Novembro (iii)

Primeiro a construção (i), depois o despedaçamento (ii) e por fim a revolução.

Glauber Cruz
Construtor
9 min readDec 1, 2017

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cena do clipe da música “A Carne” de Elza Soares

Por mais que você corra irmão
Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o x da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala Jão
Bomba relógio prestes a estourar

Negro.

A palavra caiu pesada sobre mim, no exato momento em que acordei. A minha primeira certeza da vida, a minha primeira certeza do dia. Negro. A palavra me despedaçou em liberdade. Mil pedaços pretos ao meu redor. Ressignificados. Reinventados. Rexistentes. Negro. A palavra me envolveu quente como um abraço ancestral, potente como o bater de um tambor, necessária como o quebrar de correntes. A inspiramos assim, simples. Cinco letras, duas sílabas. A expiramos assim, gigante. Negro. A brava carga de lanceiros nas nossas guerras diárias.

Para nós negros, lutar não é uma escolha. Não é uma opção que fizemos, não é um caminho que traçamos por livre e espontânea vontade. Para o negro, a luta é inerente ao corpo, tão natural quanto respirar. Um carimbo no nosso peito preto recém-nascido. Já naquele momento, o sangue que nos aquece, a pele que nos envolve e o ventre do qual saímos gritam: lute!

E lutamos. Afinal, como William Waack deve saber do alto da sua sabedoria sobre negritude, lutar é coisa de preto. Encaramos esse verbo de forma íntima, já que ele faz parte de nós em todos os tempos verbais e históricos. Pretérito, presente e futuro. Lutamos. A ideia de lutar para resistir nos perpassando de muitas maneiras. Um abrir de olhos, por exemplo. Tão banal e difícil de relacionar ao sentido potente da palavra “luta” mas que acaba perdendo a palidez de sua simplicidade quando encaramos os números do Atlas da Violência de 2017, que diz que os indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídio são negros. A cada 100 corpos mortos, 70 são negros. A cada 100 vidas finalizadas e violentadas, 70 são negras. Trinta pares de olhos que se abrem toda manhã indo na contracorrente das estatísticas forjadas pela desigualdade.

Movemos então nossos corpos pretos para a rua. Aqui a luta não é banal, pelo menos não quando se depara com o choque da Brigada Militar. Lutamos embalados pela indignação de vermos um corpo negro morto apenas por ser negro. Chutamos bombas de gás lacrimogênio embalados pela raiva de vermos um corpo negro arrastado displicentemente apenas por ser negro. Seguimos, sob olhares tortos, embalados pela indignação de vermos um corpo negro preso apenas por ser negro. Rafael foi libertado, mas de quantos outros Rafael o Brasil não ouve falar? De quantos outros Rafael o Brasil não quer falar?


O tempero do mar foi lágrima de preto
Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto
Só desafeto, vida de inseto, imundo
Indenização? Fama de vagabundo
Nação sem teto, Angola, Keto, Congo, Soweto
A cor de Eto’o, maioria nos gueto
Monstro sequestro, capta três, rapta
Violência se adapta, um dia ela volta pro cêis
Tipo campos de concentração, prantos em vão
Quis vida digna, estigma, indignação
O trabalho liberta, ou não
Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu? Extinção
Depressão no convés

E lutar, essa coisa tão visceral e tão inerente à nós, nos impulsiona, nos dá uma sensação de urgência, uma ansiedade para fazer com que as coisas sejam diferentes. Que as crianças negras não tenham que ouvir que são macacas e que tem o cabelo de palha. Que os adolescentes negros não tenham que primeiro passar por um processo doloroso de ódio de si mesmo para só depois passar a gostar de si. Que o jovem negro não seja morto, pela polícia, ou pelo tráfico, ou por uma sociedade que vomita sobre consciência humana e democracia racial. A luta nos impulsiona, nos deixa com sangue nos olhos. Nasce no fundo do peito aquela vontade feroz de abalar cada uma das estruturas violenta e historicamente impostas por um Estado criminoso. Nos despedaçamos para depois despedaçar o país racista no qual fomos gerados.

