Por uma economia que favoreça a vida

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Ilustração: Rafa Camargo

O futuro entra para em nós se transformar, muito antes de acontecer.

Rainer Maria Rilke

No momento que comecei a imaginar como seria o texto do quarto encontro do grupo de estudos, participei como ouvinte da conversa proposta pela Escola Schumacher Brasil com o tema Periférico: o que fica invisível com pandemia. Duas falas muito poderosas logo me encontraram e ficaram fazendo eco: uma delas foi a fala da Eliane Brum: “é preciso construir futuros”; a outra foi a da Yane Mendes dizendo “que não é tempo de manifestação e sim de movimentação.” Essas duas frases abrem espaço para a minha intenção: que ao ler esse texto entre em você muito futuro.

Talvez esse seja um dos motivos pelos quais estamos reunidos num grupo de estudos de economia para transição: para imaginar e construir futuros mais prósperos.

Durante nossos encontros, fomos percorrendo juntos uma jornada para ampliar nossa concepção do que é economia e do que faz sentido para esse momento. Iniciamos falando sobre as curvas, crescimento e respeito aos limites planetários. Em seguida, fomos olhar para nossas necessidades e ampliar nosso olhar para a economia: incluindo nela qualidades e não só quantidades. Na sequência falamos sobre criar novas narrativas, sobre novos olhares e maneiras de se relacionar com os recursos chamados comuns ou commons.

Chamamos para nossa conversa a Kate Raworth, a Donella Meadows, a Hazel Henderson, o Manfred Max-Neef, Karl Polanyi, a Chimamanda Ngozi Adichie e tantas outras pessoas inspiradoras. Tivemos conversas, mais perguntas que respostas e muitas reflexões valiosas e sinto que compartilhamos um desejo por mudança. Atualizamos o nosso léxico com palavras como localização/locavorismo, decrescimento, decolonização. Falamos do donut, do bolo e de outros modelos que vão dando outras formas e outras possibilidades de compreensão do que é economia para povoar nosso imaginário.

Tecemos uma trama do que é essa economia para a transição que perpassa pela constatação/sentimento de que a economia tal qual nós a conhecemos não garante a sustentabilidade da vida dos seres vivos, o que gera a necessidade de se construir narrativas alternativas para uma realidade mais igualitária e harmônica entre os seres. Ou seja, Economia para Transição não se refere a aprender princípios da Economia, mas em formas de ser esta “Nova Economia”, trazendo-a para a vida.

Participar e pertencer no que está vivo

Já que falamos sobre narrativas, também queremos falar de autoria. Se existe um elemento transformador para a ideia de uma economia para a transição é o resgate desse sentimento de pertencimento e participação.

Muito falamos da natureza enquanto base para a vida e para a economia. Mas há também uma outra dimensão da natureza/da vida enquanto algo sagrado — que merece ser reverenciado. Isso passa por reconciliar nossa ligação indissociável com a natureza, afinal não existe existência separada. Nós “intersomos” (*) natureza. Com isso ampliamos nossa capacidade de entender e participar do mundo não como algo fora de nós, mas nos enxergando como parte e como todo e com isso temos as bases para uma prática que se mova em direção ao que está vivo.

Esse senso de participação tem uma dimensão humana e individual que é a nossa jornada de transformação pessoal, mas tem também uma coletiva. A partir dessa transformação em que a lente passa a ser a vida — e não o mecanicismo ou o homo economicus que mencionamos aqui — começamos a enxergar que a vida é um fluxo no tempo, constantemente se transformando. Talvez por isso respostas fechadas não dêem conta. É preciso um olhar dinâmico para o qual podemos dar o nome de complexidade, que é a vida sempre em constante movimento e interação.

A complexidade também pode ser compreendida como o ato que eu, ao redigir esse texto, me vejo criando e construindo novas realidades. Ou seja, por mais que às vezes eu sinta que meu passo é pequeno demais, cada gesto está modificando a realidade e simultaneamente me modificando.

