A anatomia de um recorde: Queermuseu no Parque Lage
Há exatamente um ano se consolidava um novo recorde no financiamento coletivo no Brasil. Queermuseu no Parque Lage arrecadou R$ 1.081.176 com o apoio de 1.678 pessoas na plataforma da Benfeitoria, se tornando a maior campanha em plataformas de financiamento coletivo de recompensa no país.
Depois de fechada em Porto Alegre, a exposição Queermuseu foi censurada pelo prefeito do Rio sob a alegação de que “o carioca não quer ver a exposição”. Mas o carioca não foi perguntado.
Mais que arrecadar o dinheiro necessário para montar a exposição, o financiamento coletivo era uma forma de fazer a pergunta que ficou no ar: Quem quer queer?
Uma campanha cheia de aprendizados, na qual tivemos a oportunidade de colocar à prova tudo aquilo que conhecemos sobre o crowdfunding. Um ano depois, com o recorde estabelecido, a exposição realizada, a resposta dada ao prefeito e algum distanciamento, podemos olhar para os números e entender a cara dessa campanha.
Narrativa
O primeiro grande aprendizado foi sobre a importância da narrativa. Queermuseu no Parque Lage não era apenas uma campanha pela reabertura de uma exposição. Era um posicionamento pela liberdade de expressão e contra a censura.
O parágrafo de abertura do texto dava o tom.
Em poucas frases, já há várias informações importantes. Além da história da exposição, que era importante por ser confusa para muita gente àquela altura, o texto falava dos objetivos da curadoria e destacava um ponto crucial: as acusações eram baseadas em mentiras e suposições falsas.
A grande sacada foi posicionar, a partir daí, a campanha como uma pergunta. Se as pessoas não quisessem ver Queermuseu, não apoiariam a campanha, que não bateria a meta e todo o dinheiro seria devolvido inteiramente para os apoiadores.
A multidão deveria decidir.
Estratégias
Uma lição que muita gente insiste em não aprender: crowdfunding é nicho.
Muita gente acha que o objetivo é tentar uma divulgação no Maracanã lotado… Se o seu projeto for sobre futebol, ótimo. Se não for, não vale a pena.
Divulgar não é atirar para todos os lados, gritar sobre a campanha aos quatro ventos. É preciso saber com quem a campanha quer falar, onde e como.
As estratégias traçadas desde o início deram certo. Sabíamos com quem queríamos falar, planejamos como e definimos com muito cuidado onde. Com um acompanhamento dia a dia e alguns ajustes de rota, fomos capazes de extrair o máximo potencial da arrecadação.
Apoios por dia
Um dos princípios mais importantes do financiamento coletivo é a largada forte. O início da campanha é fundamental para garantir o sucesso em atingir a meta.
No caso de Queermuseu no Parque Lage, o primeiro dia concentrou 15% dos apoios totais da campanha. Somando os três dias úteis subsequentes, temos mais 15% dos apoios. Ou seja, mais de 30% dos apoios vieram nos primeiros dias.
Podemos ver no gráfico abaixo claramente o comportamento em U, que é o esperado no financiamento coletivo: largada forte, chegada forte e um período fraco no meio, que chamamos de vale da morte.
A campanha durou 58 dias. Os 30 dias do meio da campanha, o vale da morte, representaram 391 apoios, apenas 22% do total.
É justamente por isso que campanhas mais longas não significam necessariamente arrecadação maior. Em vez de aproveitar ao máximo o potencial da largada e da chegada, esticar o tempo de campanha apenas alonga o vale da morte.
Dois meses já costuma ser uma campanha longa, mas no caso de Queermuseu no Parque Lage foi importante porque a ideia era organizar um leilão de obras de arte perto do fim da campanha — e essa organização demandava tempo.
O leilão fazia parte das estratégias de grandes apoiadores. Sabíamos que esse diferencial seria importante para bater a meta e, desde o início, foi um foco importante do planejamento.
Uma campanha de Tubarões
Alcançar a meta mínima já colocaria a campanha entre as maiores do Brasil. Sabíamos que era ousado
Dividimos o financiamento coletivo em dois tipos de apoiadores: Microapoiadores (apoiam com menos de R$1.000) e Tubarões (apoiam com R$1.000 ou mais).
Não se deve subestimar os Tubarões. Eles são cerca de 1% dos apoiadores no financiamento coletivo, mas contribuem com 20% do valor que gira nas plataformas. O apoio médio de Queermuseu foi, sim, bastante alto. Como planejado. Várias recompensas eram obras de arte que custavam, no mínimo, R$ 1.500 dentro da campanha.
Quando colocamos o valor junto com os apoios, vemos três picos importantes de alto valor arrecadado com poucos apoios. Isso mostra que os grandes apoios não chegaram de maneira aleatória.
O primeiro pico foi um jantar de arrecadação focado em grandes apoiadores e os outros dois são associados ao leilão das obras e ao show que Caetano Veloso ofereceu para a campanha.
O apoio médio dos Microapoiadores ficou próximo da média das plataformas, que é em torno de R$ 100. O apoio médio dos Tubarões foi alto, mas nada absurdo. O que fez a diferença foi a quantidade deles.
Os valores de apoio mais escolhidos foram R$ 50 (409 vezes - 24% de todos os apoios), que dava direito a uma visita antecipada; R$ 20 (406 vezes - 24%), que colocaria o nome do apoiador nos créditos; e R$180 (251 vezes - 15%), que era o catálogo da exposição no Parque Lage.
Distribuição geográfica
O Rio de Janeiro aparece disparado na frente, com quase dois terços dos apoios. Um resultado natural, considerando-se que a exposição aconteceria no Rio. Mesmo assim, considerando que o tema da campanha não era apenas a exposição, mas a censura, esperávamos um engajamento maior a partir de outros estados também.
O que esse resultado mostra é a importância da ativação de redes.
Em segundo lugar vem o Rio Grande do Sul, graças principalmente a um enorme esforço de divulgação do curador da exposição, Gaudêncio Fidélis.
Perfil dos apoiadores
A distribuição por idades é bem interessante. Os mais jovens tiveram pouca participação, mas há uma distribuição bastante homogênea a partir dos 30 anos. Isso mostra que a campanha teve apelo com públicos bastantes distintos.
A campanha conseguiu alcançar um público que não é tão ligado ao financiamento coletivo. Na pesquisa realizada com os apoiadores depois do término, 15% disseram estar apoiando uma campanha pela primeira vez e 46% tinham apoiado menos de cinco campanhas.
Esse é também um dos papéis das campanhas grandes: popularizar o financiamento coletivo.
Muitas vezes há a crítica de que projetos maiores, que poderiam buscar outras fontes de financiamento, “tiram a atenção” dos projetos menores nas plataformas. Na verdade, eles atraem um novo público que passa a conhecer melhor e se relacionar com o crowdfunding.
Quando perguntamos se a pessoa apoiaria outras campanhas depois, o resultado fala por si só.
Conclusões
O caso de sucesso mostra que o financiamento coletivo no Brasil pode mais.
Nos últimos três ou quatro anos, o ecossistema caminhou por caminhos tortuosos, com muita ansiedade para encontrar grandes campanhas que chamariam a atenção de todos. Em vez de trabalhar pela construção de uma cultura sólida, o mercado acabou entrando, muitas vezes,na armadilha da pressa.
Com isso, várias experiências frustradas afastaram grandes instituições e grandes projetos que poderiam aproveitar a dinâmica do crowdfunding não apenas para arrecadar dinheiro, mas para mudar a forma de engajamento com seus públicos.
Queermuseu no Parque Lage vem para mostrar que a porta está aberta.