3x4: Marcus Vilar

Do documentário à ficção, entre curtas e longas, a trajetória na arte e na vida de uma das figuras mais irreverentes e criativas do cinema paraibano

“Marcus? Vi lá”. O nosso personagem da 3x4 é conhecido por seus trocadilhos, que já viraram folclore local — dentre outros atributos. Nascido e criado em Campina Grande, torcedor entusiasmado do Treze Futebol Clube, do tipo que usa o gentílico-neologismo ‘campinagrandense’, para falar da sua origem sem citar o nome do Campinense, maior rival dos trezeanos, ele se mudou para João Pessoa aos 17 anos de idade. Na capital paraibana, instado pela paixão pelo esporte, entrou na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 1979 para cursar Educação Física, mas seria logo ‘fisgado’ por uma outra paixão: o cinema.

Através do Núcleo de Documentação Cinematográfica (NUDOC), surgido em 1979, Marcus Vilar tomou contato com o cinema realizado na Paraíba e se interessou pelo modo de produção independente de audiovisual, que na época era feito com Super 8.

Paralelo ao curso, ele se envolveu em atividades e participou de várias ações do Núcleo, que tinha como referência o Cinema Direto do cineasta e antropólogo Jean Rouche e firmou convênio com o Atelier de Réalisation Cinématographique Varan, entidade francesa.

Já como funcionário da UFPB, Marcus pediu transferência do setor de Educação Física para o NUDOC e realizou o curso de Cinema Direto: foi sua porta de entrada no universo da produção cinematográfica. Dessa experiência surgiu seu primeiro filme, Do Oprimido ao Encarcerado (1982), filmado em Super 8 e baseado no livro da professora Maria Salete Van Der Pool, Alfabetização de Adultos — Sistema Paulo Freire: Estudo de caso num presídio. No curso do NUDOC, era necessário passar por todas as etapas de realização de um filme e assim fez Vilar: foi ao presídio do Roger, em João Pessoa, fazer a pesquisa, depois escreveu o roteiro, filmou e editou.

Inebriada pela experiência do cinema, a trajetória de Marcus Vilar jamais seria mesma. Ele mesmo afirma que seu processo de imersão no circuito audiovisual se deu de forma ampla e intensa. “Fui me envolvendo com a sétima arte, que entrou pelos ‘sete buracos da minha cabeça’”, relembrou sobre sua iniciação.

Três anos após o curso do NUDOC, em 1985, ele iria para a França para um estágio no Atelier Varan, junto da cineasta paraibana Elisa Cabral. Retornaria à entidade em 1986, ao lado de Bertrand Lira e Torquato Joel. Na associação francesa, Vilar concluiu os cursos de produção cinematográfica nos suportes de 8 e 16 milímetros.

Cena do filme Á Arvore da Miséria, de Marcus Vilar

Como integrante da geração superoitista da Paraíba, Marcus Vilar realizou alguns filmes emblemáticos, que são verdadeiros registros históricos e antropológicos de uma época. Além do já citado Do Oprimido ao Encarcerado, vale destacar dessa época os documentários Quando um Bairro não se Cala (1983), sobre os movimentos culturais e políticos no bairro de Jaguaribe, em João Pessoa (PB), e Abril (1984), que registra as manifestações pelas Diretas Já! na capital paraibana.

Muito além das narrativas documentais, o cinema de Marcus Vilar é referenciado por obras de ficção — algumas delas estão entre as mais icônicas do circuito curta-metragista nordestino e nacional. É o caso dos filmes A Árvore da Miséria (1998), divertida adaptação de uma fábula sobre a morte e O Meio do Mundo (2005), um ‘conto’ sobre o amadurecimento de um jovem e sua iniciação na vida sexual. Ambos foram filmados em 35 mm.

A ficção mais conhecida de Marcus, no entanto, é A Canga (2001). Baseado num romance escrito pelo ator W.J. Solha, que interpreta o protagonista do filme, o curta foi filmado em 35 mm e contou com a fotografia de Walter Carvalho, numa composição visual até hoje elogiada. A equipe contou ainda com a presença de Lula Carvalho, filho de Walter e hoje também um fotógrafo de cinema premiado e reconhecido internacionalmente — nessa produção, ele fez assistência de câmera.