Essa percepção de simultaneamente agir na realidade e em mim abre espaço para uma nova forma de percepção com mais qualidades e justamente abre espaço para falarmos sobre como participar e agir, como chama a atenção os autores Allan Kaplan e Sue Davidoff, em sua obra Ativismo Delicado:

“Realmente prestar atenção significa prestar atenção ao todo. Significa estar sempre olhando para a integridade maior dentro da qual as partes encontram seu sentido. Significa simultaneidade mais do que causa e efeito. Prestar atenção ao todo significa buscar o sentido, significa encontrar a interconectividade, as relações, as necessidades de transformação, as dinâmicas de pertencimento e separação que vivem entre as coisas, assim como a atividade, o fluxo que as une.”

Autoria, ativismo e ação

Se a vida flui e nossa participação está sempre alterando a realidade, a economia para transição com esse olhar devolve nosso o senso de autoria da economia: somos nós que criamos esse modelo. Podemos recriá-lo. Para recriá-la também precisamos atualizar as nossas paisagens, partindo de um esforço individual de transformação e em seguida por uma construção de liderança para a ação.

Alguns paradigmas necessitam ser atualizados: a crença que um tem que perder para o outro poder ganhar. Se fizermos uma volta para um sistema vivo, vamos compreender que um sistema saudável atua em colaboração: a nossa célula do rim não compete por oxigênio com a célula do fígado, senão nosso corpo entraria em colapso. O segundo paradigma é que nossa voz individual não tem valor. Somos muito poderosos, mas talvez seja necessário resgatar nosso senso de autoconfiança — talvez perdido em um processo de colonização.

Portanto, retomar a autoria em um mundo vivo tem a ver com outro formato de participação e de exercício de liderança. Tem a ver com o que a Patrícia Shaw fala nessa conferência de trazer as coisas à tona e assumir uma voz. Ou seja, começar a verbalizar os incômodos, começar a se articular. É também sobre a escuta com intenção (sem ficar pensando em uma resposta pra fala do outro) e a observação dos detalhes do que está acontecendo no aqui e agora (sem querer achar causas imediatas). Essa forma de agir e participar começam também a trazer outras camadas e o que não estava sendo dito começa a aparecer.

Contra o senso de falta de poder ou que a minha voz não importa, há alguns antídotos. O primeiro é a ação, ao começar a agir um caminho começa a se abrir. O segundo é nos articularmos: procurarmos aliados, nos engajarmos em movimentos. O economista Christian Ferber enumera mais passos nesse artigo.

Muita inspiração sobre participação e liderança que compõe esse novo formato também é encontrada nas sabedorias dos povos ancestrais (indígenas) e em ecovilas. Um ponto que é chave é a tomada de decisão ou a forma como a liderança é encarada: o modelo não é mais piramidal, mas sim um círculo. Em um círculo, todos são líderes. O que significa que todos tomam responsabilidade pelo círculo inteiro e além disso o papel do líder é fazer as novas narrativas emergirem, é trazer mais perguntas que se sentir detentor de respostas.

O caminho que se abre ao caminhar

Esse texto é também um convite para assumirmos nossa liderança e cuidar da transição, respeitando-a como um processo. É certo que, dado o cenário que estamos vivendo, temos uma tendência muito grande em buscar por soluções, ou respostas definitivas. Mas voltando a questão de fluxo no tempo, talvez sejam mais que as respostas às perguntas o caminho para uma narrativa de economias mais inclusivas.

Falando em perguntas, imagino que a próxima pergunta sua é: como eu começo? Você já começou. Se você está lendo esse texto, já se colocou em movimento. A pergunta agora é: a partir daqui, qual é o meu próximo passo? O que ficou vivo a partir daqui?

Cabe também ressaltar que a transição não é sobre uma única narrativa e nem sobre um gesto acabado e sim sobre um fluxo de fazer nascer o novo. Um modelo que ajuda a organizar essa transição é dos três horizontes, proposto pelo Daniel Wahl e pelo International Futures Forum. O H1 representa o mundo atual em crise, o “business as usual”, que ocupa a maior parte do espaço, dos recursos, do imaginário. O Horizonte 3 (verde) representa a visão de um ‘mundo viável’ (H3). Talvez não sejamos capazes de definir cada detalhe deste futuro –já que o futuro é sempre incerto –, mas podemos intuir quais transformações fundamentais nos aguardam, e podemos prestar atenção a experimentos sociais, ecológicos, econômicos, culturais e tecnológicos ao nosso redor, que talvez sejam amostras desse futuro em nosso presente, que representa o H2.

