Balão de pensamento com ilustração de diferentes rostos de pessoas.
Figura 1. Crédito ilustração: https://bit.ly/36aAjVb

Existe uma “única história” em curso. Será possível encontrar espaços para subverter sua lógica?

Flavia Bueno
Escola Schumacher Brasil
12 min readMay 18, 2020

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Recentemente, eu estava escrevendo um editorial para a news da Escola Schumacher Brasil e refletia sobre como este tempo a que temos chamado pandemia tem se estendido. E que, talvez, a única certeza seja a de que cada um de nós tem vivido essa experiência de uma forma particular, o que tem muito a ver com os privilégios a que temos (ou não) acesso.

Todos os dias, a história da crise sanitária que vivemos nos é contada e recontada. A forma como a contação é feita diz muito sobre quem fala, sua origem (se é acadêmico, religioso, cientista, político), a finalidade que busca alcançar com isto, entre outros. Por exemplo, posso acessar o contexto da pandemia pelo viés da escalada dos casos na minha cidade ou no mundo. Ao mesmo tempo, posso saber sobre ela por meio da diversidade das histórias contadas sobre aqueles que já se foram, ou nos testemunhos dos que se curaram e que, em comum, recusam-se a deixar suas experiências (vidas) serem representadas apenas por números.

Mas o que o jeito como contamos as histórias tem a ver com economia?

Como vimos, a palavra economia está ligada ao gerenciamento do lar, um espaço que extrapola o que é material e requer a presença de relações humanas (e outros seres vivos) para que possa existir. Se estendermos essa perspectiva para a sociedade, quando falamos em economia estamos nos referindo então ao gerenciamento de nossa casa comum, uma narrativa (ou forma de ver o mundo) bem maior do que os pouco compreensíveis índices da Bovespa, as altas e quedas do dólar, ou a busca pelo crescimento do PIB parecem dar conta de representar.

Para nos conectarmos à força das narrativas (econômicas, inclusive) e como elas contribuem para a forma como nos vemos e fazemos sentido do mundo, não precisamos ir longe. Pense comigo quantas vezes você já ouviu a história de que o mercado opera em equilíbrio entre oferta e demanda, algo dito como se fosse uma regra natural e inquestionável. Ou a história de que “primeiro é preciso fazer o bolo da economia crescer para então reparti-lo com mais pessoas”. Essa última surgiu no Brasil na ditadura dos anos 60, e era muito repetida pelo então ministro da economia Delfim Netto, vigorando até hoje como parte da narrativa neoliberal.

Não precisamos ser experts em economia clássica ou mesmo uma economista de vanguarda como Kate Raworth (a quem, adorei saber, tem preferido se auto-denominar “economista renegada”) para saber que o que fazem as histórias econômicas acima parecerem coerentes não está ligado a dados e fatos que as comprovem. Antes disso, está ligado à extensão e intensidade de sua disseminação, ao poder das vozes que as defendem e as afirmam reiteradamente; um conjunto de fatores que permite que elas percorram gerações e permaneçam “vivas” até hoje, alçadas ao status de (quase) crenças.

Aqui, recorro à escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sobre o que ela chama o perigo de uma única história, e que ofereço para nossa reflexão:

(…) É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é nkali. É um substantivo, que livremente se traduz: “ser maior do que o outro.” Como nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são definidas pelo princípio do nkali. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa.

Vamos então falar um pouco sobre a história do neoliberalismo, uma vez que ela tem sido pano de fundo para nossas narrativas pessoais, sendo há algumas décadas a narrativa dominante na economia global. Como o filósofo e economista moderno Karl Polanyi investigou em seu trabalho, a despeito dos mercados no mundo se organizarem de diferentes formas, desde o final do século XIX, Inglaterra e Estados Unidos exportam pelo mundo afora uma narrativa que conta de uma economia organizada em torno de um conjunto integrado de mercados auto regulados para terra, trabalho, capital e outras mercadorias.

Nessa única história contada por grande potências, não é preciso muita criatividade para imaginar que os demais líderes econômicos e políticos do mundo podem ter sido “aconselhados” a também adotar tal perspectiva e, assim, evitar represálias. Neste enredo, também evocado pela expressão francesa laissez-faire (liberalismo econômico capitalista), o mercado deve funcionar livremente (livre-comércio entre as nações), sem interferência do governo (taxas, subsídios e regras devem ser flexibilizadas), para que o próprio mercado determine a alocação de terra, trabalho e capital. Parte integrante também é a ideia de que os recursos disponíveis/Comuns (falaremos mais adiante no texto) tendem a se esgotar, se deixados sem restrição nas mãos da população e, também, a premissa de que o Estado é inerentemente ineficiente.

