Vampiro: A Máscara, Legado Indígena e a origem do mito contemporâneo.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
9 min readMar 21, 2022

Versão em Português-BR | Versión en Español

Por Aredze Xukurú e Porakê Martins

Arte de Anissa Espinosa

Vampiro: A Máscara sempre foi um jogo focado na mitologia e na cultura europeia, em especial na mitologia bíblica cristã, o que se reflete na forma muito particular como explora como tema central os conflitos éticos entre a Besta interior e a Humanidade de seus personagens, como já refletimos AQUI. O que não é de surpreende, já que a White Wolf original, empresa criadora do Mundo das Trevas, era uma empresa estadunidense e todos nós, gostemos ou não, estamos imersos na cultura “ocidental” eurocentrada que, de fato, detém a hegemonia mundial pelo menos desde a Era Vitoriana.

Declaradamente, toda a inspiração para a mitologia e o metaplot próprios do jogo buscaram inspiração nos vampiros estabelecidos no imaginário popular por Hollywood, em filmes como Nosferatu (1922), Drácula (1931), Drácula (1958), Fome de Viver (1983), Os Garotos Perdidos (1987) e A Hora do Espanto (1988). Curiosamente, o emblemático Entrevista com o Vampiro (1994) só estrearia três anos após o lançamento da primeira Edição de Vampiro: A Máscara. Tais obras cinematográficas, por sua vez, tiveram como base a literatura gótica europeia do século XIX, em contos como The Vampyre de John William Polidori (1819), Carmilla de Sheridan Le Fanu (1871) e o aclamado romance Drácula de Bram Stoker (1897), nos quais, décadas mais tarde, a famosa escritora estadunidense Anne Rice inspiraria suas aclamadas obras. Esta literatura vitoriana, por sua vez, foi inspirada, em parte, nos mitos clássicos da cultura popular europeia, como o da Empusa e da Lâmia gregas, o da Estrige romana, mas, sobretudo, em tradições eslava do leste-europeu, tradicionalmente marginalizadas no contexto da própria Europa. Contudo, o que pode ser surpreendente descobrir é que, embora quase sempre relegada pelo jogo e dificilmente relacionada aos vampiros no imaginário contemporâneo, as culturas nativas do continente americano tiveram uma influência decisiva e subestimada sobre a forma como imaginamos os vampiros desde a “Era Vitoriana”.

Nos mitos clássicos gregos e romanos, as criaturas que inspirariam os vampiros atuais eram quase sempre figuras femininas, emissárias da ira de divindades como Hécate, sendo criaturas espectrais ou monstruosas dotadas da capacidade de mudar de forma e muitas vezes relacionadas a animais como serpentes ou corujas, que não se restringiam a beber o sangue dos mortais, mas eram capazes devorar suas vítimas.

Já na tradição popular do leste europeu, ao qual, tudo indica, devemos a própria etimologia do termo “Vampiro”, criaturas como os vrykolakas eram associadas aos mortos que se erguiam de seus túmulos por não terem sido submetidos aos rituais fúnebres apropriados, e costumavam ser descritos como corpos em decomposição movidos apenas por seus instintos mais básicos, algo bem mais próximo do que entenderíamos hoje como os zumbis da “cultura pop”. Essas criaturas até mesmo se confundiam com revenants ou licantropos, por sua natureza monstruosa e instintiva, e tendiam a perseguir os vivos e espalhar doenças sem, necessariamente, precisarem se alimentar de sangue.

Até aqui, nada tão glamoroso quanto a simples menção do termo “Vampiro” evoca em nosso imaginário, não é mesmo?

Os vampiros modernos, que dependem desesperadamente do sangue dos vivos para se manterem jovens, sedutores e poderosos, capazes de caminhar com desenvoltura entre os mortais, só surgiriam mesmo na literatura gótica do século XIX, não sem antes incorporar importantes contribuições oriundas do fascínio que a natureza e a cultura dos povos nativos do “Novo Mundo” exerceram sobre o imaginário europeu a partir da “Era Colonial”. E é aí que as coisas ficam realmente interessantes.

