Entre Nós (2013)

O trigo do cinema nacional

Matheus Massias
6 min readApr 11, 2014

O cinema brasileiro está numa safra muito boa recentemente. Em partes, claro, o resto das uvas está todo estragado. Tendo em mente O Som ao Redor, Cine Holliúdy, Tatuagem e Alemão, por exemplo, que estão entre tantos outros filmes brasileiros bons, que eu ainda não vi, mas que por informações exteriores pude ter uma noção mínima do que se passa, além do esperado Praia do Futuro, de Karim Aïnouz (Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo; O Abismo Prateado), é no momento atual que o cinema nacional ficou mais rico com Entre Nós (2013).

Trailer oficial do filme.

O filme aborda uma gama de coisas que tornam sua narrativa incrível, mesclando conflitos entre amigos, tragédia, passado e presente e seus distintos contextos, reviravoltas, ambições literárias, adicionando toques simbólicos diferenciais nos mínimos detalhes. Divido em 1992 e 2002, o filme nos apresenta um grupo de amigos com ambições literárias, uns a mais, outros a menos, como se compusessem um retrato beat brasileiro dos anos 90, só que composto por almofadinhas e filhinhas de papai, que regam suas escritas como muita bebida e fumo.

Verde e tom jovial.

O ambiente, com muito verde e montanhas, casa rústica, é uma investida na fotografia do filme, que invade os olhos do espectador com raios de sol que atravessam as árvores, formando espectros luminosos, passam um ar feliz e contagiante dos ali presentes. Aliás, há dois casais, que tem o sexo como companhia e até mesmo os outros três amigos que sobram pensam em fazer algo legal entre eles, e é nesses três que o filme mais foca, mas nunca deixando de lado desenvolver e apresentar conflitos entre os demais; isso, na verdade, é um dos pontos fortes no filme, o modo como o roteiro e, consequentemente, a narrativa, são enriquecidos a partir dos problemas de cada um, não só enfatizando as mágoas e preocupações de um ou dois.

Dessa forma, o filme nunca cai, nunca fica chato, sempre aborda algo novo, de uma personagem diferente, mesmo tendo apenas sete ao total, e essa investida só é possível pelo antes e o depois, mais no depois, quando os amigos se reencontram e uma miríade de conflitos é estabelecida por causa de uma tragédia: a morte de um dos amigos. A personagem de Caio Blat, Felipe, acompanha Rafa (Lee Taylor), que decide sair de carro para comprar mais bebida, mas Felipe não o deixa ir só naquele estado. Os dois sofrem um acidente na estrada, Felipe se salva, mas ali é o fim da linha para um futuro escritor que estava com o final de seu livro pronto. E, se o filme cai em algum momento, é quando a personagem de Blat tem aquela reação ao ler o final do manuscrito de Rafa, é um tanto forçado, e risível.

Felipe salva o amigo e o manuscrito, o carro pega fogo e essa marca fica para sempre na personagem de Blat. Pode não ser um fator estritamente simbólico, dependendo da etimologia que usamos para interpretar a palavra, mas o momento em que os amigos escrevem cartas e as enterram sem que nenhum deles possa saber o conteúdo delas é algo substancial no filme. O que tem ali escrito em cada carta? Ela é endereçada a alguém? Algum segredo? Esperanças? Medos? Ninguém sabe até o momento em que os dez anos se materializam.

Dez anos depois: rostos diferentes, mas mesmas pessoas?

Felipe, Silvana, Lúcia, Gus, Cazé e Drica se reencontram, é interessante notar o começo do filme, que é justamente quase o final dele, onde se tem um close na personagem de Blat, de óculos escuros, mãos tremendo, acendendo um cigarro, fumando de forma nervosa, e o som é executado de forma primordial, é interessante notar os diversos pormenores sonoros que o filme proporciona. A diegese sonora do filme é excelente, assim como sua trilha sonora, composta ora de instrumentais que se tornam ambientes, fortes, presentes, dependendo da cena, ora pelos próprios atores, que cantam, favorecendo mais uma vez o som diegético do filme.

A segunda parte de Entre Nós, do reencontro, é cheia de conflitos, próprios e entre as personagens. Cutucar o passado, a morte do amigo, é como cutucar uma onça com a vara curta; ou, pisar num formigueiro, algo que, ironicamente, acontece no filme. Felipe escrevera e publicara seu livro, e obteve certo sucesso com isso, está casado com Lúcia (Carolina Dieckmann), que fora namorada de Gus (Paulo Vilhena), e esse romance do passado vai ter tensionado de forma obstinada. Cazé e Drica casaram, mas nunca tiveram filhos, o maior problema do casal. Gus, solteiro, passa por uma forma de crise existencial, misturada com leve depressão. Silvana (Maria Ribeiro) é a mais liberal do grupo, morou fora do país, absorveu culturas e hábitos, e outros gostos.

A fotografia do filme, que era clara, e acontecia nas externas, agora dá prioridade para as internas em sua maior parte, e é mais escura, com pouca, ou até mesmo sem nenhuma iluminação artificial do extracampo, eu diria. O trabalho de câmera, que arrisca em vários momentos na câmera de mão, é executado de forma precisa e condizente com o que se passa; através de muitos planos fechados, os diretores (que provavelmente são irmãos, Paulo e Pedro Morelli) intensificam os conflitos entre as personagens a partir desse recurso de enquadramento; a cena em que eles estão jantando, por exemplo, faz lembrar bastante o que o diretor Quentin Tarantino faz em cenas de mesa como em Cães de Aluguel e À Prova de Morte, quando as personagens estão conversando e a câmera vai escorregando de forma circular entre elas, e a partir de suas falas, a mise-em-scène assume um shot-reverse-shot bem conjunto, e não estrutural, como a própria palavra sugere, como um toma lá, dá cá.

O título que o filme propõe, Entre Nós, desaba na segunda parte, quando a personagem de Blat é interrogada pelos amigos, que querem saber detalhes do livro, além de remexerem a memória que tem do amigo morto. Felipe (Blat) ajuda a família do rapaz, com uma quantia simbólica todo mês, algo que sua mulher (Dieckmann) nunca soube e começa a desconfiar, assim como quer saber o que está acontecendo. Uma iminente desconfiança de plágio paira no ar, e partir disso o humor e a relação entre os amigos (e casais) muda completamente. Tudo dá errado, a comida que Gus (Vilhena) tenta fazer; Drica pisa no formigueiro; Felipe, Cazé e Gus perdem no futebol para os caseiros; o clima da sauna fica pesado, e assim por diante. Um dos pontos simbólicos no filme é o besouro, que de barriga para cima está sempre em perigo, querendo voltar a ter os pés no chão, voltar a andar, funciona perfeitamente como metáfora para as personagens.

O momento (talvez um dos mais esperados) em que eles cavam para pegar as cartas que nunca ninguém leu é tentador também, é criada uma ânsia ao redor disso, mais nos espectadores do que nas personagens, que tem medo de revelar seu próprio conteúdo ou descobrir algo; é o momento em que Felipe tenta esclarecer a situação envolvendo seu livro também. Entre Nós é uma riqueza de detalhes e discussões, literárias e políticas, da diferença da geração dos anos 90 e sua amadurecida até os anos 2000 e a então atual conjuntura de 2002, o governo Lula, a falta de discurso, a música do passado, a questão de que até que ponto a amizade pode perdurar, e tantos outros fatores instigantes. Entre Nós é um grande filme em 2014 e, igual o espaço de tempo de sua história, daqui a dez anos, em 2024, será um clássico nacional.

Florianópolis, 10 de abril de 2014

M. B. Massias

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