No enredo de A Canga, um patriarca opressor e violento obriga sua família a trabalhar literalmente como gado, puxando um carro-de-boi, sob um sol inclemente e chicotadas. Por esse filme, Marcus é até hoje citado e reconhecido, dada exibição ostensiva dele em festivais e mostras no Brasil e no exterior e também em oficinas e cursos, como referência de composição e linguagem cinematográfica.

Outro título expressivo entras as ficções dirigidas por Marcus é O Terceiro Velho, adaptação de um conto de Antônio Carlos Viana, com a atriz Kassandra Brandão como protagonista e com Fernando Teixeira [Baixio das Bestas (2006), Aquarius (2016)] e José Dumont [A Hora da Estrela (1985), Narradores de Javé (2002)], atores paraibanos consagrados, o último um dos nomes de grande relevo no cinema nacional.

Cena do filme O Meio do Mundo, de Marcus Vilar

Essencialmente um curta-metragista, Vilar tem dois longas: O Senhor do Castelo (2007) cinebiografia documental de Ariano Suassuna, feita a partir de mais de 15 anos de registros de entrevistas com o escritor e Jackson — Na Batida do Pandeiro (2019), documentário musical sobre a trajetória do músico paraibano, produzido ao longo de mais de uma década e lançado no ano do centenário do seu nascimento. Foi realizado em codireção com o pernambucano Cacá Teixeira.

Ele tem ainda um projeto de longa de ficção com roteiro pronto: Rita no Pomar, adaptação do romance homônimo do escritor e professor da UFPB Rinaldo Fernandes, feita em parceria com Vinícius Rodrigues. O projeto está no aguardo de editais de fomento para ser viabilizado. Com a crise no setor audiovisual, se encontra parado e sem previsão de realização.

O Curtas Curtas conversou com Marcus Vilar sobre sua filmografia, o atual momento do cinema brasileiro, democratização do acesso ao curta, dentre outros temas. Usando um de seus já icônicos trocadilhos, foi “uma longa conversa sobre curtas” (e algo a mais).

Curta Curtas: Você entrou em contato com a produção de cinema através do NUDOC, da UFPB, instituição onde você estudou Educação Física. Conta pra gente como foi esse processo de “descoberta” da atividade audiovisual e qual era a sua referência de cinema antes de começar a filmar seus primeiros trabalhos.

Marcus Vilar: Antes de pensar em trabalhar com cinema, sempre assistia filmes como um espectador comum, nem imaginava que ia me envolver na parte de realização, nunca tinha passado na minha cabeça. Não tinha referência nenhuma dos filmes clássicos, dos movimentos de cinema no mundo, mas sempre gostei de assistir filmes. Só mesmo com a entrada na UFPB, em 1979, fui me envolvendo com a sétima arte, que entrou pelos “sete buracos da minha cabeça”.

Nessa época estava uma efervescência muito grande, pela criação do Núcleo de Documentação Cinematográfica da UFPB e também pelo convênio criado entre a universidade e o governo francês, no final dos anos 1970, na linha do Cinema Direto. Me deparava com pessoas com câmeras percorrendo o campus da universidade. Também aconteciam mostras de cinema, o que começou a chamar minha atenção e comecei a me envolver com os cineclubes.

CC: Você é uma das personagens do ciclo de Super 8 da Paraíba. Nessa época, filmou o icônico Abril (1984), documentário que registra as movimentações pelas Diretas Já! em João Pessoa. Fala um pouco pra gente sobre sua atuação nesse movimento superoitista e sobre esse filme em específico.

MV: É importante relembrar como surgiu o NUDOC, já que foi no Núcleo de Documentação da UFPB que se deu minha formação em Super 8. Em 1979, a Jornada de Cinema da Bahia, por falta de apoio, não aconteceu na Bahia, mas em João Pessoa. O então pró-reitor e professor Iveraldo Lucena e outras figuras como Pedro Santos, Jurandir Moura, Paulo Melo, Manoel Clemente, João Ramiro Melo, entre outros, foram as pessoas responsáveis por terem trazido a Jornada para Paraíba.

Na ocasião, foi criado o NUDOC e também foi firmado um convênio com a França, que permitiu um intercâmbio entre os dois países. Professores e cineastas franceses vieram ministrar oficinas, todos na linha do Cinema Direto, ligados ao cineasta e antropólogo Jean Rouch e alunos foram para a França entre eles, Elisa Cabral,Torquato Joel, Bertrand Lira, Newton Junior, Everaldo Vasconcelos, Vania Perazzo, Henrique Magalhães e eu.

