Amazônia, que por mais relevante que seja ao cenário mundial de Lobisomem, representa apenas uma porção da riqueza que o Brasil tem a oferecer.

A esta abordagem, propomos uma ligeira adaptação, que não abandona completamente o cânone, mas tenta o aprofundar e enriquecer. Consideramos que a visão dos suplementos sobre a região, não é mais do que a visão da Nação Garou a partir de seu centro de poder político na Europa e Estados Unidos, algo que, como em nossa própria realidade, tende a representar o Brasil como algo distante e subdesenvolvido, sem compreender a fundo nossas complexidades e peculiaridades.

Certamente a presença Garou no Brasil não seria tão numerosa e influente quanto na Europa e Estados Unidos. Porém não faria sentido que fosse muito menor do que no continente africano ou na Ásia, considerando o impacto da colonização européia no Brasil, que certamente acarretaria no grande fluxo de Parentes de sangue Garou para a região.

Nos parece fazer muito mais sentido que a Nação Garou na Europa e Estados Unidos sempre tenha subestimado e marginalizado os Garou nativos do Brasil, que, por opção e conveniência, tenham decidido se manterem isolados e aprendido a ficar de fora das intrigas e disputas tribais de suas contrapartes estrangeiras, mais numerosas, tradicionalistas e influentes até que, nos anos mais recente, o interesse internacional tenha se voltado para a Guerra na Amazônia.

Glifo Garou oficial para “Região Selvagem”, nenhuma região do mundo, no universo de Lobisomem, é mais selvagem que a América do Sul.

Transportando as Tribos Garou para a realidade nacional

No Brasil, ao longo de mais de cinco séculos, desbravadores e degredados da sociedade Garou da Europa teriam constituído sua própria sociedade, menor e menos formal do que suas contrapartes europeias e norte-americanas, mas, ainda assim, com suas próprias peculiaridades e potencialidades.

Os Uktena, em especial, já exploravam a região mesmo antes da colonização e certamente teriam vínculos com muitas tribos nativas do Brasil, por sua natureza mística e curiosa e a partir da abertura que lhes permitiu tomar como Parentes membros de povos que não eram nativos, os Uktena facilmente assimilariam em suas fileiras o misticismo afro-brasileiro dos adeptos de Umbanda, Candomblé e outros cultos de matriz africana.

O antigo mito das Amazonas, marcado para sempre no imaginário mundial ao nomear a maior floresta tropical e maior bacia hidrográfica do planeta, poderia subsidiar uma marcante e antiga presença de Desbravadoras Fúrias Negras nas regiões selvagens do Brasil. Além da presença das filhas do Pégaso poder servir de metáfora à longa tradição de vultos históricos femininos do Brasil, quase sempre bastante invisibilizados, como Maria Quitéria, Luiza Mahin, Leolinda Daltro, Anita Garibaldi, Maria Bonita e Pagú.

A presença de Senhores das Sombras entre os espanhóis que colonizaram o Novo Mundo é um elemento oficial do cenário de Lobisomem. Durante mais de meio século, ao longo da era colonial, as Coroas de Portugal e Espanha estiveram unificadas sob a União Ibérica garantindo uma subestimada influência espanhola sobre o Brasil, o que permitiria aos Senhores das Sombras fincarem raízes profundas na região.

A origem celta dos povos ibéricos e o uso ostensivo de mercenários ingleses de origem irlandesa ao longo do período colonial, além da grande migração irlandesa para o Brasil em meados do século XIX, em decorrência do episódio conhecido como “Grande Fome na Irlanda”, certamente justificaria a presença Fianna no país, ao longo de gerações e por todo o território brasileiro, da costa do Nordeste aos estados do sul. Em especial, é possível relacionar a passionalidade, a tenacidade, a sensibilidade e o apreço pelos vínculos familiares e demonstrações públicas de virilidade, marcas dos filhos do Cervo, ao arquétipo do sertanejo nordestino.

As invasões holandesas e a pirataria promovida pela Companhia das Índias Ocidentais na costa Brasileira nos primórdios do período colonial, onde foi notável o recrutamento de soldados de origem germânica; a presença da tradicional e influente família Lins, formada por fidalgos luso-germânicos que remontam à capitania de Pernambuco no século XVI, e a grande imigração germânica para o sul do Brasil no século XIX, promovida pela Imperatriz brasileira de linhagem austríaca, Dona Leopoldina, abrem muitas possibilidades para a presença de Crias de Fenris nativos em diversas regiões. Há, ainda, o elemento de que a rusticidade, intrepidez e beligerância relacionada ao arquétipo do bandeirante paulista poderia relacioná-los, assim como seus descendentes, ao Grande Lobo Fenris, o totem tribal que sintetiza a fúria aniquiladora e primordial.

O impressionante volume de nativos da África, em especial de regiões de influência islâmica como sudaneses e negros da guiné poderiam justificar alguma presença antiga de Peregrinos Silenciosos de sangue africano, atraídos para incursões que visavam a libertação de seus Parentes escravizados, a organização de rebeliões de escravos, como a Revolta dos Malês e a Balaiada, ou simplesmente sua presença através do sangue e das tradições trazidas por Parentes e legada a seus descendentes.

O fato de que o Brasil foi o único país no Novo Mundo a sediar a corte de um legitimo monarca europeu e de ter remado contra a maré, que dividiu os domínios espanhóis na América em pequenas repúblicas, estabelecendo um vasto império capaz de manter unificado um território que corresponde à metade de toda a América do Sul, poderia ser representado pela tradição e imponência de Presas de Prata brasileiros de origem lusitana, que teriam acompanhado seus parentes entre os cortesões e fidalgos portugueses que se estabeleceram no país.

Sem contar as onipresentes tribos cosmopolitas dos Andarilhos do Asfalto e Roedores de Ossos, que certamente não estariam ausentes de uma cena urbana que inclui, entre outras grandes cidades pelo país, São Paulo, a segunda maior e mais cosmopolita metrópole latino-americana (quarta no ranking mundial) e o Rio de Janeiro, uma das cidades mais icônicas do planeta.

Todo esse rico mosaico de possibilidades para tribos e personagens Garou nativos certamente nos oferece uma sociedade Garou complexa e única, quase completamente desconhecida e desconsiderada pela Nação Garou internacional até que, pela proximidade do Apocalipse e/ou algum outro evento local dramático de proporções mundiais, decidisse clamar por seu lugar ao sol, questionando a maciça presença de Garou estrangeiros atraídos pelo chamado à Guerra de Golgol, que acabaram invadindo seus territórios e pensando poder dar as cartas por aqui. Seria este o cenário para mais uma guerra civil no seio da Nação Garou?

A possibilidade para um habilidoso jogo diplomático que forçaria a Nação Garou a reconhecer a importância da Comunidade Garou nativa do Brasil e buscar evitar os velhos erros do passado? Todo um leque de infindáveis possibilidades se abre entre esses extremos opostos para serem exploradas por narradores habilidosos.

Então, este é o cenário para embates épicos, poucos cenários seriam mais apropriados para a batalha final das forças da Wyrm contra o exército de Gaia, não é mesmo? Os combatentes já estão posicionados. Até a vitória Garou!

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Porakê Munduruku
Brasil na escuridão

Mombeu’sara, griô amazônida e escritor. Administrador da Página Brasil in the Darkness e integrante da Kabiadip-Articulação Munduruku no Contexto Urbano.