Ocupamos os espaços que nos foram relegados, chutamos a porta da Reitoria Grande em todos os cantos do Brasil. Os racistas enlouqueceram — todos eles, o declaradamente racistas e os enrustidamente racistas. Bradaram sobre desigualdade, sobre como estaríamos sendo “privilegiados”, sobre como os seus espaços de excelência estariam ameaçados. Preocupações tolas, desculpas que não conseguiam mascarar o seu racismo. Cru e puro. Picharam paredes nos mandando de volta para as cozinhas dos restaurantes universitários. Os ensurdecemos com o som dos tambores ecoando em suas salas de aulas tão alvas, tão donas de uma sabedoria única. Única e racista.

UFRGS Negra. Celebração de 20 de novembro reuniu estudantes, professores e servidores técnicos negros da universidade em uma foto. (foto de Ramon Moser -DEDS/UFRGS)

Lutar faz com que tenhamos a percepção de quem e o que somos na história desse país parido pela violência e pela exploração. A carne (negra) estilhaçada de nossos ancestrais mergulhou na terra e se enraizou. Mergulhou tão fundo, enraizou tão fundo, que não há como pensar na formação do Brasil sem pensar no povo negro. Não existe Brasil sem o povo negro. Queremos a história de nossos ancestrais, que é também a nossa história, nos livros de história, ao lado do capítulo dedicado às imigrações alemã e italiana. Queremos falar sobre a importância do povo negro não só em novembro. Nossa luta não é limitada por um espaço de trinta dias, nossa luta respinga, antes de 1º de novembro, depois de 30 de novembro.

Há quanto tempo nóis se fode e tem que rir depois
Pique Jack-Ass, mistério tipo Lago Ness, sério és
Tema da faculdade em que não pode por os pés
Vocês sabem, eu sei
Que até bin laden é made in usa
Tempo doido onde a KKK, veste Obey (é quente memo)
Pode olhar num falei?

Lutar nos inspira, especialmente quando olhamos com olhar de reverência para as mulheres que nos pariram e que nos criaram. Donas de uma sabedoria só delas, de quem carregou (e ainda carrega) nas costas o peso do racismo e do machismo. Mulheres que amam, embora não tenham sido ensinadas a mostrar (ou pior, tenham sido ensinadas de que não era necessário mostrar) e que sobrevivem aquecendo a sobrevivência de seus filhos e netos e bisnetos e além.

E lutar também nos faz sentir vontade de não precisar lutar mais, de degustar o sabor de um país e de um mundo menos desigual e racialmente violento. A luta faz parte de nós, mas imaginem que fantástico seria se tivéssemos o direito de nascer sem ter que obrigatoriamente ter que lutar para ter o mínimo de respeito, de direito, de dignidade. É na construção de um mundo assim que a nossa luta se baseia, e é na construção de um mundo assim que a luta daqueles que não são negros precisa se basear também.

O Brasil precisa discutir as suas relações raciais. E essa discussão não deve ser do jeito que é feita hoje, feita pelos negros, para os negros. O racismo não é um problema do negro, é um problema que nos é externo e que nos afeta. O branco brasileiro precisa se desligar da ideia tola de que vivemos em um país racialmente democrático, que as pessoas tem as mesmas oportunidades, os mesmo acessos. O branco brasileiro precisa deixar de lado a certeza de que não é racista, certeza que o deixa em uma posição cômoda e vazia de “estou fazendo minha parte”, que o impede de entrar de fato na discussão e desse jeito mudar o estado das coisas. Não basta, meus queridos amigos brancos, dizer que não é racista. É preciso mostrar que se quer exterminar o racismo.

A branquitude precisa parar de relativizar expressões que corroboram o racismo só “porquê são expressões”. A língua é viva, a palavra é dotada de uma carga simbólica muito potente para não ser levada a sério. Portanto (só para citar um exemplo) a tua garrafa de cerveja gelada não é a canela de um pedreiro; a tua garrafa de cerveja gelada é apenas uma garrafa de cerveja gelada. Não é a canela de um pedreiro, que é negro, e que fica suja de poeira. Essa canela suja de poeira é o corpo que emoldura uma existência, concretiza uma vida, é um território. Caso as pessoas não saibam, o Brasil passou por um processo de escravidão que durou trezentos anos. Quase trezentos anos onde os negros não tinham direito sobre o próprio corpo. A escravidão acabou e no momento em que se usa o corpo negro como expressão, nem a plena existência livre do escárnio, da objetificação e da relativização o negro e seu corpo têm. No momento em que se ataca o meu corpo, mesmo numa expressão “banal”, se reafirma o racismo, o mesmo racismo que há pouco mais de um século desprovia o negro escravizado do direito básico ao seu corpo.


