Sobre a reprodução no universo de Lobisomem O Apocalipse
Escrito por Porakê Martins
Lobisomem é um jogo que apresenta uma proposta que mescla dramaticidade visceral, reverência ao mundo natural e espiritualidade animista com o clima de fim trágico e iminente. Em poucos jogos de RPG os temas do sexo e da reprodução têm um papel tão relevante no cenário e na vida dos personagens. Analisar como esse aspecto se relaciona com os demais elementos do jogo é algo complexo e fascinante, mas, acima de tudo, fundamental para quem deseja delinear seu próprio cenário ou compreender mais a fundo os diferentes cenários propostos pelos diversos suplementos do jogo.
Afinal, entender como os Garou e demais Fera se reproduzem nos ajuda a compreender o quão raros eles realmente são no cenário de jogo e quão próximos estão de perder sua Guerra contra as forças da Wyrm. Além de ser algo decisivo para entender a dinâmica social entre os Garou, os lobos selvagens, a humanidade e as outras raças metamórficas. E, assim, aproveitar muito melhor esses elementos dramáticos em suas crônicas.
Quais as chances de um filhote herdar a benção de Gaia?
Em sua versão mais atual, na Edição de Aniversário de 20 anos de Lobisomem: O Apocalipse, ainda sem previsão de tradução para o português, o tema da reprodução é apresentado assim:
“A hereditariedade Garou, sendo um amálgama de fatores físicos e espirituais, não é uma ciência exata. Com poucas exceções — pais Garou-Garou sempre produzem Impuros estéreis, e a descendência de um Garou é sempre Garou ou Parente — falamos de genética Garou mais em termos abrangentes do que em especificidades.
Quando um Garou tem um filho (ou filhote) com um Parente, sua prole tem cerca de 10% de chance de se tornar Garou; os outros 90% são Parentes. Garou acasalando com não-Parentes quase sempre produzem Parentes em vez de Garou, embora tais relações sejam, na maioria das vezes, de curto prazo, dificultando a coleta de dados.
Cerca de metade das crias nascidas de dois Parentes serão também Parentes; um em cada cem desses nascimentos produzirão um Garou. O restante serão não-Parente humanos ou lobos: suscetíveis ao Delírio, e não mais propensos a produzir filhos Garou do que um humano sem qualquer relação de sangue com os Garou. Parentes que têm filhos com não-Parentes — humanos normais ou lobos — têm uma menor chance de produzir Parentes e quase nenhuma chance de produzir Garou, embora esses números variem dependendo de múltiplos fatores, e os estudos feitos não foram conclusivos para definir exatamente o quão pequenas as possibilidades são.
Os cruzamentos humano-humanos nunca produzem Garou. Nas raras ocasiões em que tal nascimento parece ter acontecido, um dos vários fatores pode estar em jogo, e é provável que um dos pais seja, sem saber, um Parente. Infelizmente, mais e mais Parentes são perdidos para a Nação, e é muito possível que alguém como uma criança Parente cresça sem conhecimento ou experiência com os Garou.
Outra possibilidade um pouco mais delicada: é que um o suposto pai tenha sido traído por um Garou ou Parentes, dando à criança uma inesperada herança sobrenatural. Algumas mães humanas insistirão até o fim que este não é o caso, mas o sangue não mente.” (Werewolf The Apocalypse 20th Anniversary Edition, Pg. 378).