Cena do filme A Canga, de Marcus Vilar

Em virtude desse convênio, já como funcionário da UFPB, no NUDOC, em 1982, fiz um curso de Super 8 e ao final cada aluno realizaria um filme documentário de curta-metragem. Realizei um filme chamado Do Oprimido ao Encarcerado, sobre o livro Alfabetização de Adultos — Sistema Paulo Freire: Estudo de caso num presídio de Maria Salete Van Der Poel.

Imbuído da minha inquietude e, mais uma vez usando a bitola em Super 8, no ano de 1984 vivenciávamos um período de abertura política e efervescência dos movimentos sociais. Eu e o cineasta Manfredo Caldas, com o apoio do NUDOC, começamos a documentar as manifestações que estavam acontecendo na cidade de João Pessoa, em virtude do processo de votação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que previa eleições diretas para Presidente da República do Brasil, movimento conhecido como Diretas Já!.

A votação aconteceu em 25 de abril de 1984, dois dias antes documentamos toda a preparação das vigílias, entrevistamos populares, artistas, intelectuais, jornalistas e políticos envolvidos neste movimento, bem como registramos as atividades programadas para o evento. Infelizmente a Emenda não foi aprovada, a tristeza tomou conta do Brasil. E este final melancólico foi incorporado ao documentário.

CC: Junto com cineastas conterrâneos Torquato Joel, Bertrand Lira e Elisa Cabral, você fez estágio no Ateliê Varan e morou na França por um período. Como foi essa experiência?

MV: Tive a oportunidade de ir a França por duas vezes, a primeira em 1985, com a professora e cineasta Eliza Cabral, ficamos lá por 3 meses, para participar do Curso em Super 8, e a segunda vez em 1986 fui acompanhado de Torquato Joel e Bertrand Lira, para fazer o curso em 16mm, uma etapa mais avançada do convênio, também moramos lá por 3 meses.

Nos dois cursos, como atividade de conclusão realizamos um documentário. Ambos os momentos foram significativos para minha formação em cinema. Contudo, na segunda vez estava um pouco mais maduro, já tinha uma certa familiaridade com a cidade, sem falar que 16 mm era uma bitola mais profissional e o curso era mais específico, ou seja, eu fiz a direção de fotografia e câmera, Bertrand Lira fez o som direto e Torquato Joel a direção.

Cena do documentário Abril, de Marcus Vilar

A experiência de conhecer outro país aos 25 anos de idade foi muito valorosa, pude conhecer culturas diferentes e conviver com pessoas de vários lugares do mundo, já que na turma tinha alunos de mais outros países. Tive a oportunidade de assistir filmes de outras cinematografias, o que foi ampliando a minha visão enquanto um futuro realizador.

CC: Na sua extensa e profícua filmografia, alguns títulos se destacam. Entre eles, um filme pelo qual você sempre é lembrado é A Canga (2001), adaptado do romance de W. J. Solha (que também protagoniza o curta). Fala um pouco sobre esse filme e o processo de fazê-lo (você contou, por exemplo, com um elenco de peso, composto por medalhões do teatro paraibano e com a fotografia de Walter Carvalho, num trabalho elogiadíssimo).

MV: Em 1998 lancei o filme A Árvore da Miséria e, depois de ter participado de alguns festivais, já me inquietava em querer preparar um novo projeto. Foi quando a Prefeitura Municipal de João Pessoa estava prestes a lançar um edital da Lei Viva Cultura. Já havia conversado com o escritor e ator W. J. Solha sobre a possiblidade de fazer um roteiro sobre o romance dele, A Canga, ele contou que já dispunha do roteiro pronto para fazer um longa-metragem, mas como o edital era para curta, perguntei se ele tinha outro roteiro.

Nessa conversa, ele me falou que achou um curta metragem, em Super 8, que havia realizado há algum tempo, sobre o referido romance, mas que o filme estava em péssimas condições, com o som estragado e algumas perfurações quebradas, mas mesmo assim, consegui assistir. Depois de ter assistido o Super 8 sem som e com a fotografia já desgastada, mesmo nessas condições, o filme me passou uma força fora do normal, era muito visceral e me emocionou muito, pois tratava de questões que faziam parte da nossa cultura e que ainda fazem: as relações de poder, autoritarismo, resignação, machismo, que são temas universais.