Nessa equação, chata, policia mata? Plow!
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
Meu sangue na mão dos radical cristão
Transcendental questão, não choca opinião
Silêncio e cara no chão, conhece?
Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece
Vence o Datena, com luto e audiência
Cura baixa escolaridade com auto de resistência
Pois na era cyber, ceis vai lê

Repense. Repense de verdade, não apenas porque é cool ser da tribo dos desconstruídos, mas porque é necessário. Repense o seu “não curto negros” homem branco gay; repense o seu “mulata boa pra sexo” homem branco hétero; repense o “não sou tuas nega” mulher branca. Façam todos vocês um profundo trabalho espiritual antes de sair de casa para evitar tremer toda vez que um homem negro cruzar seu caminho. Façam um esforço para não ir na direção do primeiro negro que surgir na frente de vocês dentro de uma loja, achando que ele é funcionário (por mais incrível que possa parecer pra vocês, um negro dentro de uma livraria pode ser sim um negro comprando livros). Façam um esforço para esquecer a ideia de falar com uma mulher negra na defensiva, já que todas as mulheres negras adoram um barraco. Tentem (pelo menos tentem) não passar a mão na cabeça do amiguinho que faz piada racista. Tente também não ser o amiguinho que faz a piada racista, se bater aquela vontade descontrolável de fazer “aquela piadinha inofensiva, que não agride ninguém” pegue a piada e enfie ela em algum lugar bem distante dos ouvidos alheios, sussurre para si mesmo e veja o quão estúpida ela é. E o quão racista você pode ser.

Queiram de verdade mudar as coisas. Queiram entender o sistema carcerário brasileiro, queiram entender que ele é falido e que só pavimenta a desigualdade e que financia o genocídio da juventude que é pobre e negra. Queiram entender que a saúde da população negra precisa de um olhar diferente, especialmente psíquico. Queiram entender que não são vocês que decidem o que é e o que não é racismo e quando uma pessoa negra pode ou não ficar ofendida — essa decisão simplesmente não cabe a vocês. Queiram entender que a falácia da consciência humana é uma falácia burra. Que consciência humana que pode ter um país absurdamente desigual como o Brasil? Que consciência humana pode ter um país que é estruturalmente racista?

Queiram entender, esse é o segredo. Como os liberais políticos brancos adoram sugerir, é só questão de querer. Se não quiserem nos ouvir, tudo bem. Procure o amigo branco mais próximo que entende, ele vai lhe explicar. Não concordo, mas até imagino o quão difícil é para uma pessoa branca entender o que uma pessoa negra passa e sente, especialmente quando é falado por uma pessoa negra. Taís Araújo quem o diga.

Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver
Que eu faço igual Burkina Faso
Nóis quer ser dono do circo
Cansamos da vida de palhaço
É tipo Moisés e os hebreus, pés no breu
Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu (cê é loco meu)
No veneno igual água e sódio
Vai vendo sem custódio
Aguarde cenas do próximo episódio
Cês diz que nosso pau é grande
Espera até ver nosso ódio

Não há outra forma de exterminar o racismo senão eliminarmos o racista enrustido que vive em nossas entrelinhas. Não há outra forma de viver em um país minimamente justo se não eliminarmos o racismo que existe nas entrelinhas do seu cotidiano, das suas relações, da sua história. E não há outra forma de chegarmos nessa realidade de justiça e igualdade racial se não for pela luta. Lutando, sopramos um vento sobre o calor dos uniformes que nos invisibilizam, com salários precários e atrasados, vistos como “eles”, mergulhados em limpeza e segurança — alheios. Lutando, gritamos que não vamos aceitar a morte de nossos irmãos, nossos filhos, nossas mães, nossas irmãs. As coisas precisam mudar, vocês precisam parar de nos matar, de nos invisibilizar, de nos apagar. Vocês vão parar.

Lutando, começamos as nossas pequenas revoluções, tão íntimas, tão coletivas. Focos de incêndio na periferia povoada na sua grande maioria por peles e vidas e histórias e dores pretas. No dicionário, o verbete da palavra re.vo.lu.ção diz: “transformação radical, profunda e completa de uma estrutura política, econômica e social”. Se a revolução não for preta, eu não sei de que cor ela será.

Seguimos. Construídos, despedaçados, revolucionários.

Negros.

Por mais que você corra irmão
Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o x da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala Jão
Bomba relógio prestes a estourar

Letra da música “Boa Esperança” de Emicida

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