Aqui, vale uma contextualização: no século XX, a narrativa neoliberal se consolidou, sobretudo no período que coincidiu com fim da Guerra Fria (1989), quando se deu o ápice da polarização entre as nações capitalistas e as comunistas. Assim, restringir o papel do Estado, liberar a economia para atuar livremente, sem intervenção/controle estatal, parecia fazer muito sentido, e também pegava carona na narrativa da ameaça democrática representada pelos modelos socialistas e comunistas.

Voltando aos dias atuais, Eliane Brum ajuda a dar vida às características do neoliberalimo na sua crítica à sua influência no Brasil, no contexto da pandemia :

(…) os neoliberais acreditam que o Estado deve interferir o mínimo possível e que o Mercado se autorregula. Para isso, é fundamental enfraquecer as representações de trabalhadores e a palavra para tudo é “flexibilização”. Privatizar, desregulamentar, flexibilizar — estes são os verbos favoritos do neoliberalismo. Perceba então que toda vez que “flexibilizaram” algo no Brasil, foram os trabalhadores urbanos e rurais, os indígenas, a natureza e outras espécies que se ferraram. Ao trabalhador precarizado e com cada vez menos direitos deram o nome bonito e moderno de “empreendedor”. Livre e autônomo para morrer trabalhando. E, se não conseguiu “empreender”, as razões para o fracasso também lhe pertencem. Veja agora você, que é “empreendedor”, em que situação está. E veja se é isso que você quer continuar a ser. No estágio neoliberal do capitalismo todas as relações são, ao mesmo tempo, reduzidas ao consumo — e submetidas ao consumo. O que define cada “indivíduo” é sua capacidade de consumir. Suas escolhas se reduzem a escolher entre produtos, marcas, preços, cores, formatos; sua liberdade é a de consumir o que sua renda permitir e a de desejar se exaurir mais para ter mais dinheiro para consumir. Toda a vida é mediada por mercadorias e, acima de qualquer outra identidade, você é consumidor.

A história do neoliberalismo e seus preceitos, por assim dizer, fazem eco com a crença no crescimento e com a forma como o indicador PIB (produto interno bruno) tem sido usado para acompanhar a saúde econômica das nações. Entrelaçadas, essas narrativas parecem deixar muito pouco espaço para o protagonismo de personagens comuns, como você e eu, pessoas que talvez não se identifiquem com o papel de “entidades” quase inalcançáveis como Estado, Mercado ou com o papel dos capitalistas detentores dos recursos (terra, capital e espaços de trabalho).

Em meio a este enredo, como ocupar espaços de protagonismo?

Diferente da história do mercado e sua busca por equilíbrio entre oferta e demanda, Karl Polanyi afirmava que a sociedade e a economia possuem um comportamento mais complexo do que isto. Ele falava sobre um “duplo movimento” entre princípios organizadores da sociedade e suas economias; um seria o princípio do liberalismo econômico e outro o princípio da auto-proteção social. Nesta relação, nada é linear ou simples e, diferente do que a narrativa liberal apregoa, ambos os movimentos (para aumentar ou para restringir a influência dos mercados na sociedade) buscam influenciar e receber suporte do Estado.

A complexidade se revela quando o que se assume publicamente (a história contada), nem sempre condiz com os acordos feitos, geralmente, entre os que detém o poder econômico e político. Ao longo da história neoliberal é possível observar situações em que ora o mercado busca o distanciamento do estado (mais flexibilização de regras e controles) e ora recorre ao estado para, justamente, receber apoio ou benefícios. Exemplos desse movimento e suas contradições são as recentes notícias no Brasil sobre a pressão empresarial para a flexibilização da CLT durante o período da pandemia (um exemplo de como o empresariado pressiona o estado para flexibilizar as regras), ou ao contrário, quando o agronegócio recebe subsídios do governo (um exemplo do mercado demandando benefícios do estado).

Já nos chamados movimentos de proteção social, ou ações organizadas no sentido de proteger as comunidades das “regras do jogo” ditadas pelos principais atores liberais, a trama se complica. Como observava Polanyi, as pessoas que mais precisam de proteção social são justamente as que menos recursos materiais possuem. Logo, saem de largada em desvantagem no enredo político e econômico. E, mesmo quando existe possibilidade de influência no setor político (com revezamento no poder de partidos de direita e esquerda, por exemplo), não há nada que impeça a realização de acordos velados também por quem deveria ocupar um papel protetivo em relação às comunidades.