A literatura gótica deve parte de sua inspiração aos relatos da “Era dos Descobrimentos”, que capturaram a imaginação popular nas metrópoles europeias ao longo dos séculos XVII e XVIII, relatos sobre civilizações tidas por eles como “exóticas”, povos como os Mexicas, os Maias, os Incas e os Tupinambás cujos tesouros e relíquias, pilhados ao longo de um sangrento processo colonial, inundaram os cofres e museus na Europa, assim como o imaginário e a literatura. Relatos como os de Américo Vespúcio, Gaspar de Carvajal, Hans Staden e Anthony Knivet, que divulgavam uma visão preconceituosa, mistificadora, eurocentrada, fascinante e aterrorizante sobre o “Novo Mundo”, destacando elementos culturais que buscavam ressaltar o caráter supostamente primitivo e selvagem dos povos nativos como a antropofagia ritual dos Tupinambás e os sacrifícios de sangue de Astecas, práticas que em seus próprios termos não eram absolutamente desconhecidas na Europa, mas que no imaginário europeu surgiam como curiosas reminiscências do passado trazidas ao presente por civilizações supostamente “perdidas no tempo”. Essa suposta selvageria e primitivismo, no entanto, contrastava com a riqueza material e cultural dos povos indígenas, exportadas para o “Velho Mundo” em navios abarrotados com ouro, prata e obras de arte que alimentam discussões e especulações até os dias hoje e que, naquela época já alimentavam a propaganda colonial, com mitos como as cidades fantásticas de El Dorado ou Paititi e lagos encantados como Parime e Iaci-Uaru.

Foram tais relatos que mantiveram vivos no imaginário europeu a imagem de seres perdidos no tempo, tão sofisticados quanto sedentos pelo sangue de vítimas incautas, sacrificadas em nome de divindades obscuras, que no imaginário europeu faziam correr rios de sangue do alto de seus templos suntuosos cobertos de ouro e esmeraldas.

Essa inspiração, fruto do fascínio e da distorção das culturas nativas pelo olhar colonial, inspiraria escritores que nos séculos seguintes lançariam as bases, não apenas da literatura gótica, mas para todo o horror e o terror “ocidental” até a atualidade, desde o horror cósmico de H.P. Lovecraft até as aclamadas obra de Stephen King com seu infames clichê dos cemitérios indígenas.

Essa influência, que jamais chegou a ser devidamente reconhecida por Hollywood, com a possível exceção de uma cena emblemática ao final do infame Um Drink no Inferno (1996), pode ser rastreada no “DNA” de Vampiro: A Máscara nas formas padrão da clássica Disciplina Metamorfose. Afinal, como já dissemos, considerando apenas a inspiração das tradições europeias, faria muito mais sentido que o poder permitisse aos vampiros assumirem a forma de lobos, corujas ou serpentes, não a de um morcego, pois morcegos hematófagos são animais presentes exclusivamente no Novo Mundo. O clichê do vínculo entre Vampiros e morcegos que domina o “imaginário pop” na atualidade, ao que tudo indica, foi estabelecido por Bram Stoker em seu livro clássico, bebendo em relatos coloniais sobre a fauna do “Novo Mundo” e em mitos nativos como os dos Camazotz Maias e os Cupendiepes Apinajés.

E apesar de tudo isso, levaria algumas décadas para que o Mundo das Trevas trilhasse o Caminho de volta até essas suas insuspeita raízes abordando as culturas indígenas como algo além de notas de rodapé e suplementos obscuros.

Precedentes canônicos sobre vampiros nativos do Novo Mundo

A primeira referência oficial à vampiros de origem indígenas no Mundo das Trevas foi feita no obscuro suplemento Awakening: Diablerie Mexico (1992), uma aventura pronta para a primeiríssima edição de Vampiro: A Máscara que, no melhor estilo hack’n slash, prometia aos jogadores incautos uma oportunidade de dar um gole na vitae de Mictlantecuhtli, um Mathusalém Grangrel nativo de quarta geração, adormecido sob uma antiga pirâmide maia no México dos anos 90.

As bases para uma representação um pouco menos caricata, no entanto, só viriam mais de uma década depois, com a introdução da linhagem Tlacique na versão revisada do Livro de Clã dos Seguidores de Set (2001), já na terceira edição do jogo, sendo logo seguidos por uma linhagem nativa, igualmente obscura, de necromantes ligados ao clã Giovanni, chamada Pisanob. Estes últimos, no entanto, provavelmente seriam fruto do processo colonial, sendo originalmente Abraçados por algum intrépido Matusalém que decidiu acompanhar os colonizadores em sua jornada ao “Novo Mundo”.

Assim, por muito tempo, no cânone de Vampiro: A Máscara os Tlacique foram estrelas solitárias e renegadas do cenário do jogo para a América pré-colonial, que contava ainda com Grangrel e Nosferatu nativos e genéricos como antagonistas/aliados. Ainda assim, os próprios Tlacique sofriam com com abordagem eurocentrada do jogo e jamais mereceram grande atenção de seus desenvolvedores, embora tenham se mantido canônicos na Edição Comemorativa de Aniversário de 20 anos de Vampiro: A Máscara, aparecendo no suplemento Lore of the Clans (2015).

