Março, mês da Mulher e do RPG, uma bela oportunidade para reflexão.
O mês traz duas relevantes ocasiões, a celebração do Dia Internacional do Narrador de RPG e o Dia Internacional da Mulher.
Dia do narrador ou do RPG, origem e significado da data.
O Dia Internacional do RPG e dos Narradores de RPG, comemorado no 4 de março, surgiu informalmente em 2002, como proposta incipiente nos fóruns norte-americanos sobre RPG na internet, provavelmente com interesses meramente comerciais, mas se consolidou a partir de 2008 com a morte do lendário Gary Gygax, o escritor e game designer estadunidense, responsável pela edição original de D&D, o primeiro RPG de mesa da história, lançado por Gygax em 1974 em parceria com o também estadunidense Dave Arneson, através da pioneira TSR, uma empresa que mais tarde foi adquirida pela Wizards of the Coast, que, por sua vez, está hoje incorporada pela mega-corporação Hasbro, uma gigante mundial do mercado de brinquedos e jogos, desde o fim dos anos 90.
Além de uma óbvia ocasião cíclica para aquecer o mercado com lançamentos e promoções e uma oportunidade para que jogadores do todo o mundo possam de homenagear seus abnegados narradores, penso que esta data deveria também servir para que narradores e jogadores refletissem sobre nosso hobby predileto e a necessidade de divulgá-lo e valorizá-lo.
RPG, campo de combate ou de disseminação do preconceito?
Em um mundo cada vez mais dominado pela comodidade, conveniência e impessoalidade dos games digitais, não deveria causar espanto a estranhamento do qual é alvo o RPG de mesa, por mais árduos defensores que sejamos deste último, não há como deixar de dar certa razão àqueles que, não conhecendo de fato o jogo, não compreendam a disposição dos grupos de pessoas que se reúnem em torno de uma mesa munidos apenas de dados exóticos, livros, lápis e papel para passarem tardes inteiras encenando vozes e trejeitos ou simplesmente gritando como loucos ao som de músicas clássicas, instrumentais ou rock pesado (as vezes todas essas misturadas em uma única tarde). De fato, só quem se dispõe a se despir de preconceitos e conhecer o jogo é capaz de identificar algum sentido neste caos aparente.
No imaginário coletivo ainda é difícil separar o RPG do que há de mais problemático relacionado a termos como “Nerd” e “Geek”. Toda a inépcia social, misoginia e arrogância que estes termos ainda evocam, não sem alguma razão, parecem incrustados na cena de RPG. Um preconceito que nem sempre se mostrar condizente com a realidade de muitos grupos. De certa forma, apenas adentrar o universo dos jogos de RPG de mesa já requer superar alguns preconceitos e remar contra a maré de individualismo e passividade que faz parecer muito mais fácil interagir com máquinas do que com pessoas neste conturbado século XXI.
Porém, o que dizer àqueles(as) que mesmo superando todo estigma e preconceito que ainda paira sobre o hobby, infelizmente, se veem alvo de estigmas e de formas ainda mais nefastas de preconceito entre os próprios jogadores de RPG?
Em uma frase famosa a filosofa e escritora francesa feminista, Simone de Beauvoir, sintetizou: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Infelizmente não é raro, ao longo de toda a história conhecida, que setores que são alvo do preconceito acabem por reproduzi-lo como uma forma tola e desastrada de autoafirmação.
O meio rpgístico não poderá deixar para trás seu próprio estigma como subcultura contraditoriamente elitista e marginalizada, enquanto não for capaz superar seus próprios preconceitos e conservadorismo, tornando-se paulatinamente um espaço mais inclusivo e diversificado, tolerante e acolhedor para todos que demonstrem algum interesse em conhecê-lo. A própria indústria do entretenimento, que vê o jogo como mero nicho de mercado, já foi capaz de perceber isso e tem fomentado campanhas contra a intolerância entre seu público. Mas cabe nós, amantes do hobby, irmos além da lógica mesquinha do mercado para incorporarmos esta preocupação a nossa própria visão do jogo, para ir além da inclusão e da representação, exigindo, acessibilidade e representatividade.
Contar estórias para mudar a história.
A ficção de qualidade sempre trouxe consigo um elemento provocativo que nos convida a reflexão sobre a realidade, potencializando o envolvimento e a imersão do público na narrativa, com o RPG não é diferente.
Em relação a questão de gênero, como em tantas outras questões relevantes, um olhar mais atento sobre a história, esta inesgotável fonte de inspiração para a ficção, pode desvelar um manancial riquíssimo de personagens e possibilidades narrativas que nos apresentam mulheres complexas e surpreendentes que fogem aos surrados estereótipos. Vilãs, heroínas, líderes e guerreiras como a rainha Celta Boudicca, a líder quilombola Dandara, a engenhosa Lucrécia Bórgia, a lendária Catarina a Grande, a pioneira militar Maria Quitéria, as míticas Bruxas da Noite do Exército Vermelho ou as heroicas líderes da resistência Curda ao Estado Islâmico na atualidade.
O RPG tem muito mais a ganhar com a problematização da opressão racial, religiosa, de gênero e de orientação sexual, mesmo que apenas se restringindo a uma representação fidedigna de toda complexidade e potencialidade das mulheres e demais setores oprimidos, do que com a reprodução de preconceito ultrapassados.
É por tudo isso que toda a comunidade rpgística precisa compreender e saudar a importância de esforços que promovam a inclusão e o protagonismo feminino na cena de RPG, de Grupos como a Matilha da Garoa em São Paulo (SP)ou as Ikamiabas RPG, em Belém do Pará, com as quais temos a honra de de trabalhar conjuntamente e poder contar com algumas de suas integrantes como parte de nossa equipe na Brasil in the Darkness.
A necessidade de buscar tornar o meio rpgístico um espaço acolhedor para as mulheres, metade do público potencial para qualquer hobby, é um passo decisivo não só para o seu desenvolvimento, mas para a própria sobrevivência desta magnifica forma de lazer e aprendizagem que todos nós amamos. Respeite as Manas e as Minas! Vida longa e próspera ao RPG!
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