Até aí, infelizmente, essa narrativa nos é familiar. Vivemos em um país assolado pela corrupção e pela concentração de renda que renega a tantos o direito de atender sequer sua necessidade de subsistência, para usar um termo de Max Neef. Estamos todos imersos em uma narrativa de desigualdade que corrói as bases da nossa sociedade e nos impacta a todos (privilegiados ou não). Adicionalmente, sofremos com a perniciosidade de uma auto-imagem fragilizada, capaz de inibir a criação de alternativas para novos futuros. E, neste caso, ela não é uma exclusividade do Brasil.

Ocorre, que ao manter as bases do neoliberalismo e suas manifestações como políticas de privatização, desregulamentação, corte de despesas governamentais e toda sorte de apoio ao setor privado na economia em detrimento das políticas sociais; estamos estimulando em suas entrelinhas o reforço de uma imagem do indivíduo que, ao longo dos anos, tem sido desenhada por influência de diferentes correntes econômicas capitalistas. Um infeliz auto-retrato a que Kate Raworth chama em seu livro de Homo economicus:

Figura 2. Homo economicus (Economia Donut, Raworth, 2019)

Sozinho, dinheiro na mão, cálculos e lucro na cabeça e apenas o seu ego no coração. Sem contar que, neste caso, o indivíduo é homem e não me assustaria fosse branco e ocidental.

Para sobreviver em um contexto político e econômico tal qual nos conta a narrativa capitalista neoliberal, temos nos acostumado a nos identificar com esse retrato, um indivíduo fruto de uma sociedade competitiva, excludente, voltada para a maximização dos lucros, crescimento constante e para princípios de escassez. Mas, será que esse personagem representa uma descrição precisa da natureza humana? E mais, como construir novas histórias tendo um protagonista assim como ponto de referência?

“(…) mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão”, disse Chimamanda sobre a única história.

Para retomar o protagonismo deste enredo e buscar espaços que subvertem a lógica da produção como a única forma de nos relacionar com o mundo, ou que reflitam o florescer da nossa diversidade de ser e estar em sociedade é importante olhar para o lado e visibilizar outras narrativas que já estão acontecendo, a despeito da única história.

De novo não é preciso ir longe: em meio a uma pandemia sem precedentes, ainda assim é possível ver emergir narrativas, vozes e personagens que vão na contramão da narrativa neoliberal. Procure saber sobre as articulações em andamento, por exemplo, nas favelas e comunidades urbanas identificadas nas redes sociais com as hashtags #covid19nasfavelas #coronanasperiferias. São movimentos de redes de apoio e de informações totalmente adaptados à realidade local, solidários e autônomos em relação às políticas governamentais. Outro exemplo tem sido o crescimento de plataformas digitais de levantamento de recursos para diferentes campanhas, seja para compra de cestas básicas, suporte para mães e famílias que estão desempregadas, trocas de conhecimento (professores ofertando aulas voluntariamente para alunos que não estão podendo estudar), pessoas se disponibilizando para conversar com quem está isolado, para fazer compras no supermercado e tantas outras mais.

Essas iniciativas podem ainda não ser capazes de desbancar a única história ou retirar as pessoas da condição de vulnerabilidade que se agrava com a pandemia, mas dão sinais claros de que o ser humano está longe de ser este Homo economicus dos manuais de economia e decisões políticas dominantes no mundo.

Também está longe de representar a realidade a percepção de que a sociedade se resume a Mercado e Estado, quando existem outros setores cruciais em plena atuação: a Família (ou a dimensão doméstica) e os chamados Recursos Comuns (commons).

No caso da Família (dimensão a que Hazel Henderson chama de Economia da Solidariedade), é simplesmente impossível pensar nos outros setores da economia sem o cuidado e o trabalho não remunerado de pais e cuidadores, a maioria mulheres. Experimente pensar uma sociedade sem que crianças, idosos, pessoas com deficiência e doentes fossem atendidos por outras pessoas próximas; a conta da assistência pública quebraria o estado. Fora que, sem esta rede de proteção que acontece dentro dos lares, principalmente, como os trabalhadores poderiam exercer as atividades no mercado? (excelente reflexão para os tempos de confinamento, inclusive)

Sigamos então para os Comuns (commons). Parte importante da sociedade e que fica invisibilizado na maioria das histórias que ouvimos sobre nós mesmos. Eles representam de forma integrada uma comunidade, alguns recursos, as regras de governança e o processo de relacionamento (ou cola social) que conecta tudo isto. São exemplos de Comuns aquilo que a natureza provê a todos nós (água, terra, ar, florestas, paisagens etc.), assim como o conhecimento gerado por uma comunidade, técnicas culturais, tecnologias sociais, e até mesmo espaços públicos. O que caracteriza se algo é um Comum é a ideia compartilhada por um grupo sobre a relevância daquele recurso/espaço para a sua comunidade, o seu processo de compartilhamento (horizontal e coletivo) e a sua governança mediante auto-organização.