Só em 2017, nós que viríamos a formar a Equipe da Brasil in the Darkness, tomamos a tarefa de compilar toda a informação oficial sobre a linhagem e propor nossa própria abordagem, buscando tornar sua representação mais digna do legado das grandes civilizações nativas do Novo Mundo. Assim, lançamos nosso Livro da Linhagem Tlacique através do Storytellers Vault, que você pode adquirir no link na imagem abaixo:

https://www.storytellersvault.com/product/227967/Livro-da-Linhagem-Tlacique

Legados Afogados: um passo importante no caminho da representatividade.

Em 2018, no suplemento oficial para o V20 intitulado, Beckett’s Jyhad Diary, que atualizou o meta-trama do jogo para a os dias atuais preparando o cenário para o lançamento do V5, foi introduzida no cânone do jogo uma maior preocupação com a diversidade e riqueza cultural dos povos nativos da América, com a apresentação dos Drowned Legacies (Legados Afogados).

Eles são apresentados como uma nova e complexa sociedade de Membros, análoga aos Laibon africanos, que explora não só o tema da herança dos povos nativos da América, mas a introdução de novas criaturas, poderosas, ameaçadoras e quase completamente desconhecidas, mesmo para os personagens e jogadores mais experientes. O que resgata o clima de perigo iminente e conspirações intrincadas que encantou os fãs desde o lançamento da primeira edição do jogo.

Infelizmente, toda a boa intenção dos desenvolvedores, ao incluir no jogo representações de culturas que fujam ao etnocentrismo judaico-cristão-ocidental, ampliando o horizonte de possibilidades do jogo, esbarra na superficialidade com a qual os Legados Afogados são apresentados.

Se por um lado essa superficialidade poderia conferir liberdade criativa aos narradores para explorá-los como bem desejarem em suas crônicas, o desconhecimento geral sobre a história e a cultura dos povos nativos que deveria inspirar essa adição no cenário dificilmente tornará os Legados Afogados mais do que variantes bizarras e genéricas de velhos clãs e linhagens já conhecidas pelos jogadores, sem nenhuma identidade própria.

Narradores realmente dispostos a explorar tais elementos precisarão empreender uma trabalhosa pesquisa, uma vez, que o material canônico não oferece muito suporte para entender as peculiaridades da “Sociedade Afogada”. Nem sequer a utilização do termo “Afogado”, usado por essas criaturas para se referirem a si mesmas, chega a ser explicado. E ao empreender tal pesquisa, tais narradores dedicados se depararão com o fato que, ao fim e ao cabo, os Legados Afogados bebem muito mais na fonte do “folclore” latino-americano, resultado do sincretismo de elementos das culturas europeia, africana e indígena, do que, propriamente, na história e na cultura dos povos nativos pré-coloniais, como seria de se esperar para criaturas capazes de atravessar os séculos. O que trás a curiosa consequência de nos fazer parecer que a “pegada” conferida aos Legados Afogados guarda muito mais relação com as temáticas e os conceitos de Changeling: O Sonhar, outro dos jogos do Mundo das Trevas, do que com o próprio Vampiro: A Máscara.

Você pode adquirir o Beckett’s Jyhad Diary, original, em inglês, no link na imagem abaixo:

https://www.storytellersvault.com/product/225322/V20-Becketts-Jyhad-Diary

Uma abordagem de fãs buscando aprofundar os Legados Afogados

Nos links abaixo você pode conferir uma abordagem elaborada por nossa equipe, que busca aprofundar os Legados Afogados mantendo tudo o que foi estabelecido pelo cânone do jogo, mas tentando fazer justiça ao legado dos povos indígenas ao incorporar elementos de suas cosmovisões em uma perspectiva anticolonial:

Legados Afogados-Parte1: Apresentação

Legados Afogados-Parte 2: Cosmovisão

Legados Afogados-Parte 3: Sociedade

Arte de Luis Eduardo, original para Brasil in the Darkness.

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Então confira também os artigos e traduções listados abaixo:

Sobre os Tlacique, cainitas nativos da América Pré-colombiana em Vampiro A Máscara

Pisanob: A linhagem asteca do Clã Giovanni

Laibon: Os exóticos mortos-vivos africanos de Vampiro A Máscara

Kuei-jin: Vampiros do Oriente na América do Sul

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