Em defesa da escrita em design

Porque projetar vai além de fazer um desenho bonitinho e agradável.

Do que falo quando falo sobre: design
7 min readApr 6, 2017

--

Gosto de escrever, ler e de design. Não necessariamente nessa ordem, e não exclusivamente apenas essas coisas. Porém, não vejo com tanta frequência textos ou livros falando sobre o ato de projetar. As vezes parece que não, mas não existe prática sem teoria, e vice-versa. Por mais simples que seja, você teve que ter alguma teoria para projetar qualquer coisa minimamente utilizável (seja o domínio de uma ferramenta ou saber a teoria das cores). E como você deve ter percebido, designers não tendem a escrever ou compartilhar seus métodos de criação. Claro, existem exceções.

Um lugar que poderíamos achar essa mistura de teoria e prática seriam em palestras, certo? Hmm, talvez uma ou outra, perdidas entre várias de algum estúdio/agência/coletivo mostrando seus últimos trabalhos e falando “fizemos isso aqui para a marca de roupa X e foi muito legal”. Eles estão passando um conhecimento, mas falta o contato, a troca: portfolio eu vejo na internet ou em algum site de inspiração, poxa vida!

Bom, acho que palestra seja um saco mesmo, talvez workshops então?Procura workshops e… CACETE 3 MIL REAIS PARA TER UMA RODA DE CONVERSA E FAZER UM TRABALHINHO COM O CARA DO KICKSTARTER!?

3.500 reais, dá para comprar muito livro com isso. (fonte)

Okay, talvez não seja o trabalho de agências falarem como fazem as coisas (sem monetizar muito), ou o que eles pensaram quando fizeram aquela fantástica identidade visual para um museu em Nova York, os problemas, reflexões filosóficas e como chegaram na solução final. Afinal, o mundo é uma selva, não dá para ficar falando por aí os pormenores do projeto, a concorrência pode roubar ou as pessoas podem descobrir que aquele trabalho não é tão genial assim (como eu suspeito na maioria das vezes).

Talvez, já que eu quero um conhecimento mais aprofundado sobre o assunto, eu deva recorrer aos acadêmicos, eles sim tem que estudar o Design (com letra maiúscula mesmo). Existem milhares de artigos acadêmicos que falam sobre design, e eu digo muitos mesmo (eu mesmo tenho alguns publicados). Vão do resgate histórico dos cartazes paulistas da década de 20 até as últimas jóias contemporâneas feitas com garrafa PET para comunidades no interior do sertão de pernambucano. Não cabe a mim julgar a importância de um ou outro projeto, até por que sou adepto do “todo conhecimento é válido”. Contudo, o que quero dizer que é tudo isso fica meio como uma informação de nicho, pouco acessada e explorada. Escrever artigos acadêmicos em si já é meio chato, imagina lê-los!?

Aí chegamos nos lugares onde o designers estão: Behance, Dribble, Tumblr, etc. Já reparou que o texto não é o foco? Sério, repara, não foi feito para você parar e ler o que o seu colega quer dizer sobre o projeto. São plataformas onde você deve consumir imagens, não texto. Fazemos apresentações arrojadas, imagens com legendas explicando tudo bonitinho. Aí eu pergunto, será que as pessoas realmente lêem?

Aliás, minha mãe não entende o Behance. Falei que é um Facebook para designers.

Fui em uma peixaria no final do ano passado, festa de ano novo né, vamos lá comprar um filé para acompanhar a Cereser. O quê você olha na peixaria? O peixe, claro. Pode ser que você leia o quanto está o kilo do salmão ou da tainha, mas você não se importa muito com a plaquinha dizendo de qual a região é o peixe, se ele veio de carro ou caminhão, se foi tratado bem ou mal, qual o tipo de faca que o peixeiro utilizou ou se o peixeiro tem graduação no corte do peixe. Você está ali simplesmente para escolher o peixe e dar o fora.

Até a peixaria gourmetizou. Eu só quero saber o preço do salmão, por favor. (fonte)

Eu me sinto, mais ou menos assim, no Behance ou qualquer outra plataforma para “criativos”. Eu quero ver o projeto e vazar dali. Informação textual serve apenas para ser escaneada. Não há profundidade, até porque, convenhamos, não é realmente necessário. As únicas coisas que você precisa entender é o que é aquele projeto, para quem, e ver a solução final. Muitas vezes as próprias imagens falam sobre si. O cliente vê isso também, não acho que ele ligue muito para textos aprofundados sobre o uso da tipografia ou da escolha da cor.

E eu acho isso uma pena.

Existe um designer japonês famoso e importante, ele se chama Kenya Hara. Você talvez nunca tenha ouvido falar dele, mas deveria. Se minha opinião vale de alguma coisa, recomendo o livro “Designing Design” dele, meio caro, mas vale cada centavo. Logo na primeira página desse livro ele coloca essa frase aqui:

“Verbalizing design is another act of design”

Ca-ra-ca. Você entendeu?