Fiquei impressionado com o que acabara de assistir e fui logo propondo a ele da gente refilmar, só que agora na bitola 35 mm e com um projeto que seria enviado para o edital com tudo que uma produção tem direito. Ele topou na hora e embarcamos na feitura do roteiro.

O convite a Walter Carvalho surgiu durante as filmagens do filme de Torquato Joel, Passadouro (1999), onde participei da equipe. Eu e Solha já havíamos conversado bastante sobre o roteiro, de modo que sabíamos exatamente o que queríamos. Walter veio agregar ainda mais para o filme, deu ideias, sugestões, criou inúmeras possibilidades de planos e isso foi fundamental para o resultado final do filme.

Ariano Suassuna nos bastidores do documentário O Senhor do Castelo, de Marcus Vilar

No elenco tive a oportunidade de contar com W. J. Solha, Zezita Matos, Everaldo Pontes, Servílio de Holanda e Verônica Cavalcante. Desse grupo só não conhecia Verônica, os demais já tinha trabalhado ou tinha uma relação pessoal, por isso a condução das cenas ficou mais fácil, porque havia uma sintonia entre o elenco. E isso era necessário devido as cenas serem densas e exigirem muita concentração dos atores. Com esse elenco de peso e uma equipe coesa, partimos para a cidade de Monteiro (PB) e mergulhamos no Cariri paraibano, tendo como produtor Durval Leal Filho.

CC: Os filmes A Árvore da Miséria (1997) e O Meio do Mundo (2005) são outras produções tuas que sempre aparecem entre as mais referenciadas. O primeiro é uma fábula sobre a morte e o outro aborda o amadurecimento de um garoto nos moldes de uma prática que hoje é considerada anacrônica e já extinta. Ambos foram filmados em película e tem um trabalho de composição visual elogiado, bem como a direção. Fala pra gente sobre o que esses dois curtas representam na tua filmografia.

MV: Com a minha proximidade com pessoas ligadas a literatura e também por me identificar com as leituras, todos os meus curtas de ficção são baseados em obras literárias, — e mais uma vez enveredei pelas adaptações. O professor Osvaldo Trigueiro, da UFPB, no início dos anos 1990, me passou um folheto de contos populares, catalogados pelo Núcleo de Pesquisa Popular da UFPB e me apontou o conto A Árvore da Miséria, dizendo que dava um filme. Quando li, percebi a riqueza da história e de pronto comecei a fazer uma adaptação. Tive como consultores no roteiro, W. J. Solha e Torquato Joel.

A narrativa era muito surreal e ao mesmo tempo tratava de temas universais, a morte e a miséria: a Dona Miséria tenta enganar a morte, e isso me lembrou O Sétimo Selo (1957) de Ingmar Bergman, que também tem como personagem a morte. Utilizei essa obra como referência para começar a escrever o roteiro. E a ideia, desde o início, era fazer em preto e branco, não conseguia visualizar esse filme colorido.

Além do tema ter me fascinado, estava tendo a oportunidade de filme em 35 mm, já que o projeto tinha sido aprovado em 1996 no edital nacional o Ministério da Cultura. Esse filme foi fundamental para a retomada da produção da Paraíba em 35mm, já que o último filme feito nessa bitola tinha sido Parayba de Machado Bitencourt e Alex Santos, sobre os 400 da Paraíba, no ano de 1985. Com a A Árvore da Miséria, participei de vários festivais, no Brasil e no exterior, inclusive tive a oportunidade de ir a um dos festivais de cinema de curta-metragem mais importantes do mundo, que foi na Alemanha, na cidade de Oberhausen.

Cena do filme O Terceiro Velho, de Marcus Vilar

Quanto ao filme O Meio do Mundo (2005), foi também um professor da UFPB, chamado Andrea Ciacchi, quem me passou o livro do escritor sergipano Antônio Carlos Viana, intitulado O Meio do Mundo e Outros Contos, e mais uma vez me foi sugerido o conto homônimo do livro, isso no ano de 2003. Era um tema delicado e polêmico, já que se travava da iniciação sexual de um adolescente de 13 anos.

A história me remeteu ao início da minha adolescência, na qual me deparei com uma situação semelhante. Um tema anacrônico e não sei se tão extinto. Fiz contato com o autor do conto e ele já conhecia meus outros filmes, isso facilitou a autorização. E essa foi uma primeira experiência em fazer o roteiro sem parceria.