O Guia do Jogador da Terceira Edição já enunciava a mesma situação de forma ainda mais clara e sucinta:
“Geralmente, acasalamento entre Garou e Parente resultarão num parente (90% de chance) ou num Garou (10% de chance). Parente cruzando com Parente às vezes produzirá outro Parente, um humano normal ou, raramente, um lobisomem. A progênie direta entre um Garou e um humano normal é um Parente na metade das vezes . E com uma exceção profeticamente fantástica, lobisomens cruzando entre si gerarão um impuro.” (Guia dos Jogadores dos Garou, versão brasileira do Nação Garou, Pg. 202)
Lobisomens, como sabemos, têm a capacidade de se reproduzirem tanto com lobos, quanto com humanos e até mesmo com outros de sua espécie. Embora só nos dois primeiros casos o resultado sejam filhotes saudáveis e férteis. Sobre essa questão, o livro básico da terceira edição esclarece:
“O poder do sangue não é dominante, e o filho de um Garou tem apenas uma chance em dez de se tornar um lobisomem ‘verdadeiro’. Felizmente, a benção não se limita a crianças humanas. Muitos Garou preferem se acasalar com lobos(…)
Um a cada três lobisomens se acasalava com lobos há mil anos, mas agora a taxa está mais para um a cada quinze. Outrora, os ancestrais lendários achavam relativamente fácil equilibrar seus instintos bestiais com a sabedoria humana, não mais.” (Lobisomem: O Apocalipse 3ª Edição, versão da Devir, Pg. 29)
O que é apresentado no W20 é consistente com tudo o que foi estabelecido desde a primeira edição do Jogo e poderia ser resumido nas seguintes proporções:
GAROU x GAROU = 100% de filhotes Impuros e Inférteis.
GAROU x PARENTE = 10% de filhotes Garou, 90% de filhotes Parentes da raça da mãe.
PARENTE x PARENTE = 1% de filhotes Garou, 50% de filhotes Parentes da raça da mãe e 49% de filhotes não-Parentes da raça da mãe.
PARENTE x NÃO-PARENTE = chances menores que 1% de produzir filhotes Garou e menores que 50% de Produzir Parentes da raça da mãe. (O quão menores só dependerá da arbitragem do narrador).
NÃO-PARENTE x NÃO-PARENTE = 0% de chances de produzir filhotes Garou ou Parentes.
Ou seja, é muito mais comum do que narradores e jogadores parecem considerar, que um dos genitores de um personagem seja um Garou, ainda que o personagem em questão não tenha conhecimento desse fato.
Obviamente, sempre existe a Regra de Ouro (influencia espiritual) e mesmo o cânone deixa sempre aberta ao Narrador a possibilidade de intervenção espiritual para melhorar as chances de nascimento de um filhote Garou, independente da Raça, além de introduzir algumas exceções interessantes no suplemento para a terceira edição, Parentes: Heróis Esquecidos:
“Parentes que acasalam com mortais comuns normalmente geram crianças não Parentes, apesar de que, certas facções entre os Filhos de Gaia possuem um ritual altamente secreto que pode alterar esse resultado.” (Parentes: Heróis Esquecidos, Pg. 13)
Como determinar a Raça de um filhote?
É importante também notar a primazia da raça materna sobre os filhotes nascidos de qualquer tipo de acasalamento. O ventre de uma Garou lupina sempre engendrará filhotes lupinos, mesmo quando seu pai for um Parente humano! Isso pode soar estranho, mas é assim que as coisas são no universo do jogo. Um trecho do livro básico da terceira edição não deixa margem para dúvidas:
“O que determina a raça? Simples, a forma natural da mãe do lobisomem, seja ela Parente, Garou, mulher ou loba normal. Se for uma loba, então o descendente será um lupino. Se for humana, a criança será hominídea. E se a mãe e o pai forem ambos lobisomens, a progênie será impura. Por exemplo, Coração de Fogo é uma fêmea lupina Garra Vermelha. Se ela se acasalar com um companheiro de alcatéia Aparentado, qualquer filhote Garou que venha a ter será considerado lupino. E mesmo se Coração de Fogo se acasalar com um ser humano Aparentado, enquanto estiver na forma de duas-pernas, todos os filhos lobisomens que resultarem dessa união ainda assim serão lupinos. As mulheres-lobas grávidas sempre usam sua forma racial ao dar a luz. As únicas exceções a essa regra são as desafortunadas fêmeas que esperam filhotes impuros. Se não assumirem a forma Crinus, o parto certamente as mataria.” (Lobisomem: O Apocalipse 3ª Edição, Pg. 59)
Contudo, há uma rara exceção que permite a uma Garou gerar filhotes de uma outra raça, é um segredo guardado a sete chaves pelos Filhos de Gaia:
Ritual da alternância de gerações [Nível 5] (…) mulheres hominídeas empregam-no para aumentar a medida de sangue lupino na tribo. Ele permite a um hominídeo dar a luz a descendentes lupinos e vice-versa.” (Livro da Tribo Filhos de Gaia Revisado, Pg. 74)
Como o antecedente Raça Pura pode influenciar nas chances de nascimento de um filhote Garou?
