Como é que
jogamos
RPGs?

dreamup
Design e Teoria dos RPGs
6 min readOct 25, 2014

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Roleplay e o Espaço
Imaginário Partilhado

Esta é uma das possíveis perguntas levantadas neste artigo anterior: como é que jogamos RPGs? Se a paixão que nele está explicada te parece no mínimo estranha, este artigo não é para ti. Por outro lado, se te interessa explorar questões que possam abranger não só todos os RPGs como os muitos pontos de contacto que estes jogos têm com outros domínios, é possível que este artigo tenha algum interesse para ti.

Pronto para seguirmos o trilho de algumas perguntas? Vamos lá, então.

Chamam-se Roleplaying Games, por isso basta dar umas voltas ao dicionário para concluirmos que são jogos de desempenho de papéis ou, se quisermos ser específicos, de interpretação de personagens. E portanto, como é que jogamos RPGs? Jogamos interpretando personagens. Fácil, não é? Ficamos por aqui?

Não? Porque não? Ah, estiveste a ler aquele outro artigo e sabes que a expressão “roleplay” não só já existia antes de D&D como é há muito usada em exercícios de simulação de negócios, treinos psicológicos, jogos de guerra, etc. Uma resposta que se resume a dizer “olha, fazemos igual ao que os outros também fazem” parece um bocado fraquinha, não é?

Pois, eu até ando a ler umas coisas sobre teatro de improvisação e como eles também têm imensos jogos de interpretação de personagens, meter tudo assim no mesmo saco também não me ajuda a perceber o que é que posso adaptar do improv que possa ser útil aos RPGs. Se andares a ver coisas deste ou doutros domínios, se calhar também te perguntas: mas então como é que é feita essa interpretação de personagens especificamente nos RPGs?

Por acaso, o improv chega a ser tão assustadoramente próximo dos RPGs que eu acho que é um bom ponto de contraste para chegarmos lá. O que é que nós temos que eles não têm?

Bom, temos continuidade, certo? Aquela continuidade de uma grande campanha que aprendemos com os jogos de guerra. Não jogamos instantes que depois desaparecem. É verdade que temos cenas, mas não precisamos de as enquadrar de uma forma tão estruturada como no teatro, que até tem sempre limites reais de espaço e de tempo. É isso! Nós não nos movemos num espaço real como no improv. Nós usamos um espaço imaginário!

Mas espaço imaginário não é só palavreado complicado quando podemos dizer só imaginação? Bem, o improv brinca com a imaginação dos actores e do público. Acho é que isso fica implícito, não há uma clara separação entre o conteúdo real do jogo e o seu conteúdo ficcional, o que vemos é aquilo que os actores criam no palco e não na nossa mente. Além de que “espaço” lembra-nos sempre da tal ideia de continuidade que é muito valorizada nos RPGs. Precisamos de algo com dimensão, não é?

Uma resposta que se resume a dizer “olha, fazemos igual ao que os outros também fazem” parece um bocado fraquinha, não é?

Ui, mas “espaço imaginário” continua a dar muito pano para mangas. Se eu depois de uma sessão for para casa escrever um diário da minha personagem, estou a jogar RPG? Penso que não, falta aí qualquer coisa. Temos continuidade, temos imaginação, mas ninguém fica a saber de nada. Será sequer divertido uma pessoa jogar consigo própria? Vamos antes pressupor que o conteúdo ficcional tem de ser partilhado de alguma forma (um pressuposto que teremos de revisitar se por acaso quisermos criar um RPG para ser jogado a solo).

Se for assim, e juntando tudo, construímos um espaço imaginário partilhado. Teremos chegado a casa? Será uma das coisas que distingue os RPGs? E o que é que o roleplay tem a ver com isto?

Ora, se pegarmos na definição genérica que tínhamos anteriormente e a tentarmos encaixar com este conceito, temos algo do género: roleplay é a interacção da personagem de um jogador com um espaço imaginário partilhado. Estará melhor assim?

Pelo menos toca nalguns pontos importantes e levanta novas questões. Partilhado como? Então não temos que ter mestre-jogo e jogadores? E os dados, fichas, livros, o que é que fazem?