“Verbalizar o design é um outro ato de design”

Quando eu li essa frase eu fiquei um bom tempo pensando nela, até hoje eu fico (estou nesse exato momento lendo palavra por palavra e interpretando seus significados) ruminando-a.

Depois de muito pensar eu cheguei em uma conclusão:

Escrever e falar sobre o ato de projetar, não apenas de sua estética ou seu significado superficial, é tão importante quanto projetar em si. Um ato está entrelaçado no outro, e isso é design.

Foi por causa dessa frase que eu comecei a escrever esse Medium. Foi por causa dessa frase que eu não me contento mais com apenas breves explicações sobre as coisas que fazemos, seja como designers ou como seres humanos. Eu quero saber mais. Claro, existem projetos e projetos. Alguns não valem a pena escrever um texto de 1000 palavras sobre ele, outros que naturalmente pedem uma explicação aprofundada de concepção e definição. É um simples exercício de pensamento crítico, auto-crítica e reflexão, que não precisa nem ao menos ser escrita. É entender o porque fazemos o que fazemos.

E é por isso que essa publicação existe.

Um breve resumo

A escolha pela obra de Ruth Guimarães para o desenvolvimento de meu projeto de conclusão de curso em Design Gráfico pela Universidade Estadual Paulista, “Júlio de Mesquita Filho”, no começo foi por uma obra de sorte, depois se tornou necessidade e paixão. Passei por várias ideias mas, o desenvolvimento de uma segunda edição do livro “Os Filhos do Medo” soou mais do que correto para esse momento.

“Os Filhos do Medo” foi lançado pela editora Globo no ano de 1950. O segundo livro da autora paulista Ruth Guimarães, que já tinha publicado o romance “Água Funda” em 1946, trazia aos seus leitores o “atual conceito de demônio na tradição brasileira”. Com sua temática mui particular, a obra colocou no papel tradições e crenças passadas, em sua maioria oralmente, entre o povo do Vale do Paraíba — acidente geográfico natural que abrange regiões nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro e do sul de Minas Gerais. 68 anos se passaram, e a obra ficou apenas em sua primeira edição. Tornou-se um livro raro, com poucas unidades espalhadas pelos sebos e bibliotecas do Brasil.

Ruth Guimarães, a autora de “Os Filhos Do Medo”.

Natural de Cachoeira Paulista — cidade no Vale do Paraíba, São Paulo — Ruth Guimarães foi a primeira mulher negra a compor a Academia Paulista de Letras. Se especializou no estudo do folclore brasileiro, principalmente o caipira, dando voz a pessoas comuns, muitas vezes analfabetas e de pouca instrução, documentando crenças e superstições desse povo.

A proposta do projeto consiste na produção de um protótipo para a segunda edição da obra “Os Filhos do Medo”, escrito pela autora paulista Ruth Guimarães. Originalmente publicada em 1950 pela Editora Globo, a obra retrata o medo e suas manifestações no imaginário brasileiro, mais especificamente do caipira residente do Vale do Paraíba (interior do estado de São Paulo) e do sul de Minas Gerais. Esgotado e de difícil aquisição, o livro se torna importante quando consideramos sua relevância para o estudo do tema, mantendo sob a lente do conhecimento as crendices e tradições de nosso povo.

É um relato, mas também um trabalho teórico

Relatar a produção da segunda edição de “Os Filhos dos Medo” é, também, revisar e analisar as escolhas feitas durante alguns meses de trabalho, duvidando da possibilidade e da qualidade do mesmo. A estrutura segue, mais ou menos, a utilizada em meu caderno de rascunhos, onde procurei anotar, colar, desenhar e rabiscar todo o processo inicial da concepção do livro. Não tenho o intuito de dizer os nãos e os sims do design de livros, mas refletir e dar minha opinião sobre a teoria e a prática.

A grande maioria desses textos foram retirados e adaptados do meu relatório de produção de meu projeto de conclusão de curso. Tentei ao máximo adaptar o conteúdo ao meio presente, mas sem descaracterizar muito o que eu já tinha sido escrito anteriormente.

Estruturei nessa edição os seguintes textos (nessa ordem):

A fada caipira

Folclore e Cultura Popular: equivalentes

O livro como objeto

O livro como mercado

A escolha da obra e referências

O design de “Os Filhos do Medo”

Eles podem ser lidos em separados, juntos, na ordem, fora de ordem ou, até mesmo, não serem lidos. O intuito é compartilhar o conhecimento adquirido nesse projeto, ajudando quem se interessa por essa área.

Bom, é isso aí. Vamos lá!

--

--