“Para cada nível deste Antecedente [Raça Pura] que você pegar, a chance de produzir uma prole Garou com um parceiro lobisomem aumenta em 5%”. (Parentes: Heróis Esquecidos, Pg. 53)
Aqui é importante notar algo frisado no próprio suplemento, Parentes: Heróis Esquecidos, apenas quando aplicado aos Parentes e nos acasalamentos com parceiros Lobisomem, o antecedente Raça Pura melhora as chances de gerar filhotes Garou, o nível do antecedente Raça Pura dos próprios Garou não é contabilizada para esse fim.
O que toda essa informação oficial tem a nos dizer sobre o cenário do Jogo? Os Garou são, de fato, criaturas extremamente raras e temos motivos para acreditar que tem se tornado mais raras (e se tornarão ainda mais) com o passar dos anos.
A Maldição da Fúria, que torna desconfortável a presença Garou para qualquer humano com Força de Vontade menor do que o nível de Fúria permanente do Lobisomem, dispersa e aumenta a resistência dos Parentes em se sujeitarem aos ditames Garou na modernidade, isso unido à diminuição alarmante de lobos selvagens em todo o mundo torna a reprodução uma grande preocupação em toda a Nação Garou, o que tende a aumentar a necessidade dos Garou apelarem para expedientes moralmente questionáveis, como o uso de poderes sobrenaturais como “Atração Animal” e o aumento do controle e dos abusos de Parentes como meros reprodutores.
Como funciona a concepção de filhotes no acasalamento entre os Garou e outras raças metamórficas?
Outro elemento de preocupação, ainda mais relevante em um cenário como o Brasil, é a competição com outras raças metamórficas, como fica claro em diversos suplementos que abordam a América do Sul no universo de lobisomem e ao longo das diversas edições do jogo. Deixaremos aqui, como exemplo, um trecho do W20:
“Os Fera perseveraram mesmo após os sangrentos conflitos com os lobisomens invasores (como os Senhores da Sombra que trabalhavam com os espanhóis). Eles até se infiltraram nas populações de Parentes Garou, causando extrema surpresa quando uma Primeira Mudança resultava em um jaguar metamorfo em vez de um lobisomem.” (Werewolf: The Apocalypse 20th Anniversary Edition, 2013, Pg. 61).
Essa possibilidade de acasalamento frutífero entre Parentes Garou e membros de outras raças metamórficas dá a entender que a noção de Parente não está limitada a uma raça metamórfica determinada, aparentemente, Parentes humanos são parceiros viáveis para qualquer raça metamórfica que não exija um ritual de reprodução especifico, como o Ritual do Ovo Fetiche Corax ou o Ritual da Praga do Nascimento Ratkin. Obviamente, esse raciocínio não se aplica aos Parentes selvagens (animais) pela flagrante inviabilidade de acasalamento entre animais de diferentes espécies. A menos, é claro, que estejamos falando do raríssimo Dom Mokolé de quinto Posto, Roubar Forma, que é indicado como responsável pela existência da linhagem africana Kucha Ekundu dos Garras Vermelhas, que se reproduzem com mabecos e não com lobos e, tudo indica, foi também o responsável pela existência da exótica tribo australiana dos Bunyip, que se reproduziam com os tilacinos marsupiais.