Calma, continuamos com as perguntas no próximo artigo. Para já, contemplemos só esta possível resposta. Nos RPGs, fazer roleplay é interagirmos com um espaço imaginário partilhado através de uma personagem?

Eu sei, parece demasiado aberto, não é? Demasiado dependente da comunicação estabelecida dentro do grupo que está a jogar? Talvez, mas no contínuo da evolução dos RPGs desde o século XIX, penso que a interacção que eles exigem tem-se aprofundado.

Para dar um exemplo, um dos usos documentados da expressão “Roleplaying Games” vem da década de 60 quando os Joint Chiefs of Staff dos Estados Unidos elaboravam complicados jogos de simulação militar para prever possíveis cenários de conflicto.

Num cenário moderno de guerra, a existência da bomba atómica minimiza a importância dos campos de batalha e valoriza tudo o que se pode fazer na esfera diplomática. Nestas simulações, os jogadores são agentes estratégicos que chegam a decisões cruciais apoiados por uma equipa de conselheiros e assistidos pelo cálculos de variáveis processadas em computador. No fundo, é uma versão muito mais complexa de um jogo da década de 50 chamado Diplomacy, um clássico que continua a ter grande sucesso em todo o mundo.

Mesmo agora nas mesas de RPG do século XXI, muitas pessoas sentem-se confortáveis com esta maneira de jogar. Pensam na sua personagem para dentro e não para fora, remoendo sobre o que acham e o que sentem, às vezes fazendo piadas ou comentários laterais, mas poucas vezes partilhando quem ela é e expondo-a ao jogo. Se calhar, para estes casos mais virados para o passado dos RPGs, o roleplay que aqui propomos não encaixa tão bem. É até costume falar-se em imersão na personagem como se fosse algo feito de porcelana que pode ser quebrada, do qual supostamente não se pode entrar ou sair para garantir que a personagem faz parte do jogo e não é apenas uma pedra preciosa que o seu jogador vai delapidando dentro da sua imaginação.

Nos RPGs, fazer roleplay é interagirmos com um espaço imaginário partilhado através de uma personagem?

Por isso, mais uma vez, confirmamos que não há respostas definitivas. Já para não falar das palavras que escolhemos estarem sempre sujeitas a diferentes interpretações e alternativas (alguém poderá querer falar em diferentes tipos de roleplay, por exemplo). Tudo o que podemos fazer é tomar uma decisão de modo consciente e pegarmos numa resposta a partir da qual queiramos avançar.

Assim sendo, e olhando para o caminho percorrido até aqui e para onde vamos a seguir, vejo três pressupostos que orientam as minhas respostas:

  1. Jogamos RPGs com outras pessoas.

2. A imersão na personagem faz parte da imersão no jogo.

3. Os RPGs devem distinguir-se dos jogos de guerra.

É dentro disto que proponho avançarmos e agradeço os vossos comentários aqui no Medium. Penso que, sobre como jogamos RPGs, o espaço imaginário partilhado levar-nos-á a falar de sistema.

Na conta que uso para escrever em Inglês, coloquei este artigo com citações do “Improvisation for the Theatre” que considero relevantes para os RPGs. Recomendo a leitura para quem estiver interessado neste ponto de contacto.

Design & Teoria dos RPGs é uma série de artigos movidos pela paixão de criar e jogar. Podem ser lidos aqui no Medium e alguns também podem ser ouvidos nesta playlist de vídeos. Partilha os teus favoritos com os teus amigos roleplayers e contacta o autor no Twitter ou através do e-mail jogadorsonhador arroba gmail ponto com.

Ricardo Tavares foi o criador do podcast “Jogador-Sonhador”, o primeiro podcast sobre RPGs em Portugal. Foi também organizador do evento criativo RPGénesis em todas as suas edições e escreveu uma variedade de RPGs, cenários e adaptações. É um dos anfitriões do grupo Roleplayers — Porto que procura promover o hobby dos RPGs nesta cidade. Fez parte da administração do site abreojogo.com (antigo RPG Portugal).

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