Como ser delicado e poético num tema pesado? Esse foi o desafio. Um pai que leva um filho, de 13 anos, no meio do mundo, do nada, para ter sua primeira experiência sexual. Nas minhas conversas com o autor do conto, propus uma leveza ao filme, as cenas de sexo não foram explícitas, ou seja, fui criando um ambiente com cortinados e uma luz vermelha e a câmera ficava circulando pela cama. Também recorri ao uso de metáforas, pois sempre gostei de trabalhar poeticamente os filmes, sem cair no panfleto.

CC: No curta O Terceiro Velho, adaptação de um conto, O Terceiro Velho da Noite, de Antônio Carlos Viana, você trabalhou com José Dumont, ator paraibano que é uma figura de referência no cinema nacional. Conta pra gente como foi esse encontro.

MV: Esse filme foi realizado em 2011. No filme eram necessários quatro personagens: uma atriz e três atores. Para a atriz, foi realizado um teste e a escolhida foi Kassandra Brandão, que interpreta a prostituta e que faz parte do Grupo Graxa, sendo sua primeira experiência com cinema. Quanto aos atores, foram convidados Fernando Teixeira, que tem uma vasta experiência no teatro e no cinema, o ator Buda Lira, que já participou de vários curtas paraibanos e tem uma grande experiência no teatro.

Desde quando comecei a escrever o roteiro com Vinicius Rodrigues, nós já tínhamos a ideia de convidar Zé Dumont. Era uma ideia antiga de filmar com ele e essa era a oportunidade, já que o roteiro encaixava no lado jocoso, espontâneo e nas suas tiradas de improvisações.

Cena do filme O Terceiro Velho, de Marcus Vilar

Zé Dumont, ator já consagrado no cinema brasileiro, participou de vários filmes importantes para a cinematografia nacional, foi o único que veio de fora, mesmo sendo paraibano. Quando fiz o contado, ele foi super generoso e se animou todo em vir para Paraíba, filmar. Eu enviei o roteiro e, passado um mês, ele me ligou eufórico e mais animado ainda, por ter gostado muito. Começamos os ensaios, com Nanego Lira trabalhando na preparação do elenco. Nas gravações, tudo que imaginava dele só foram confirmados. Integração total com os outros atores, a capacidade de improviso dele, o lado humano e generoso. Enfim, foi uma bela experiência com o mestre José Dumont.

CC: Sua filmografia é essencialmente composta por curtas. No entanto, você tem dois longas de documentário que são cinebios de duas figuras icônicas da Paraíba: O Senhor do Castelo (2007), sobre Ariano Suassuna, e o mais recente Jackson — Na Batida do Pandeiro, sobre o cantor e compositor de Alagoa Grande. Fala um pouco sobre a realização desses filmes. Você tem projetos para realizar outros longas?

MV: O Senhor do Castelo, sobre Ariano Suassuna, começou quando fui gravar a posse do então reitor da UFPB Neroaldo Pontes, em 1992. Como funcionário da universidade, fui convocado para documentar a aula espetáculo, que seria dada naquela ocasião. Fiquei impressionado com o domínio que ele [Ariano] exercia sobre a plateia e com suas estórias hilárias.

Depois da aula, fui para casa de uma tia de Ariano, juntamente com Durval Leal Filho, produtor do filme, e no caminho já me ocorreu a ideia de documentar a trajetória do nosso “Dom Quixote”. No almoço, propus a Ariano uma entrevista inicial, para darmos partida ao documentário propriamente dito. Ele nem pestanejou. De imediato se colocou à disposição. E na volta do almoço, me reuni com Torquato Joel — que na ocasião seria co-diretor do filme e que terminou na função de argumentista — com o produtor Durval Leal Filho e combinamos nossos primeiros passos. Naquele momento não sabíamos como viabilizar nossa produção, já que não dispúnhamos de recursos financeiros.

Iniciamos com as consultorias. Conversamos com o professor Carlos Newton, a professora Idelette Muzart e o escritor e compositor Bráulio Tavares. Pessoas que tem profundo conhecimento sobre nosso personagem. Até então, não sabíamos onde queríamos chegar. Três meses depois, com a câmera Betacam do Setor de Documentação do Departamento de Arquitetura da UFPB, partimos em caravana para a casa de Ariano, na Rua Chacon, no bairro de Casa Forte, em Recife (PE).

