Dan Slott dá adeus ao cabeça de teia | Amazing Spider-Man #800 e #801
E é óbvio que eu vou falar sobre isso (e mais).
Eu já perdi a conta das vezes em que ouvi ou li uma reclamação sobre as histórias do Homem-Aranha sob o comando de Dan Slott. O autor tem seus problemas, na verdade tem vários, mas também tem algumas qualidades que eu gostaria de ver mais em outros roteiristas do teioso, e é por isso que eu vou novamente me meter em uma conversa sobre o amigão da vizinhança para debater o status quo da série mais longeva do personagem.
Ao lado da enorme quantidade de edições que Brian Michael Bendis lançou relacionadas ao Homem-Aranha (inclua nessa conta toda a fase Ultimate do herói e a criação de Miles Morales, só para citar os principais), temos a numeração de Slott, que esteve nas revistas do aracnídeo por uma década, desde que começou a colaborar com Bob Gale no arco Brand New Day e assumir o comando da revista em Big Time. Sua fase chegou ao fim este ano, 2018, com a conclusão da batalha épica contra Norman Osborn, que vem sendo construída há um tempo. Hoje, também vou focar nas duas edições que celebram a despedida de Slott: Amazing Spider-Man #800 e #801, com ênfase na segunda, porque a primeira tem muita coisa para contar e quero evitar o máximo de spoilers. Mas antes disso, vamos tirar algumas coisas do caminho.
O que esse Dan Slott tem de tão ruim?
Eu já gosto de explicar, primeiramente, o que eu considero serem os maiores motivos para uma parcela de fãs odiarem tanto o gordinho barbudo (posso chamá-lo assim porque sou um), independente de serem argumentos lógicos ou não — isso porque alguns sequer envolvem seu trabalho como roteirista.
A primeira razão envolve algumas de suas decisões criativas, principalmente a ideia de criar o arco narrativo do Homem-Aranha Superior, que tinha uma premissa bem absurda, mesmo que comum para uma história em quadrinhos, mas que prometia não funcionar de modo algum. Na trama, Peter cai em uma das armadilhas do seu inimigo, Otto Octavius (Dr. Octopus), e acaba sofrendo uma troca de mentes. Otto, que estava com seus dias contados, decidiu transferir sua mente brilhante para o corpo de Peter Parker. Diga o que quiser sobre a proposta, mas eu acho que rendeu algumas sequências de ação muito boas, conceitos diferentes e interessantes e um debate bem relevante sobre o que realmente significa a máxima de tio Ben: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. Se quiser saber mais, eu falei disso em outro texto, que também aborda o impacto de Miles Morales no universo aracnídeo. É só ler aqui: O poder e a responsabilidade de Miles Mirales.
Mas o que ele fez de tão criminoso para entrar na lista negra de muitos fãs do Aranha? Tirando seu comportamento impulsivo em tentar brigar nas redes sociais com os próprios fãs sobre política, e ser chamado de Social Justice Warrior o tempo todo (qualquer pesquisa online sobre ele já vai te levar nisso, é só ver a maioria das resenhas de Amazing Spider-Man no Youtube), será que ele fez algo como roteirista (afinal, eu não escrevo sobre política aqui, o que me interessa é a história) que tenha estragado o nosso personagem favorito?
Ele não criou um pacto com Mefisto e cancelou o casamento do teioso, não fez Peter perder um olho, nunca tentou casar o Dr. Octopus com a tia May, não trouxe os pais de Peter de volta dos mortos como andróides ou fez com que a pobre Gwen Stacy fosse abusada sexualmente por Norman Osborn!!! Independente de terem sido corrigidas futuramente com algum retcon ou sendo apenas esquecidas, estas decisões foram feitas e essas histórias foram escritas. Mas Slott fez algo imperdoável, algo que ninguém jamais imaginaria que seu maior herói fizesse, ele fez com que Peter Parker crescesse.
Em todo fórum, comentário em rede social e debate com quem não gosta da fase de Slott, sempre há uma menção ao amadurecimento de Peter, e fico impressionado com a recepção negativa disso. Não queremos que nosso personagem favorito evolua constantemente? Peter já estava estagnado há um tempo e a única coisa interessante que fizeram com ele foi graduá-lo e transformá-lo em professor, sem contar aquele pacto maldito que aparentemente está perdoado por alguns (vai entender). Depois da fase Superior, onde Otto mostra o que Peter está perdendo e todas as oportunidades que o aracnídeo deixa passar pela culpa que o motiva, temos um Parker comprometido com outras obrigações, como pensar em si mesmo e finalmente usar toda sua inteligência e pôr em prática para o bem de todos. Com isso, ele passa a administrar sua própria empresa (cortesia Otto Octavius, longa história), e novas e envolventes possibilidades podem surgir em um território não explorado antes, é como um outro nível de responsabilidade. Eu também falo sobre isso naquele mesmo texto mencionado anteriormente, então, para um debate mais extenso, pode ir lá.
Agora que todos estão um pouco atualizados, saltamos um pouco no tempo e chegamos em 2018, com o lançamento das duas últimas edições de Slott à frente do aracnídeo.