Para trazer mais concretude: uma fonte de água é um Comum, para isto, uma comunidade deve entendê-la assim, se organizar para o uso compartilhado definindo as regras para isto e realizar a gestão de sua utilização. O oposto seria a mesma fonte ser apropriada por um indivíduo, seu uso cerceado à comunidade e seu acesso liberado mediante a comercialização da água. A este processo de posse de algo que essencialmente representa um Comum dá-se o nome de cercamento (closure).

Outro exemplo para mostrar diferentes formas de se entender um espaço é o caso de uma praça de bairro. Ela pode ser gerida por uma prefeitura, que define suas regras de utilização e conservação; pode ser privatizada, o que passaria sua gestão para uma empresa terceirizada que definiria regras e cuidaria da sua manutenção; ou ainda ela poderia ser cuidada dentro da perspectiva dos commons. Ou seja, as regras de utilização, conservação e uso seriam definidas conjuntamente pela comunidade do bairro.

Não sei se você tem essa impressão, mas a perspectiva dos Comuns enquanto conceito gera uma estranheza quando se tem acesso a ela pela primeira vez. Interessante é que ela não é “nova”, ao contrário, é presente na história dos povos tradicionais como comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros no Brasil. Nessas localidades, ainda hoje, a perspectiva dos Comuns prevalece em relação à perspectiva privada e governamental.

Sobre essas últimas, o tema dos commons representa um ponto de inflexão. Afinal, como explica George Monbiot, da apropriação dos Comuns advém a origem do acúmulo de riqueza de grande parte da elite econômica.

Monbiot é um defensor da perspectiva dos commons, uma narrativa que tem sido por ele defendida em livros e na sua coluna no jornal britânico The Guardian. Ele aborda maneiras como podemos retomar o controle dos commons, e a forma para isto seria de baixo para cima, sob uma democracia participativa no nível local, nas comunidades. No mundo todo, já existem vários exemplos de iniciativas que bebem na nova narrativa proposta pelo Comuns: a Wikipedia é considerada uma delas, assim como os softwares e tecnologias de código aberto, as universidades gratuitas, os movimentos de Cidades em Transição, os bancos de horas, os cafés onde pessoas se encontram para consertar objetos compartilhando ferramentas e conhecimento, o movimento de venda de alimentos orgânicos e de cultivo familiar (CSA), a adoção de praças e parques por comunidades, as cooperativas e tantos outros.

Volto a dizer que, mais do que preencher uma lista de requisitos que caracterizam as iniciativas como Comuns ou não, o importante nesse setor da economia é que ele apresenta uma narrativa alternativa, possível e real, capaz de se infiltrar em uma realidade avessa à colaboração, propriedade compartilhada e descentralização. É profundamente empoderador, inclusive, saber que é possível a cada um de nós se movimentar dentro dessa lógica, quase como um hacker, e encontrar formas de subverter a única história.

Dentre as iniciativas que enxergo como integrantes do Comuns e que têm me chamado atenção nos últimos tempos, me vêem em mente o movimento de ocupação pelos moradores das ruas do bairro na comunidade de Parelheiros, conduzido pelo lindo trabalho do IBEAC; o próprio Movimento Sem Terra (MST) e sua articulação pela agricultura agroecológica e familiar e pela preservação de sementes e, veja você, o Grupo de Estudos que inspirou a redação deste texto.

Deixo aqui o meu convite para uma reflexão sobre como a ideia da única história chega até você e sobre os potenciais e limitações da perspectiva dos Comuns. Como exercício de imaginação, também o encorajo a pensar em movimentos que você integra e que têm essa qualidade de pertencimento, ou iniciativas que você conhece ou gostaria de ver florescer e que sejam inspiradas nessa narrativa potente a que chamamos Comuns.

Este texto foi escrito por Flávia Bueno com contribuições de Carol Busato, Fernanda Vidal e Lúcio Proença, e integra os movimentos da Rede Schumacher Brasil para refletir e agir em relação à pandemia do coronavírus.

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Flavia Bueno
Escola Schumacher Brasil

Comunicóloga, economista para transição, apaixonada pela linguagem, construção de sentido e de pontes.