Essa produção foi muito fragmentada. Depois dessa entrevista, passamos um ano sem gravar e só depois de 3 anos, Ariano veio dar uma aula espetáculo no Encontro de Palhaços aqui na Paraíba e documentamos. Seis meses depois, ele foi a Taperoá comemorar seus 70 anos e nos ligou avisando. Em 1996, fomos gravar a Cavalgada em São José de Belmonte, onde a cidade faz uma homenagem a ele, fazendo uma caminhada até a Pedra do Reino, representando personagens do livro A Pedra do Reino e Ariano foi à cavalo até o topo da Pedra. Gravamos na Escola de Samba Império Serrano, e no meio das cabras em Taperoá. Sempre ligávamos para ele com antecedência para fazer alguma entrevista que queríamos e nunca tivemos problemas em conseguir marcá-las.

Depois de muitas horas de gravação, mais de 14 anos da primeira entrevista, comecei a criar um roteiro de edição com o editor Carlos Carvalho e fechamos uma linha para finalizar o documentário. Como fio condutor do roteiro da edição final, Ariano fala dele mesmo, sem depoimentos de terceiros. Na parte da edição, o Governo do Estado da Paraíba deu um apoio que foi fundamental para finalizar o documentário.

Diferentemente do Senhor do Castelo, que não entrou em nenhum edital, Jackson — Na Batida do Pandeiro, foi aprovado em dois, o edital Walfredo Rodrigues, da Prefeitura Municipal de João Pessoa, e o edital do FUNCULTURA, do Governo de Pernambuco.

Jackson do Pandeiro foi trilha sonora da minha adolescência em Campina Grande, quando ainda nem passava pela minha cabeça trabalhar com cinema. Em 2000, começo a ter contato com Fernando Moura, que viria a ser consultor do projeto, e juntamente com Cacá Teixeira, codiretor do filme, iniciamos um processo de pesquisa, ainda sem recurso.

Cena do filme Jogo de Olhar (2012), de Marcus Vilar

Gravamos uma grande entrevista, em 2003 com Almira Castilho, que foi casada com Jackson durante muito tempo, logo em seguida encaminhamos o projeto para alguns editais, mas ele não foi aprovado. No entanto, continuamos com as pesquisas e fomos amadurecendo o roteiro e nos aprofundando na vida e obra de Jackson do Pandeiro. Só em 2013 que conseguimos aprovação nos editais que já mencionei, com isso foi possível continuar com as gravações percorrendo por todos os lugares onde ele viveu desde de Alagoa Grande (PB), seu local de nascimento, Campina Grande, João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro e Brasília, onde ele veio falecer, em 1982.

E ainda conseguimos realizar entrevistas com nomes consagrados da MPB e que foram influenciados pela música de Jackson como: Gilberto Gil, Alceu Valença, Gal Costa, João Bosco, Hermeto Pascoal, Lenine, Elba Ramalho, entre outros.

Entrevistamos outras pessoas que fizerem parte da vida de Jackson, como Neuza Flores, que foi companheira dele até seu falecimento. Mesmo tendo sido aprovado em dois editais, os recursos não foram suficientes, então, tivemos que abrir mão de algumas imagens e também de música, para que tudo se encaixasse dentro do orçamento limitado para produção.

Para mim, registrar a vida e obra de Jackson do Pandeiro foi de extrema importância, não só pelo resgate da história de um artista nordestino cujo talento conquistou todo um país, mas também por sua expressão musical. Me sinto um privilegiado por ter documentado dois ícones da nossa cultura: Ariano [Suassuna] na literatura e Jackson na música.

CC: Você faz cinema há quase 40 anos. Já vivenciou e enfrentou várias fases e mudanças. Como enxerga a produção audiovisual hoje, com ênfase no circuito curta-metragista? Quais os cineastas da nova geração que fazem curta que você gosta/admira?

MV: Desde que iniciei minha trajetória no cinema tanta coisa já mudou. No começo, fazer cinema era quase uma odisseia. Não que hoje seja muito diferente, mas antes era tudo mais demorado, mais complexo, as produções se concentravam no eixo Rio-São Paulo, dificultando a produção aqui no Nordeste. Filmar em 35mm era mais complicado ainda, em 16mm a UFPB tinha uma câmera, que facilitava a produção, mas mesmo assim, para revelar um filme tinha que ir pra São Paulo ou Rio de Janeiro.

Ao passo que os anos foram avançando, as pessoas foram se organizando enquanto categoria, montando fóruns e associações, reivindicando investimentos, mais regularidades nos editais e uma distribuição mais adequada dos recursos. Ainda hoje lutamos por mais investimentos e por uma política cultural que seja pautada como uma política de Estado — e não de governo.