Na edição #800, temos uma corrida contra o tempo para evitar que o Duende Vermelho, uma junção do Duende Verde com o simbionte Carnificina, destrua tudo de mais precioso na vida de Peter Parker. Não é a primeira vez que isso acontece, nem a segunda ou terceira, mas dessa vez temos pequenas surpresas que subvertem nossa expectativa de como uma narrativa do Homem-Aranha costumava ir com muitos roteiristas.
Se tem um elogio que posso fazer para toda a fase de Slott, seria sua habilidade em criar uma urgência que combina bastante com os combates entre os personagens, com muita tensão e uma genuína preocupação de que tudo pode dar errado a qualquer momento. Tem vezes que isso acaba sendo um tiro no pé e temos aquelas ideias mirabolantes do autor para trazer revelações e reviravoltas o tempo todo (eu sou do tipo que não precisa de um grande plot twist de dois em dois minutos). Com vários momentos surpreendentes e um desfecho bem criativo e dramático, esta é a última “aventura” — oficial — do personagem nas mãos de Slott, além de ser um dos seus melhores trabalhos com o cabeça de teia.
Mas então, o que diabos tivemos na edição #801?
Na próxima revista temos uma mudança total do que estivemos recebendo até o momento, isso desde a capa, com a ausência de Alex Ross e suas poses de ação realistas que vinham marcando presença em todas as edições, dando lugar ao traço mais despretensioso e as cores mais frias de Marcos Martin e Muntsa Vicente, com quem Slott colaborou várias vezes. E não me entenda mal, quando eu digo que não é pretensioso, digo que segue um perfil mais íntimo, como se tivesse uma proposta mais surreal, ao contrário de um impacto visual mais objetivo, como o de Ross. É só ler fases como Matters of Life and Death (chamado aqui no Brasil de “A Morte e o Herói”), onde o trabalho da dupla Martin/Vicente deu um tom quase onírico ao quadrinho, principalmente naquela belíssima página dupla onde você vê todos os momentos mais importantes da vida de Peter retornando como uma cadeia de relacionamentos e acontecimentos inabaláveis que marcaram a história do aracnídeo.
E neste mesmo estilo, temos Amazing Spider-Man #801, que conta a história de um homem comum, apenas um cidadão, tentando comprar seu cigarro em uma loja de conveniências antes de realizar uma visita importantíssima. Seu plano de ser rápido é frustrado por conta de um assaltante que mantém o homem e o caixa do estabelecimento reféns. Felizmente, o amigão da vizinhança salva todos sem problema.
Tempos depois, o caminho do Aranha e do cidadão se cruzam novamente, mas agora sabemos que o homem largou o vício em nicotina e conseguiu cumprir sua promessa de estar no lugar certo, na hora certa. Ele agradece o herói, mas o cabeça de teia não lembra do dia em que salvou todos na loja de conveniências. Está tudo bem, Homem-Aranha salva pessoas todos os dias e não tem tempo para lembrar o nome de cada uma delas. Até aí, é uma história bem simples e direta, dá pra entender o ponto dela facilmente e não é nem algo que jamais foi visto antes, mas a decisão de um roteirista em fechar sua fase de dez anos no ponto de vista de quem teve a vida mudada pelo herói é bem curioso, mas também significativo, principalmente quando levamos em consideração tudo que sabemos sobre as características do Aranha e seu foco em mostrar para todos que qualquer um pode fazer a diferença (até o Stan lee diz isso em Homem-Aranha 3, vai lá ver).
O autor fecha tudo em uma nota mais leve e saudosa, sem um grande espetáculo visual com cenas de ação mirabolantes. Aqui o maior impacto está em como o personagem influenciou tantas pessoas e inspirou Slott por uma década inteira.
“Cada pessoa é o mundo de alguém. Seus amigos, namorados, tios… Ele salva o mundo de alguém todo dia” (ASM #801)
Por mais que reclamem, eu acho que Dan Slott fez sim algumas coisas boas com o teioso. Como todo fã de verdade, ele não tem medo de ver seu herói em novos tipos de aventuras e relacionamentos. Todos temos que evoluir e seguir em frente, e Peter Parker sempre foi uma motivação para tantos que precisavam daquele empurrão na hora de uma grande decisão, então por que ele não pode crescer também?
Depois de tanto tempo com o Aranha, Slott vai cuidar da mensal do Homem de Ferro, e no mesmo ano, do retorno da primeira família, o Quarteto Fantástico. Não sei o que vai sair daí, mas espero que pelo menos o autor mantenha essa característica que eu gosto tanto, de experimentar. Os quadrinhos são fascinantes por causa disso, e se não fosse para correr riscos, qual a graça?
Já o Aranha, ele vai ficar nas mãos de Nick Spencer, outro nome polêmico por motivos diferentes (um fã do Capitão América pode te explicar melhor), mas eu torço para que seja uma ótima fase, já que é sempre bom ver alguém se divertir escrevendo ele, sem deixar de lado o coração e todas aquelas qualidades que fazem do amigão da vizinhança o meu personagem favorito dos quadrinhos.
Dan Slott pode ter dado seus tropeços, mas acredito que acertou mais do que errou, e manter uma série do Aranha por tanto tempo não é fácil. Te espero nas próximas, Dan, e vê se não faz besteira.