Outra evidência da pratica de acasalamento entre raças metamórficas é assinalada no livro da Raça Metamórfica Mokolé e justifica a reminiscência de registros mnemônicos de Raças metamórficas perdidas:
“Observe que devido à troca cerimonial de parceiros, assim como os Parentes compartilhados, existem linhagens mnéticas que mantém a memória dos Perdidos.” (Mokolé: Livro das Raças Metamórficas, versão brasileira da Devir de 2001, Pg. 27)
Sobre a reprodução entre raças metamórficas, os livros oficiais são ligeiramente contraditórios ao longo das edições. Na Segunda edição de lobisomem, o Guia do jogador esclarecia:
“De modo geral, se dois metamorfos de raças diferentes conceberem uma criança, essa têm 10% de chances de ser um metamorfo da espécie do pai, 10% de chance de ser um metamorfo da espécie da mãe e 80% de chance de ser um parente normal para ambos.
(…) um metamorfo nunca pode pertencer a duas raças metamórficas; um Garou com sangue Bastet é simplesmente um Parente para os Bastet e nada mais. Não há lugar para duas almas metamórficas em um único corpo. Também é verdade que a Praga do Nascimento dos Ratkin não pode funcionar em outros metamórficos; tão pouco o Ritual do Ovo Fetiche. Gaia só exige um dever de cada um de seus filhos.” (Lobisomem: Guia do Jogador 2ª Edição, versão brasileira da Devir de 2000, Pg. 190)
Ou seja, até a Segunda Edição, o acasalamento entre raças metamórficas não só existe como aumenta significativamente a ocorrência de filhotes metamorfos, dobrando as chances de se produzir um filhote metamorfo ao se somar as chances de pertencer à raça metamórfica do pai com as chances de pertencer à raça metamórfica da mãe. O que oferece um plot fantástico a ser explorado pelos narradores no que tange as relações entre raças metamórficas. E torna ainda mais trágica as conseqüências da Guerra da Fúria.
Já na terceira edição, esses percentuais sofrem uma mudança significativa, caindo pela metade, provavelmente para se adequar ao clima ainda mais épico e de fim ainda mais iminente que deu a tônica dos títulos da terceira edição do mundo das trevas. É na seção de FAQs do Storytellers Handbook da terceira edição de Lobisomem, ainda inédito em português, que essa mudança é mais claramente exposta:
“Acasalamento entre Garou e Fera produzem Impuros?
Não. Impuros são o resultado de dois metamorfos com metades espirituais iguais se acasalando; tipo incesto, só que em nível espiritual ao invés de genético. Se um Garou acasala com um membro de qualquer outra raça metamorfa, suas metades espirituais são diferentes — portanto, sem Impuros. A criança sempre vai ser da raça da mãe; isso significa que a criança não pode ser da raça do pai de forma alguma (por exemplo, os filhotes de uma mãe lupina nunca serão Bastet, mesmo que o pai seja). As chances de gerar um novo metamorfo são reduzidas drasticamente nessas uniões, de todo modo; existe apenas 5% de chance da criança pertencer à raça metamorfa da mãe e apenas 5% de chance de pertencer à raça metamorfa do pai. Se for impossível pertencer à raça do pai, ainda são apenas 5% de chance de pertencer à raça da mãe — desse modo, esse tipo de união está longe de ser uma solução honrosa para resolver o problema de se encontrar um bom parceiro para gerar novos metamorfos”. (Werewolf Storytellers Handbook, Pag. 21)
Curiosamente, o W20 parece omisso sobre essa contradição e, como é uma tendência geral nas edições de 20 anos do WoD, deixa a cargo dos narradores definir o que considerar como oficial em suas campanhas: se a proposta da segunda e mais popular edição de Lobisomem, que torna atrativa a opção de relações inter-raciais apesar de toda a mágoa e ressentimento entre as raças metamórficas; ou se a proposta da terceira e mais recente edição, onde relações inter-raciais são abertamente desestimuladas, não só a nível cultural e histórico, mas também a nível de mecânica, e a perspectiva de união entre as raças torna-se ainda mais distante e difícil de ser superada por laços de consanguinidade, deixando toda a situação dos Garou e Fera ainda mais desesperadora.
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