Do ponto de vista mais técnico, a democratização da imagem, com a chegada do digital, facilitou o processo de realização e, consequentemente, as produções de curta-metragem. Contudo, ainda não há um mercado abrangente que incorpore essas produções para que elas sejam vistas por mais pessoas. Existia a Lei do Curta-metragem, em que cada exibição de um filme estrangeiro antes passava um curta nacional, essa Lei teve uma época que foi colocada em prática e caiu no esquecimento. E mesmo com a ampliação de novas plataformas digitais destinadas para esse formato, ainda não é suficiente para o escoamento dessas produções.

Como você mencionou, já faz quase 40 anos que trabalho com cinema, então muitos dos amigos da minha geração hoje estão fazendo seus longas. Uma nova geração foi surgindo e o mais interessante é que em quase todos os estados do Brasil há pessoas escrevendo roteiros e fazendo curtas e sendo bem reconhecidos nacional e internacionalmente. A Paraíba é um exemplo disso, a iniciativa do cineasta Torquato Joel, com o apoio da UFPB, vem realizando o Projeto ViAção Paraíba e o Laboratório de Roteiro Jabre. Essas ações, além de estimular a formação de público, possibilitam que jovens também adentrem nesse mundo do cinema: através de elaboração de roteiro chegando até o processo de realização. Isso permitiu que o audiovisual alcançasse pequenas cidades do interior. Essas atividades geraram um movimento positivo e estimularam jovens a promover festivais em seus municípios.

Cena do documentário Quando um Bairro Não se Cala, de Marcus Vilar

Tenho acompanhado a produção daqui do estado e alguns realizadores da novíssima geração tem se destacado a exemplo de Kennel Rógis, Ramon Batista, Oscar Araújo, R.B. Lima, Ismael Moura, Veruza Guedes, Patrícia Aquino, Edimilson Junior, José Dhiones, entre outros, que vem produzindo belos filmes e participando de Festivais no Brasil e fora — sem falar nos novos realizadores que surgem devido ao curso de Cinema da UFPB.

CC: Diante de um cenário tão incerto, o que te motiva a seguir fazendo cinema? Tem novos projetos “engatilhados”? Se sim, fala pra nós sobre eles.

MV: Eu faço cinema porque para mim só lembrar é muito pouco, penso que o cinema é uma ferramenta que permite registrar a história, guardar as memórias e, principalmente, poder socializa-las, afinal “um país sem cinema é como uma casa sem espelho” — e é isso que me move.

Já há algum tempo tenho uma parceria com professor e ator Vinicius Rodrigues, juntos adaptamos o roteiro para um longa-metragem sobre o romance Rita no Pomar, do escritor e professor Rinaldo Fernandes. Recentemente finalizei, junto com Vinicius e também com o professor Aécio Amaral, mais uma adaptação de um conto: Roteiro da Solidão, cujo título provisório será Ausências. O texto é de Antônio Carlos Viana, que é o mesmo autor dos contos O Meio do Mundo e o Terceiro Velho da Noite, que adaptei para o cinema.

Em paralelo, fui convidado para codirigir um longa-metragem no Rio de Janeiro e Porto Velho, mas ainda não posso divulgar detalhes. Está sendo uma experiência diferente, pois até então sempre dirigi os projetos que idealizei, e dessa vez estarei dividindo essa direção com Beto Bertagna, cineasta gaúcho. Devido a pandemia, a produção foi adiada para início do ano que vem.

CC: Uma das principais bandeiras do Curta Curtas é a democratização do acesso aos filmes de curta duração, através de sua liberação em plataformas de exibição online, já que mostras e festivais de cinema são janelas importantes, mas circuitos limitados. O que acha dessa pauta?

MV: Filme é para ser visto, então quanto mais janelas para exibição de curtas melhor. Acho que um dos desafios que enfrentamos é o fato de alguns festivais de cinema exigirem ineditismos e isso dificulta, já que os filmes só podem entrar nessas plataformas depois que passarem nesses festivais. Isso precisa ser avaliado porque perdemos oportunidades de mostrar nossos trabalhos, afinal fazemos filmes para chegarem ao público. É fundamental que os acessos aos filmes sejam mais democráticos e que esses filmes sejam levados as escolas, universidades, comunidades de bairros, enfim, que as produções possam atingir o maior número de pessoas.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.