Ou seja, agora estamos exatamente no momento descendente da curva H1, onde precisamos fazer novas perguntas e ir pilotando modelos possíveis.

Para ilustrar um pouco esse jeito de olhar, esse caminho que se abre ao caminhar, compartilho duas experiências:

A primeira foi como surgiu o movimento que co-lidero de equidade de gênero. Não foi planejado. Na minha vida atuei por mais de uma década em grandes corporações — e honro cada aprendizado dessa jornada — desenvolvendo negócios e pessoas. Sempre mantive contato com ex-colegas e acompanhei a carreira de quem foi do meu time. Um dia fui tomar café com a Wisma, que havia sido parte da minha equipe, que me contava sobre uma ação voluntária que ela chamou de “Dona de Mim” para compartilhar seus conhecimentos de marketing, marketing digital e empreendedorismo em troca de material escolar para 17 crianças. A cada história de mulher que havia participado da ação e teve sua vida transformada eu via o seu entusiasmo no brilho dos seus olhos. Ela terminou com: quero fazer mais um. E eu respondi: quero estar junto. Hoje, um ano e meio depois desse café estamos na 5a. Edição com mais de 1000 vidas tocadas no Brasil e em Moçambique. Isso não significa que temos um plano fechado, mas uma intenção clara em construir um mundo melhor, o que nos dá uma grande oportunidade de se colocar permeável; a cada passo que a gente dá, vamos aprendendo um pouco e as soluções aparecem. Assim como o começo do projeto que partiu da vontade de retribuir — a Wisma teve seus estudos viabilizados por meio um projeto social — esse é um projeto que materializa a gift economy ou economia da dádiva: a nossa remuneração no projeto não é apenas monetária, é relacional, é transformacional. Pelo menos 50% das vagas são sociais e investidores anjos aparecem para viabilizar com que mais pessoas participem do workshop. Cada abraço ou relato de vida transformada nos inspira. É realmente outra relação com os recursos: quanto mais a se doa, mais a gente ganha.

A outra experiência é esse Grupo de estudos. Ele nasceu de uma reunião dos alumni da Schumacher logo que a pandemia começou e… de um questionamento profundo: se não tivermos nada para falar agora, não teremos nada para falar. Foi um comprometimento nosso de querer fazer algo. E assim, criamos essa realidade, ou esses encontros.

O Grupo de Estudos é, ao mesmo tempo, um começo de algo ainda indefinido, e também fruto de muitas outras ações anteriores de uma infinidade de pessoas. É fruto das reflexões do E.F. Schumacher, fruto do ativismo do Satish Kumar, fruto dos movimentos de todos que já passaram pelo Schumacher College, de quem trouxe este ethos pro Brasil, dos alumni que buscaram oferecer Economia para a Transição como resposta à pandemia… é mais um nó na complexa teia da vida.

E ouso ir além: a gente sabe que não acaba no grupo de estudos. Quem sabe esse também não seja o início de algo que está por vir…

Quem sabe não surjam novos empreendimentos ecológicos?

Talvez uma articulação para mudar algo na política por meio de um abaixo assinado, visibilidade nas redes sociais? Ou talvez um movimento para tornar as cidades nas quais vivemos uma cidade que consegue viver no espaço do Donut?

Seja como for, sinto que estamos caminhando para construir futuros, ou, nas palavras do Charles Eisenstein: o mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível. Juntos!

(*) Interser foi um termo cunhado pelo monge Thit Nhat Han pra descrever que não existimos de forma separada, fazemos parte de um todo.

Este texto foi escrito por Caroline Busatto com contribuições de Eliza Hostin, Fernanda Vidal, Flávia Bueno, e Lúcio Proença, e integra os movimentos da Rede Schumacher Brasil para refletir e agir em relação à pandemia do coronavírus.

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Caroline Busatto | Nova Economia
Escola Schumacher Brasil

Acordo para promover uma economia que favorece a vida por meio de pessoas e negócios. IG: @carolbusa / Site http://www.carolinebusatto.com.br